quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Carta de São Francisco aos governantes dos povos



Leonardo Boff

Quase no final de sua vida, Francisco de Assis escreveu uma carta aberta aos governantes dos povos. Mais de mil franciscanos, vindos do mundo inteiro, reunidos em Brasília em meados de outubro, tentaram reescrevê-la. Dei minha colaboração, proibida pelo bispo local, nestes temos:

“A todos os chefes de Estado e aos portadores de poder neste mundo, eu Frei Francisco de Assis, vosso pequenino e humilde servo, lhes desejo Paz e Bem.
Escrevo-vos esta mensagem com o coração na mão e com os olhos voltados ao alto em forma de súplica.
Ouço, vindo de todos os lados, dois clamores que sobem até ao céu. Um, é o brado da Mãe Terra terrivelmente devastada. E o outro, é a queixa lancinante dos milhões e milhões de nossos irmãos e irmãs, famintos, doentes e excluídos, os seres mais ameaçados da criação. É um clamor da injustiça ecológica e da injustiça social que implora urgentemente ser escutado. Meus irmãos e irmãs constituídos em poder: em nome daquele que se anunciou como o “soberano amante da vida”(Sabedoria 11,26) vos suplico: façamos uma aliança global em prol da Terra e da vida.
Temos pouco tempo e falta-nos sabedoria. A roda do aquecimento global do Planeta está girando e não podemos mais pará-la. Mas podemos diminuir-lhe a velocidade e impedir seus efeitos catastróficos.
Não queremos que a nossa Mãe Terra, para salvar outras vidas ameaçadas por nós, se veja obrigada a nos excluir de seu próprio corpo e da comunidade dos viventes. Por tempo demasiado nos comportamos como um Satã, explorando e devastando os ecossistemas, quando nossa vocação é sermos o Anjo Bom, o Cuidador e o Guardião de tudo o que existe e vive.
Por isso, meus senhores e minhas senhoras, aconselho-vos firmemente que penseis não somente no desenvolvimento sustentável de vossas regiões. Mas que penseis no planeta Terra como um todo, a única Casa Comum que possuímos para morar, para que ela continue a ter vitalidade e integridade e preserve as condições para a nossa existência e para a de toda a comunidade terrenal.
A tecnociência que ajudou a destruir, pode nos ajudar a resgatar. E será salvadora se a razão vier acompanhada de sensibilidade, de coração, de compaixão e de reverência. Advirto-vos, humildemente, meus irmãos e irmãs, que se não fizerdes esta aliança sagrada de cuidado e de irmandade universal deveis prestar contas diante do tribunal da humanidade e enfrentar o Juízo do Senhor da história.,
Queremos que nosso tempo seja lembrado como um tempo de responsabilidade coletiva e de cuidado amoroso para com a Mãe Terra e para com toda a vida. Por fim, irmãos e irmãs, modeladores e modeladoras de nosso futuro comum: recordeis que a Terra não nos pertence. Nós pertencemos a ela, pois nos gestou e gerou como filhos e filhas queridos. Custo aceitar que depois de tantos milhões e milhões de anos sobre esse planeta esplendoroso, tenhamos que ser expulsos dele.
Pela iluminação que me vem do Alto, pressinto que não estamos diante de uma tragédia cujo fim é desastroso. Estamos dentro de uma crise que nos acrisolará, nos purificará e nos fará melhores. A vida é chamada à vida. Nascidos do pó das estrelas, o Senhor do universo nos criou para brilharmos e cantarmos a beleza, a majestade e a grandeza da Criação que é o espaço do Espírito e o templo da Santíssima Trindade, do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Se observardes tudo isso que Deus me inspirou para vos comunicar em breves palavras, garanto-vos que a Terra voltará novamente a ser o Jardim do Éden e nós os seus dedicados jardineiros e cuidadores”.

Assinado Francisco de Assis.

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Cinco mil em Sobradinho

Roberto Malvezzi (Gogó)

Cinco mil pessoas caminharam das 8 da noite do sábado até às 4 da manhã do Domingo em Sobradinho, do dia 18/10 para 19/10 de 2008. Terminamos às margens do rio São Francisco, repartindo o pão. Caminharam conosco D. Cappio, D. Tomás Balduino, Gilberto Miranda (Movimento dos Artistas), Laura Vargas (representante da Pax Christi Internacional), representantes de movimentos populares, de igrejas, de índios, quilombolas, pescadores. Uma caminhada bonita, com música, sob o luar do sertão e do brilho da Via Láctea.

Poucos metros à frente estava o Exército, ocupando a parede da barragem de Sobradinho. É surrealista que um governo coloque continuamente o Exército para assustar índios, quilombolas, ribeirinhos, trabalhadores rurais, lideranças que sempre votaram nesse governo. Talvez seja uma forma nobre de responder a todos aqueles que se rebelam contra uma obra injusta que faz como vítima – sempre – exatamente os setores mais oprimidos da história do Brasil em todas as épocas.

Enquanto caminhávamos aqui os franciscanos entregavam a Lula uma carta contra o etanol e a transposição do São Francisco. Sinal que os irmãos de Francisco estão afim de recuperar o carisma de seu fundador.

A festa continua, a caminhada também. Dias de reflexão sobre o futuro desse país e da humanidade virão necessariamente, por bem ou por mal. O cérebro ossificado dos governantes atuais e do grande capital não tem futuro. Podem ter certeza, nós estaremos presentes e a defesa do São Francisco não é moda passageira. Água para todos os nordestinos e comida na mesa do povo continuam nossas bandeiras irrenunciáveis. Na hora certa voltaremos.


Durante a 5ª Romaria das Águas, em Sobradinho, no sertão da Bahia, na noite de 18/10 para 19/10 de 2008, Dom Cappio recebe Prêmio pela Paz da Pax Christi Internacional.






Dom Tomás Balduino discursa durante 5ª Romaria das Águas, em Sobradinho, no sertão da Bahia, na noite de 18/10 para 19/10 de2008, ocasião em que Dom Cappio recebeu Prêmio pela Paz da Pax Christi Internacional.




Laura Vargas, representante da Pax Christi Internacional, entrega prêmio a Dom Cappio.

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Soberania alimentar e a agricultura



João Pedro Stédile, economista, integrante da coordenação nacional do MST e da Via Campesina, e Dom Tomás Balduino, bispo emérito da Diocese de Goiás, conselheiro permanente da CPT (Comissão da Pastoral da Terra), órgão vinculado à CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil),

(Artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, 16-10-2008.)

Em 1960, havia 80 milhões de seres humanos que passavam fome em todo o mundo. Um escândalo! Naquela época,
Josué de Castro, que agora completaria 100 anos, marcava posição com suas teses, defendendo que a fome era conseqüência das relações sociais, não resultado de problemas climáticos ou da fertilidade do solo.
O capital, com as suas empresas transnacionais e o seu governo imperial dos Estados Unidos, procurou dar uma resposta ao problema: criou a chamada Revolução Verde. Ela foi uma grande campanha de propaganda para justificar à sociedade que bastava "modernizar" a agricultura, com uso intensivo de máquinas, fertilizantes químicos e venenos. Com isso, a produção aumentaria, e a humanidade acabaria com a fome.
Passaram-se 50 anos, a produtividade física por hectare aumentou muito e a produção total quadruplicou em nível mundial. Mas as empresas transnacionais tomaram conta da agricultura com suas máquinas, venenos e fertilizantes químicos. Ganharam muito dinheiro, acumularam bastante capital e, com isso, houve uma concentração e centralização das empresas. Atualmente, não mais do que 30 conglomerados transnacionais controlam toda a produção e comércio agrícola.
Quais foram os resultados sociais?
Os seres humanos que passam fome aumentaram de 80 milhões para 800 milhões. Só nos últimos dois anos, em função da substituição da produção de alimentos por agrocombustíveis, de acordo com a FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação), aumentou em mais 80 milhões o número de famintos. Ou seja, agora são 880 milhões.
Nunca a propriedade da terra esteve tão concentrada e houve tantos migrantes camponeses saindo do interior e indo para as metrópoles e mudando de países pobres para a Europa e os Estados Unidos. Somente neste ano, a Europa prendeu e extraditou 200 mil imigrantes africanos, a maioria camponeses.
Há oito milhões de trabalhadores agrícolas mexicanos nos Estados Unidos. Setenta países do hemisfério sul não conseguem mais alimentar seus povos e estão totalmente dependentes de importações agrícolas. Perderam a auto-suficiência alimentar, perderam sua autonomia política e econômica.
O pior é que, em todos os países do mundo, os alimentos chegam aos supermercados cada vez mais envenenados pelo elevado uso de agrotóxicos, provocando enfermidades, alterando a biodiversidade e causando o aquecimento global. Isso acontece porque as empresas transnacionais padronizaram os alimentos para ganhar em escala e lucros. Os alimentos devem ser produzidos de acordo com a natureza, com a energia do habitat.
A comida não pode ser padronizada, uma vez que faz parte de nossa cultura e de nossos hábitos. Diante disso, qual é a saída? O Estado, em nome da sociedade, deve desenvolver políticas públicas para proteger a agricultura, priorizando a produção de alimentos. Cada município, região e povo precisa produzir seus próprios alimentos, que devem ser sadios e para todos. Assim nos ensina toda a história da humanidade. A lógica do comércio e intercâmbio dos alimentos não pode se basear nas regras do livre mercado e no lucro, como pretende impor a OMC.
Por isso, consideramos o alimento um direito de todo ser humano, e não uma mercadoria, como, aliás, já defende a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Cada povo e todos os povos devem ter o direito de produzir seus próprios alimentos. Isso se chama soberania alimentar. Não basta dar cesta básica, dar o peixe. Isso é a segurança alimentar, mas não é soberania alimentar. É preciso que o povo saiba pescar!
No Brasil, com um território e condições edafoclimáticas tão propícias, não temos soberania alimentar. Importamos muitos alimentos, do exterior e entre as regiões do país. Mesmo em nossas "ricas" metrópoles, o povo depende de programas assistenciais do governo para se alimentar. A única forma é fortalecer a produção dos camponeses, dos pequenos e médios agricultores, que demandam muita mão-de-obra e têm conhecimento histórico acumulado.
A chamada agricultura industrial é predadora do ambiente, só produz com agrotóxicos. É insustentável a longo prazo. Por isso, neste 16 de outubro,
Dia Mundial da Alimentação, as organizações camponesas, movimentos de mulheres, ambientalistas e consumidores faremos manifestações em o todo mundo para denunciar problemas e apresentar propostas para que a humanidade, enfim, resolva o problema da fome no mundo.

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Superar o machismo e protagonizar a Mulher


Texto publicado na Agência de Notícias Adital em 2006.

No dia 08 de março o mundo comemora o Dia Internacional da Mulher. Muitos e muitas também estarão refletindo este evento tão necessário, tão sublime nesta data que considero ser um momento especial para relembrarmos do valor e da resistência ativa e profética das mulheres em nossa sociedade. Esta reflexão quer ser mais uma das tantas que foram escritas para identificar o papel importante das mulheres na sociedade que ainda buscam os espaços necessários para uma real efetivação enquanto protagonistas de uma história marcada por dores e cruzes.

Desde que as sociedades humanas passaram do período neolítico para o paleolítico, as mulheres tornaram-se uma espécie de extensão dos homens. Nisso muito contribuiu a formulação de doutrinas religiosas que exterminaram os direitos básicos de toda e qualquer mulher. A mulher nem sempre foi tratada na história da humanidade como submissa do homem. Em algumas sociedades, a mulher exercia o caráter matriarcal de defender a comunidade e a tribo, o que nos faz refletir que existiram momentos onde a mulher exercia a chefia da comunidade. Mas, com o tempo e, principalmente, com o início das religiões monoteístas, as sociedades passaram a identificar a semelhança entre Deus (Ser Divino) com o homem-masculino (Ser humano). O papel da mulher é então reduzido ao ato da procriação. Podemos perceber este dado histórico a partir de duas características fundamentais, a saber: a visão da mulher na religião judaica (principalmente, com a criação do Código das Leis) e depois no cristianismo, bem como a visão da mulher nos escritos gregos antigos, onde filósofos como Platão e Aristóteles, entendem que a mulher, o escravo e as crianças são como extensões do senhor (pai), sendo o senhor o único considerado cidadão da polis pela sociedade.

São essas duas visões que permanecem na história e que se tornaram presentes no inconsciente popular. Por um lado, a religião que sempre viu a mulher como símbolo da tentação (a Eva que tenta Adão a comer o fruto do paraíso), associada à serpente que tenta o homem em seus mais íntimos desejos. A mulher, bem antes da era cristã, durante toda a Idade Média, até metade do século XX, não havia conquistado seu espaço de direito na sociedade. O Dia Internacional da Mulher foi promulgado diante das atrocidades cometidas contras as operárias nos Estados Unidos e na Europa e com a morte de algumas centenas. Penso que outros e outras já tenham escrito sobre a história do porquê dessa data.

Durante este período histórico onde o papel da mulher era o de formar uma família para seu senhor e de ser procriadora de filhos (as) o homem exercia o seu poder de mandatário na sociedade, na família e nas instituições religiosas. Ainda temos situações onde a Mulher não conseguiu seu espaço, não conseguiu penetrar para ser também protagonista e sujeita da história. Mas todas se calaram? Não, sempre surgiram vozes no deserto. De Maria a Joana D’Arc, de Edith Stein a Rigoberta Menchú, de Margarida Alves a Irmã Dorothy Stang entre muitas outras que na história ousaram enfrentar o poder absolutista de homens caídos na cegueira e na paralisia de um mundo machista.

Hoje, ainda temos muito a conquistar. Ontem, dia 07 de março, o MST ocupou o INCRA em Goiânia. Muitas mulheres estão ali. Algumas conhecemos dos acampamentos e assentamentos nos quais desenvolvemos atividades da Comissão Pastoral da Terra. Uma das ocupações realizadas no dia de hoje no estado de Goiás foi realizado por uma frente de Mulheres Camponesas que estão reivindicando terra e mais dignidade nos assentamentos já estabelecidos.

Recentemente conheci muitas companheiras mulheres de luta, de fibra, de garra. A Dalva, mãe de Patrícia e do Paulo e de mais dois meninos pequenos (sementes de um novo tempo), uma potiguar que luta para criar seus quatro filhos sozinhos, sem ajuda de ninguém, a não ser dos companheiros (as) de acampamento. A Cida, militante, guerreira, coordenadora do Setor Educação no Pré-Assentamento "Gustavo Martins" em São Miguel do Araguaia, que mesmo nas dificuldades do dia-a-dia consegue encontrar forças para ajudar a todos e todas sem distinção e hoje está no INCRA nesta profética ocupação do MST. Irmã Socorro, religiosa, humilde, educadora a partir dos saberes populares, líder e mestra da Pastoral da Criança, exemplo de vida e dedicação para com os excluídos (as), uma semente viva do jeito de ser das nossas Comunidades Eclesiais de Base. Seu sorriso nos cativa e seu choro nos emociona, sua alegria nos dá esperança e sua tristeza nos faz pensar sempre nos pequenos e desprotegidos da sociedade. Dona Ana, que conheci há uma semana do P.A. (Projeto de Assentamento) Campo Alegre, católica, mãe, assentada, rezadeira, uma flor da esperança aos mais jovens. Seu acolhimento de mulher nos ensina sempre. Enfim, muitas outras, que também passam pela vida da gente e deixa o seu olhar, a esperança de um mundo diferente. E como não falar de uma jovem bela mulher chamada Sulamita, filha de mãe sem-terra, recém-chegada em terras do Araguaia, cantora, tocadora de violão, alegre, sorriso jovial, com um rosto de menina já sofreu fortes depressões diante da perda da visão que a cada dia vai aos poucos a deixando uma "deficiente visual", mas, jamais incapacitada de exercer aquilo que mais gosta, cantar, cantar e cantar a beleza da vida. Tornou-se uma companheira de vida nas andanças missionárias pelos Assentamentos e comunidades rurais. Um símbolo de resistência que nos diz e ensina que a vida se enxerga em atos concretos do cotidiano como bem afirma a CF 2006.

Sabemos que o Dia Internacional das Mulheres não esgota a comemoração e a importância da Mulher num único dia. Todos os dias são dias dedicados às mulheres e também aos homens. Em 1989, a Campanha da Fraternidade refletia acerca da Mulher e do Homem como imagens vivas de Deus, o Deus da Vida. O Dia 08 de março representa ainda a busca por respeito, dignidade e igualdade de relações humanas entre o homem e a mulher. Ainda não conseguimos superar o espírito do machismo presente em muitos setores da sociedade e que parecem não querer ver e enxergar que os tempos são outros, os tempos mudaram.

Na família, deve-se superar o espírito patriarcal e estimular a relação fraterna entre o pai e a mãe, o homem e a mulher, o filho e a filha. Na sociedade, a mulher deve ser respeitada enquanto cidadã que também se encontra excluída de um sistema que promove relações machistas de poder. Isso pode ser verificado na baixa quantidade de mulheres no exercício do poder e no tratamento às mulheres como sendo objetos descartáveis de prazer sexual para os homens o que aumenta consideravelmente a prostituição infantil, juvenil e feminina tornando a mulher marginalizada neste sistema. E, também, na Igreja, onde ainda se mantêm relações ambíguas entre homens e mulheres onde o exercício dos ministérios se afirma na figura do religioso homem. Pierre Bordieu, sociólogo francês, já alertava na década de 70 acerca dessas relações que acabam construindo imaginários simbólicos na mentalidade popular que passa a ver a mulher como não-sagrado e que o homem, por exercer o ofício sagrado, torna-se o único e legítimo representante de Deus Pai, pois até mesmo Ele é identificado enquanto ser masculino. Evidentemente, temos avanços, mas outros se tornam necessários diante do tempo histórico em que vivemos. Na verdade, precisamos reencontrar o equilíbrio dialógico entre o ser masculino e o ser feminino.

O Dia da Mulher quer ser o dia de repensar a caminhada social, política, cultural, econômica e religiosa dessa sociedade que apresenta algumas pequenas mudanças no cenário das questões de gênero, mas que continua sacralizando o Macho enquanto expressão de um Poder Totalitário o que contribui para a formação de uma sociedade desigual. A mulher não pode ser vista somente como símbolo de desejo, de procriação e uma submissa ao poder do homem. As mulheres continuam sendo chamadas a romperem com todas as formas de correntes que as aprisionam e as tornam objetos de prazer, de escravas do lar, do trabalho sem dignidade etc. Sem dúvida, a meta continua sendo superar o machismo em todas as esferas da sociedade e protagonizar as mulheres enquanto sujeitas de uma história escrita há muito tempo por elas, mas que não é contada, pois se trata de um conto a partir das dominadas. Que o conto se torne canto, encanto e profecia.

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Lançamento do livro Dom CAPPIO: RIO E POVO


Gislene Margarida Pereira (Gisa)[1]

Na Igreja do Carmo, em Belo Horizonte, dia 02 de outubro (de 2008), aniversário de Gandhi, aconteceu o lançamento do livro Dom CAPPIO: RIO E POVO.
O Velho Chico se fez presente através da belíssima mostra fotográfica de João Zinclar, que mostrava silenciosamente seus danos, tais como: assoreamento, trabalho escravo nas carvoarias, o cerrado morto para dar lugar à monocultura do eucalipto, do algodão, da soja e da cana, as margens desbarrancadas pela ausência das matas ciliares, a pobreza dos ribeirinhos, vítimas de um modelo de desenvolvimento excludente. Flores como strelitzas, girassóis, crisântemos e ramos amarelos (tango) enfeitavam o salão. Pela simplicidade em que vive o povo ribeirinho, organizamos uma "mesa ribeirinha" para contrastrar com a elegância das mesas de frios. Esta “mesa ribeirinha” foi uma das atrações da festa. Ornamentada com frutas comuns dos quintais ribeirinhos: mangas, cajus, mexericas, goiabas, graviolas, ameixas, (faltando só umbus e cajás-manga ) que se misturavam com gamelas de balas da roça embrulhadas em palhas.
Uma gande caixa cheia de pamonhas e o mingau de milho-verde, de Sô Luiz, de Venda Nova, roubaram a cena. O povo endoidou quando viu heranças culturais da cultura camponesa que a metrópole tinha roubado.
Em um canto brilhava um painel grande, de pano, com o traçado do rio São Francisco das nascentes à foz, bordado enquanto acontecia o 2o jejum de Dom Cappio, por Gisa, bordadeiras de Macacos e de outras sete comunidades.
Havia representantes de muitos movimentos sociais. Uma turma de jovens camponeses que estão cursando Administração na Faculdade Izabella Hendrix, em Belo Horizonte. Muitos militantes da Via Campesina. Povo da comunidade da igreja do Carmo. Muita gente que luta por um país mais justo e digno. Cerca de 300 pessoas.
O brilhantismo da festa ficou completo com a participação especial dePEREIRA DA VIOLA e DITO RODRIGUES. Emocionou a todos o Hino Nacional saído das cordas de uma viola dedilhada por Pereira da Viola, um dos melhores violeiros do Brasil, artistacomprometido com a luta dos movimentos sociais, crítico intransigente da Transposição do Velho Chico. Pereira estava ao lado de Letícia Sabatella e tantos outros artistas que, em 20/12/2008, acamparam em Brasília, pedindo ao STF que suspendesse a covarde transposição.
Frei Gilvander, organizador e co-autor do livro fez abertura falando da grandeza do homem Dom LUIZ FLÁVIO CAPPIO, que durante 24 dias esteve em greve de fome contra a faroônica e insana Transposição do Rio São Francisco. “Eis um grande profeta no nosso meio. Feliz quem ouve a voz dos profetas. A Transposição está amaldiçoada. Começou, mas não terminará. Este livro é a VERDADE sobre a Transposição”, alertou Gilvander.
Embalado pelos Violeiros, inclusive por Dércio Marques (que chegou atrasado), os movimentos sociais e convidados/as cantaram, dançaram e brincaram de roda com Pereira da Viola e Dito Rodrigues. Que beleza! Uma energia rejuvenescedora irradiava no ambiente!
Todas as entidades presentes: MAB, COMITÊ MINEIRO do Fórum Social, ARTICULAÇÃO POPULAR EM DEFESA DO RIO SÃO FRANCISCO, CEBS, CPT, VIA CAMPESINA e ... fizeram breves falas cumprimentando frei Gilvander, aniversariante e organizador do livro, sua tenacidade em defender o rio São Francisco contra este insano projeto de Transposição e seu comprometimento com os movimentos sociais. Pereira da Viola não conseguia parar de tocar, pois todo o salão cantava e ria com a "embolada" que cantava. Cem livros vindos de São Leopopoldo, RS, foram vendidos e autográfados. Numa noite tão franciscana, tanto o Rio como o Santo, tenho certeza, dormiram como eu: em verdadeiro ESTADO DE GRAÇA. Salve o Velho Chico. Viva Dom Cappio, profeta timoneiro de uma sublime luta.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Guantánamo também é aqui



A sociedade brasileira é tolerante com as execuções sumárias, com a pena cruel e com o massivo desrespeito à dignidade de alguns seres humanos. Pode até ser uma tolerância pelo silêncio, pela estranheza, pelo faz-de-conta. É verdade também que muitos desses seres humanos cometeram crimes violentos, são impiedosos e, se soltos, podem matar, roubar, extorquir, violentar você, seu filho, pai, mãe ou irmã. Mas você deve retribuir-lhes na mesma moeda?
Antes de responder, preste atenção ao que diz a Constituição brasileira: é assegurado ao preso o respeito à dignidade física e moral (art. 5º, XLIX). Não haverá penas de morte, salvo em caso de guerra declarada, nem as cruéis ou de trabalhos forçados (art. 5º, XLVII, a, c, e). Além do mais, elas serão cumpridas em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado (art. 5º, XLVIII). A Lei de Execução Penal também estabelece uma série de garantias aos presos como a de que o estabelecimento penal deverá ter lotação compatível com a sua estrutura e finalidade (art. 84).
Ou a determinante de que os presos sejam mantidos em celas individuais de pelo menos seis metros quadrados (art. 88, § único, b). Não, não é demagogia ou invencionice constituinte ou legislativa do Brasil. Diversos tratados internacionais, assinados pelo País, apresentam as mesmas garantias. Basta à lembrança a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes das Nações Unidas. Não se convenceu, não é? Esses são mesmo argumentos dogmáticos e, em certo grau, irreais? Então escute alguns relatos colhidos de autos, relatórios e reportagens escolhidas por sua notória credibilidade.
No censo realizado pelo IBGE em 2003, existiam 290 mil pessoas presas no Brasil, algo em torno de 16 detentos para 10 mil habitantes. Em 2007, o Ministério da Justiça divulgou que o número de encarcerados passava de 422 mil pessoas ou 23 por 10 mil habitantes. O problema da superlotação carcerária, vocês diz, não é exclusividade do Brasil. Está certo.
Nos EUA, o Centro de Estatísticas Judiciais (BJS) do Departamento de Justiça apresentou números ainda mais elevados do que os nossos: quase 2,2 milhões de pessoas estavam sob custódia em 2006, chegando-se para cada 136 pessoas a uma detrás das grades. A Suíça, de acordo com a Swissinfo, padece do mesmo mal. A penitenciária de Camp-Dollon virou alvo de críticas internas e externas em 2007, por abrigar em suas celas 450 presos, quando o número previsto na construção era de 270 apenas.
Estamos piores que a Suíça e melhores do que os Estados Unidos, certo? Errado. O que nos põe em apuros são as condições ultrajantes em que vivem os presidiários, o desrespeito sistemático a seus direitos e uma rede de crime conexos com a situação carcerária. Uma causa-e-efeito nem sempre considerada pelos analistas nem por você. Em primeiro lugar, a estatística de presos por número de habitantes não é bom parâmetro para nosso estudo. Tomemos dois exemplos mineiros.
Na Divisão de Tóxicos e Entorpecentes de Belo Horizonte em 2006, havia 265 presos para uma capacidade legal de 28. Onde cabia tanta gente? Só fazendo como num distrito policial de Contagem, onde estavam 34 detentos num espaço que, apertados, comportaria 15. Como, então, dormir? Por privilégio ou acordo entre eles: metade fica em pé, metade deitada. Com ou sem revezamento.
E pior: internos provisórios e réus primários dividem o mesmo espaço com reincidentes violentos. É o laissez-faire prisional em que predomina a lei do mais forte. Não é à-toa que as hierarquias dentro dos presídios são bem estabelecidas. Há divisão de trabalho e cargos como prefeitos, secretários e xerifes, além de um rígido código de (des)honra, reforçado por um juiz ad hoc, às vezes, democraticamente aberto à decisão de um corpo de jurados. Todos, evidentemente, presidiários.
Na maioria das vezes, nem se chega a tanto. O querer é imperativo: fiat mortis. E a morte se faz por uma faca, um punhal, verdadeiro ou improvisado. Para ajudar a contabilidade oficial de preso per capita, muitos podem morrer de uma vez só, especialmente nas rebeliões e nas lutas internas por postos de poder dentro da prisão.
Em 2006, 142 rebeliões ocorreram apenas em São Paulo com centenas de mortes e outros tantos feridos graves. Deu notícia a rebelião em Presidente Venceslau (SP) naquele ano por terem sido decapitados cinco presos. Nove anos antes, alguns expectadores mais sensíveis se chocaram com o fato de um prisioneiro ter sido esfaqueado quarenta vezes na cadeia pública de Vila Branca em São Paulo. Morreu por várias encarnações.
Em 2007, o número de mortos chegou a 1048, segundo o Ministério da Justiça, ou a 1250, de acordo com CPI do sistema carcerário. Foram três mortes por dia na média entre os dois números. Naquele ano, nada menos do que 25 presos foram carbonizados por rivais dentro da delegacia de Ponte Nova (MG). Releio a descrição feita pelo repórter Pedro Ferreira do jornal Estado de Minas em justificável espanto diante de tanta brutalidade: “Eles morreram abraçados, preservando a expressão de agonia nos seus rostos, agachados num canto da cela, em meio a muita borracha e roupas queimadas”.
Mas as mortes não são fruto apenas de “acertos internos da bandidagem”. Há ainda a ajudinha das forças do Estado. Ninguém se esquece do massacre no Pavilhão 9 da Casa de Detenção do Carandiru, onde foram mortos 111 presos pela polícia que invadira o presídio para pôr fim a uma rebelião em 1992. É por essas e outras que o Brasil tem sido acusado de violação aos direitos humanos, propagando-se até campanhas para que se promova algum tipo de sanção internacional.
Basta lembrar que o País foi condenado em 2000 pela Comissão Interamericana dos Direitos Humanos a indenizar os parentes das vítimas ou às sobreviventes, recebendo uma recomendação de efetiva e imparcial investigação destinada a responsabilizar os culpados pela tragédia. Também responde perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos pelo fato de 37 presos terem sido cruelmente assassinados por “companheiros” dentro da penitenciária Urso Branco entre janeiro e junho de 2002.
E como fedem aqueles lugares. O ar quente e abafado, a temperatura beira com freqüência os 35o Celsius, é uma mistura de todos os cheiros e vapores do corpo, de urina, de fezes, de suor, de sêmen, de sangue. Comida aqui e ali, inclusive na deslumbrante Fortaleza, vem em sacos plásticos e pode ser dividida com os porcos que compartilham o mesmo espaço dos detentos. À noite, não se ouvem quase vozes humanas, aqui e ali um sussurro ou tosse, mas como zunem os pernilongos e incomodam os muquiranas. São assistentes de cenas explícitas do sexo entre quatro paredes, uma, pelo menos, de ferro.
Aqui é outra vez a hierarquia que dita as regras. Há as “mulherzinhas” da hora para atender às necessidades dos senhores. Na força, no grito e no punhal. Um, dois, quinze em rodízio. O homem se estrebucha de dor e sangue que tenderá a diminuir no dia seguinte. Se der sorte, será poupado dentro de uma escala de revezamento, geralmente, existente para não enjoar os gostos do xerife. No presídio, vira-se homossexual a fórceps.
Mas a vida não é mais fácil para os homossexuais por opção. Quase sempre viram escravos da chefia: lavam, fazem faxina e, querendo ou não, ainda devem ter forças para suportar a fila dos insaciados quando chega a noite e a escuridão toma de conta. Isso, claro, quando não estão ali no meio mulheres para facilitarem as coisas.
Algumas, inexplicavelmente, detidas ou cumprindo pena junto com os marmanjos. Você não se lembra da garota de 15 anos que ficou durante três semanas detida numa cela com 20 homens em Abaetetuba (PA)? E daquela jovem de 25 anos que ficou numa cela com 70 homens em Parauapebas (PA) por 45 dias, se recorda?
Outras, maiores ou menores, servindo a dinheiro, ainda mais inexplicavelmente são vistas nas visitas aos detentos. No Presídio Adriano Marrey, em Guarulhos (SP), ficou famosa a história da menina de 15 anos que se vendia por R$ 50 para ajudar na compra de alimento para a família. A mãe a levava e a tudo assistia. Contrariada, podia ser, tinha que ouvir os choros abafados da filha: “Eu queria era brincar com as minhas amigas, mas preciso pensar antes na minha família [para não morrer de fome]. É a minha sina”. Relatos gravados pelo Jornal online de São Paulo.
Uso de preservativos? Como assim? Um estudo do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids (Unaids) revelou que a incidência da HIV em presos no Brasil é 20 vezes superior a encontrada na população em liberdade.
E num tem guarda não? Tem, mas poucos, mal remunerados e sem preparo para o cargo. Se estiverem à luz do dia e em condição de segurança vão às vistorias. E, muitas vezes, usam de violência desnecessária ou preventiva: “Se você não quebrar os presos, alguns presos, eles vão vir pra cima de ti e vão te quebrar. É a sobrevivência do mais forte. Ou tu é a caça ou é o caçador”. Foi o registro de um agente penitenciário ao Movimento Nacional de Direitos Humanos.
Para não serem caça, à noite, ficam protegidos por grades adicionais e longe das celas, onde besouros e sexo, pernilongos e punhais conspiram em silêncio. A corrupção é outra praga. O salvo-conduto interno pode sair por menos de R$ 30, mas a liberação do celular chega a custar R$ 100, enquanto tráfico de armas (revólver, em regra) sai mais caro, R$ 500 em alguns lugares. A vista-grossa é complemento salarial, alegam alguns, variando conforme o produto, as posses do preso e o local da prisão.
As posses do preso! Façamos uma pausa. 70% dos presos brasileiros não completaram o primeiro grau e 10% são analfabetos. Posses? Dados do Censo Penitenciário, divulgado pelo Ministério da Justiça em 1994 (não encontrei outro mais recente nem há motivos para desconfiar que tenha havido mudança), indicavam que 95% dos presos eram pobres. Entre os considerados ricos estavam os assaltantes de banco, traficantes de médio e pequeno porte, além de profissionais liberais, quase sempre, condenados por crimes sexuais ou assassinatos.
Quantos ali deveriam estar enclausurados por crimes de colarinho branco, por evasão de divisas e lavagem de dinheiro? Por corrupção? Os percentuais não conseguiram gerar uma barrinha sequer do quadro comparativo.
Em grande parte, o caos penitenciário é decorrência da falta de prioridade política das diversas esferas de governo. Basta consultar o orçamento federal previsto e o executado. Em 2005, somente a metade dos recursos alocados ao Fundo Nacional de Segurança Pública foi, de fato, posta à disposição dos Estados. Não chegou a 37 o percentual de execução do Fundo Penitenciário naquele ano. Em 2007, dos 430,9 mi previstos para o FP, foram executados 230 mi ou 53%.
Desse montante, aplicar-se-iam R$ 273,5 mi na construção e ampliação de estabelecimentos penais estaduais mas foram aplicados apenas 48,6% do total. No caso dos presídios federais, descontado o valor relativo aos restos a pagar (débito do exercício anterior devidamente aprovisionado com dinheiro do respectivo orçamento), houve-se melhor, pois foram gastos os excessivos 67% do total previsto.
Para o aparelhamento e reaparelhamento de estabelecimentos penais, executaram-se apenas 30% do previsto. Se o valor do orçamento já fica muito abaixo do que se necessitaria para enfrentar o problema, segundo estudos técnicos mais abalizados, sua execução reduzida compromete ainda mais a solução. Até agosto de 2008, executaram-se apenas 5% dos recursos alocados para o Fundo. Paradoxalmente, 100% dos R$ 30 mi destinados a uma instituição da ONU para defesa dos direitos humanos e justiça em outros países foram efetivados. Mas se você ainda acredita que preso não tem direito e o que se gasta já passa da conta, espere para ouvir (e sentir) o efeito bumerangue.
Em primeiro lugar, as superlotações dos presídios impedem que novos mandados de prisão sejam cumpridos. E se o fossem, o número da população carcerária dobraria. Seja como for, eles, os condenados soltos, podem estar à sua espera ali na esquina.
Pior. Como as carceragens são zonas livres do direito estatal, vige a lei do bandido. Não falo da escola de criminalidade em que se transformou cada uma delas, mas da capacidade de gestão do crime a partir da própria prisão. A tendência é tornar-se cada vez mais sofisticada. O disque-extorsão assim como o cyber, o info e e-crime já estão em pleno funcionamento.
Você ainda reluta contra os direitos humanos dos bandidos. Pelo menos seja mais honesto: direitos humanos dos bandidos pobres. Não vou gastar mais seu tempo. Você também não concorda com a garantia de presunção de inocência que a Constituição assegura a todos antes da sentença penal condenatória, concorda? Ah, concorda.
Pois veja que é uma das raras garantias constitucionais que têm uma proteção quase absoluta. Curioso é que atende principalmente aos clientes de grandes escritórios de advocacia. Lembra-se dos habeas corpus recentes no Satiagraha?
É, é verdade, cada coisa no seu lugar. Um não é bandido declarado; o outro, sim. Dá para ver só pela cor da pele, pelos trajes, pelo jeito de falar. Pelo barulho e onda de indignação que provocaram as prisões. E eu aqui com as minhas tragédias cívicas. Não, não, obrigado, tome mais um copo você que eu vou andar em círculo lá no sol antes do toque de recolher.

José Adércio Leite Sampaio

sábado, 11 de outubro de 2008

A Bíblia, biblioteca do amor



Neste próximo domingo, o último de setembro, as comunidades católicas festejam o Dia da Bíblia. É ocasião para recordarmos que há 30 anos, começava o movimento de formação bíblica que, hoje, se espalha por todo o continente. O Centro de Estudos Bíblicos (CEBI) e outros grupos semelhantes são responsáveis pela devolução da Bíblia às comunidades cristãs pobres. A Bíblia nasceu em meio aos empobrecidos de Israel, mas, durante muito tempo, ficou em poder de intelectuais e pessoas abastadas. Agora, o segredo que ela traz em suas páginas, está sendo devolvido às comunidades pobres do campo e da cidade.
Este movimento ecumênico de restituir a Bíblia aos pobres se soma ao fato de que a Bíblia continua sendo o livro mais impresso no mundo. Está traduzida em 1435 línguas e dialetos. Calcula-se que, por ano, se vendem 20 milhões de exemplares. O que significa todo este sucesso literário? Houve uma época que a Bíblia servia para arregimentar cristãos e fortalecer a Cristandade. Nos tempos das ditaduras militares, generais tomavam o poder, fazendo juramento sobre uma Bíblia aberta.
Hoje, é preciso ver e usar a Bíblia de modo diferente. Provavelmente, por estas e por outras, cada vez mais, a sociedade civil se define como alheia à religião. Faz muito bem de ser uma sociedade leiga e multicultural, mas aberta a todas as expressões culturais e religiosas.
A Bíblia continua sendo referência cultural para quem quer estudar a arte, a literatura clássica e a própria história da humanidade. Mesmo pessoas sem fé apreciam os textos bíblicos que pertencem ao patrimônio cultural da humanidade e são obras primas da literatura universal. Afinal, a Bíblia inspirou a fundação de três religiões universais e de milhares de confissões e movimentos independentes.
Em muitos ambientes, o espiritualismo está em alta, mas muitos que assumem alguma busca espiritual não escolhem a Bíblia como referência. Entretanto, na América Latina, multidões lêem a Bíblia para encontrar força de viver. Em anos recentes, em vários países do continente, muitas pessoas foram presas e assassinadas por terem lido a Bíblia e nela descoberto que deviam consagrar suas vidas à transformação do mundo.
No contexto atual do mundo, uma nova edição da Bíblia deveria levar em conta as questões para as quais a humanidade busca uma resposta na Palavra de Deus. Algumas destas questões estão ligadas a determinados modos de ler a Bíblia. Em diversas partes do mundo, movimentos fundamentalistas e fanáticos inspiram-se na Bíblia, assim como em outras épocas, muitos recorriam a textos bíblicos para justificar guerras e cruzadas. O governo de Israel pretende se apoiar na Bíblia para justificar sua perseguição e repressão ao povo palestino. Várias vezes, o presidente Bush se apresentou na televisão com a Bíblia na mão para justificar a invasão a outros países e o massacre aos povos de outras raças. Até hoje, pastores cristãos usam a Bíblia para condenar as religiões negras e as tradições indígenas. Lêem ao pé da letra as condenações da Bíblia aos ídolos estrangeiros e as aplicam às religiões de povos pobres e oprimidos.
A Bíblia, livro escrito coletivamente e em um processo de muitos séculos, contém várias imagens de Deus. Ali, Deus é mostrado como a divindade que, para ver se o patriarca Abraão tinha fé, mandou que este lhe sacrificasse o seu filho único. Ordenou aos hebreus massacrarem os povos cananeus que encontrassem pelo caminho e dirigiu as guerras sagradas de Davi contra seus inimigos. Premiava os seus amigos e punia os outros com a morte e a desgraça. Foi preciso Jesus de Nazaré dizer a seus discípulos: "Vocês ouviram os antigos ensinarem uma coisa. Agora eu lhes digo outra: Nada de olho por olho, dente por dente. Nada de amar o próximo e odiar o inimigo. Nada de vingança" (Mt 5). Deus não pode ser assim.

Jesus revelou um Deus diferente, um Deus paizinho que nos ama com amor maternal. Se ele é Deus, é amor e misericórdia e não pode nunca ser vingativo e intolerante. Quer de nós amor e não nenhum tipo de sacrifício. Como lembrava o papa Paulo VI: "para se encontrar a Deus, é fundamental se encontrar o ser humano". Jesus recordou profetas bíblicos e reafirmou que Deus quer que seu templo seja espaço de comunhão para toda a humanidade, independente de raças e religiões.
Neste começo de milênio, a humanidade é chamada a rever sua relação com a natureza. Se não mudarmos o estilo de progresso, responsável pela destruição ecológica, em pouco tempo, a vida no planeta Terra será inviável. Os crentes entenderam mal a palavra de Deus na Bíblia: "Crescei, multiplicai-vos e dominai a terra". Ao contrário, esta palavra proclama o ser humano "gerente" de Deus na terra e não proprietário absoluto com direito de destruir outras criaturas de Deus e a própria comunidade da vida na terra.Ao ler e escutar a Bíblia, que cada pessoa assuma esta responsabilidade de amor.

Marcelo Barros, monge beneditino e escritor.

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

20 anos com Josimo


Texto publicado na Agência de Notícias Adital em 2006.

No dia 10 de maio de 1986, Padre Josimo Morais Tavares, tombava na cidade de Imperatriz - MA diante da sede da CPT. Hoje, estamos fazendo memória deste evento, da cruz pós-moderna, da bala assassina que penetrou no corpo desse padre pastor e profeta. É um dia de reencontro com o passado, com a história de nossas Comunidades Eclesiais de Base, com a memória libertadora e, principalmente, com o testemunho, a amizade, a palavra daquele que anunciou a Palavra e com a teimosa fé-esperança que sustentaram a vida e a prática pastoral do tão nosso, companheiro e irmão, Padre Josimo Morais Tavares.

Há 20 anos atrás, o Brasil vivia momentos de transformações políticas e econômicas que dinamizavam o cenário das relações políticas. Na região do Bico do Papagaio a situação não se diferenciava. Com o anuncio do fim do regime ditatorial havia uma rearticulação política das oligarquias rurais na chamada Nova República. A luta social se encontrava diante de fortes momentos de tensão e conflito por parte de fazendeiros e trabalhadores rurais que tinham na Igreja, na CPT, nos sindicatos e nos novos movimentos sociais do campo uma esperança em ver realmente a Terra partilhada para todos e todas.

Josimo é a testemunha fiel e nos ensina de que vale a pena dar a vida pela causa do Reino, das comunidades e do povo. Sua morte significou o compromisso assumido em denunciar as estruturas de morte alimentadas pelas injustiças políticas de mandos e desmandos de uma oligarquia rural que ousava (ou ainda ousa) se estabelecer no poder da República. É neste sentido que Josimo se torna o padre mártir da Pastoral da Terra ao selar com seu sangue uma opção, um compromisso e um engajamento na defesa dos oprimidos, em especial, os trabalhadores rurais. Poderíamos relembrar os versos de Pedro Tierra escritos por ocasião do martírio de Padre Josimo em maio de 1986:


Quem é esse menino negro
Que desafia limites?

Apenas um homem.
Sandálias surradas.
Paciência e indignação.
Riso alvo.
Mel noturno.
Sonho irrecusável.

Lutou contra cercas.
Todas as cercas.
As cercas do medo.
As cercas do ódio.
As cercas da terra.
As cercas da fome.
As cercas do corpo.
As cercas do latifúndio.

Em seu belíssimo Testamento Espiritual pronunciado durante a Assembléia Diocesana de Tocantinópolis no dia 27 de abril de 1986, poucos dias antes de seu assassinato, dizia Josimo que sua morte estava anunciada, encomendada e prescrita nos anais das correntes que desejavam ardentemente elimina-lo. Novos Anás e novos Caifás já o haviam julgado. Mas Josimo se encontrava firme, pois havia assumido o seu trabalho pastoral no compromisso e na causa em favor dos pobres, dos oprimidos e injustiçados, impulsionado pela força do Evangelho. Dizia Josimo: "Tenho que assumir. Agora estou empenhado na luta pela causa dos pobres lavradores indefesos, povo oprimido nas garras dos latifúndios. Se eu me calar, quem os defenderá? Quem lutará a seu favor?".

Diante de tanta fé e de uma teimosia do Reino inexplicável, Josimo sentia-se fortalecido pela experiência de Deus, pois se encontrava dentro do próprio Deus. Com certeza, Josimo fez a experiência de Deus que somente os grandes místicos da humanidade fizeram. Um homem que chega a ponto de saber que terá seu sangue derramado em defesa dos pobres e pela causa do Reino só pode ter tido a experiência concreta do Deus que se fez gente entre os homens e mulheres.

Para Josimo ser padre significava sentir a vida brotando como serviço justo a Deus e aos pobres, sobretudo. Para ele, o culto, a eucaristia, a teologia do sacrifício significava o agrado que fazemos a Deus no serviço aos pobres, aos doentes e marginalizados da sociedade. Percebemos nos escritos, nos poemas e nos registros de Josimo uma profunda intimidade com sua opção primeira, a saber: a Diakonia, ou seja, o serviço, o estar sempre servindo aos mais necessitados. Necessitados do Bico do Papagaio eram os trabalhadores rurais expulsos e espoliados da terra pelos grandes fazendeiros locais e pelos políticos ao estilo coronelista. Portanto, ser padre Josimo era ser Profeta na Justiça, Pastor na Caminhada e Sacerdote humilde que procurava oferecer a Deus oferendas justas. Josimo é a própria oferta. Tornou-se um ofertório vivo para nossas comunidades e para a construção do Reino.

Com certeza, a memória dos 20 anos do martírio de Padre Josimo nos traz à luz a experiência das CEBs, da Igreja Povo de Deus, Igreja Povo Novo enquanto sinal do Reino de Deus no mundo. São passados 20 anos e a Igreja mudou tanto. Lembro-me dos encontros vocacionais que fazíamos no final da década de 80 e início da década de 90, movidos pela forte presença desse jovem padre que deu sua vida pelo Reino na defesa da terra e dos trabalhadores rurais do Tocantins. As CEBs eram o modelo de Igreja que vivíamos com muita alegria e esperança. Nossa vocação à vida religiosa e consagrada tinha como testemunho as experiências dos mártires da América Latina. Hoje, parece que as coisas já não são mais assim. Perdemos os testemunhos. Há alguns dias atrás perguntei a um jovem vocacionado se conhecia a história de Josimo, do Padre Josimo e me veio a frustração de que havia ouvido falar sim de um padre comunista que morreu no Tocantins porque havia se envolvido com os sem terras (em tom preconceituoso). É lamentável ver as opções dos novos padres de hoje. Compromissos que não são evangélicos. Ao contrário, profundamente carreiristas e sem nenhum engajamento pastoral que leve a práticas pedagógicas de transformação do meio e das situações de morte. A figura de padre hoje se baseia no comodismo, nos status quo e na busca pelo poder de uma Igreja que retoma o sentido da cristandade.

Novos Josimos só surgirão quando a Igreja novamente for sinal vivo do Reino de Deus, quando estiver ao lado dos pobres e oprimidos, dos fracos e perseguidos; quando denunciar as injustiças e as opressões cometidas contra o povo; quando anunciar a esperança, a fé, o amor e a alegria aos pobres. Novos Josimos surgirão quando a Igreja assumir uma forma Ministerial de ser Igreja. Sabemos que muitos padres estão surgindo, mas sem nenhuma semelhança do que fora Josimo.

Se o latifúndio e a UDR matou Josimo, a Igreja e o clero o enterraram de vez na história. Poucos se lembram desse dia. Poucos se interessarão em ler acerca desse humilde padre do Bico do Papagaio que não foi protagonista da história porque queria ver o povo sendo sujeito da história e não simples objetos de sua ação pastoral.

Portanto, 20 anos sem Josimo? Não. São 20 anos com Josimo. Ele continua vivo. Vivo nas memórias do povo, nas experiências dos educadores populares, nos escritos da Teologia da Libertação e no compromisso dos poucos agentes de pastorais que continuam reafirmando o mesmo compromisso com o Reino, com a causa de um novo mundo, com a justiça social e a solidariedade para com os excluídos da sociedade. Vivo no martirológico latino-americano, alternativo por excelência, sem nenhuma ligação e reconhecimento por parte da estrutura eclesial oficial.

A história não pode perder a figura de Josimo. Ele é importante na história porque promoveu com o povo a história. Com Josimo, os dominados contam suas histórias. Com Josimo, a história não é na lógica da classe dominante. Com Josimo, os dominados são os sujeitos históricos. É por isso que há 20 anos estamos com Josimo e não sem ele. Evidentemente, Josimo está mais presente no povo do que no clero o que não impede que se possa haver mudanças. Neste sentido, a Igreja de hoje precisa, urgentemente, continuar refletindo sobre o sentido cristão do martírio, da entrega, da doação da vida pela causa do Reino. Caso contrário, se definhará nela mesmo e deixará de anunciar o Evangelho da Liberdade como fez Padre Josimo Morais Tavares. Josimo vive.

terça-feira, 7 de outubro de 2008

O impensável aconteceu: o Estado voltou a ser a solução



A palavra não aparece na mídia norte-americana, mas é disso que se trata: nacionalização. Perante as falências ocorridas, anunciadas ou iminentes de importantes bancos de investimento, das duas maiores sociedades hipotecárias do país e da maior seguradora do mundo, o governo dos EUA decidiu assumir o controle direto de uma parte importante do sistema financeiro.
A medida não é inédita pois o governo interveio em outros momentos de crise profunda: em 1792 (no mandato do primeiro presidente do país), em 1907 (neste caso, o papel central na resolução da crise coube ao grande banco de então, J.P. Morgan, hoje, Morgan Stanley, também em risco), em 1929 (a grande depressão que durou até à Segunda Guerra Mundial: em 1933, mil norte-americanos por dia perdiam as suas casas a favor dos bancos) e 1985 (a crise das sociedades de poupança).
O que é novo na intervenção em curso é a sua magnitude e o fato de ela ocorrer ao fim de 30 anos de evangelização neoliberal conduzida com mão de ferro a nível global pelos EUA e pelas instituições financeiras por eles controladas, FMI e o Banco Mundial: mercados livres e, porque livres, eficientes; privatizações; desregulamentação; Estado fora da economia porque inerentemente corrupto e ineficiente; eliminação de restrições à acumulação de riqueza e à correspondente produção de miséria social.
Foi com estas receitas que se "resolveram" as crises financeiras da América Latina e da Ásia e que se impuseram ajustamentos estruturais em dezenas de países. Foi também com elas que milhões de pessoas foram lançadas no desemprego, perderam as suas terras ou os seus direitos laborais, tiveram de emigrar.
À luz disto, o impensável aconteceu: o Estado deixou de ser o problema para voltar a ser a solução; cada país tem o direito de fazer prevalecer o que entende ser o interesse nacional contra os ditames da globalização; o mercado não é, por si, racional e eficiente, apenas sabe racionalizar a sua irracionalidade e ineficiência enquanto estas não atingirem o nível de auto-destruição; o capital tem sempre o Estado à sua disposição e, consoante os ciclos, ora por via da regulação ora por via da desregulação. Esta não é a crise final do capitalismo e, mesmo se fosse, talvez a esquerda não soubesse o que fazer dela, tão generalizada foi a sua conversão ao evangelho neoliberal.
Muito continuará como dantes: o espírito individualista, egoísta e anti-social que anima o capitalismo; o fato de que a fatura das crises é sempre paga por quem nada contribuiu para elas, a esmagadora maioria dos cidadãos, já que é com seu dinheiro que o Estado intervém e muitos perdem o emprego, a casa e a pensão.
Mas muito mais mudará. Primeiro, o declínio dos EUA como potência mundial atinge um novo patamar. Este país acaba de ser vítima das armas de destruição financeira maciça com que agrediu tantos países nas últimas décadas e a decisão "soberana" de se defender foi afinal induzida pela pressão dos seus credores estrangeiros (sobretudo chineses) que ameaçaram com uma fuga que seria devastadora para o actual american way of life.
Segundo, o FMI e o Banco Mundial deixaram de ter qualquer autoridade para impor as suas receitas, pois sempre usaram como bitola uma economia que se revela agora fantasma. A hipocrisia dos critérios duplos (uns válidos para os países do Norte global e outros válidos para os países do Sul global) está exposta com uma crueza chocante. Daqui em diante, a primazia do interesse nacional pode ditar, não só proteção e regulação específicas, como também taxas de juro subsidiadas para apoiar indústrias em perigo (como as que o Congresso dos EUA acaba de aprovar para o setor automóvel).
Não estamos perante uma desglobalização mas estamos certamente perante uma nova globalização pós-neoliberal internamente muito mais diversificada. Emergem novos regionalismos, já hoje presentes na África e na Ásia mas sobretudo importantes na América Latina, como o agora consolidado com a criação da União das Nações Sul-Americanas e do Banco do Sul. Por sua vez, a União Européia, o regionalismo mais avançado, terá que mudar o curso neoliberal da atual Comissão sob pena de ter o mesmo destino dos EUA.
Terceiro, as políticas de privatização da segurança social ficam desacreditadas: é eticamente monstruoso que seja possível acumular lucros fabulosos com o dinheiro de milhões trabalhadores humildes e abandonar estes à sua sorte quando a especulação dá errado. Quarto, o Estado que regressa como solução é o mesmo Estado que foi moral e institucionalmente destruído pelo neoliberalismo, o qual tudo fez para que sua profecia se cumprisse: transformar o Estado num antro de corrupção.
Isto significa que se o Estado não for profundamente reformado e democratizado em breve será, agora sim, um problema sem solução. Quinto, as mudanças na globalização hegemônica vão provocar mudanças na globalização dos movimentos sociais que vão certamente se refletir no Fórum Social Mundial: a nova centralidade das lutas nacionais e regionais; as relações com Estados e partidos progressistas e as lutas pela refundação democrática do Estado; contradições entre classes nacionais e transnacionais e as políticas de alianças.

* Boaventura de Sousa Santos é sociólogo e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal).

Artigo reproduzido da Agência Carta Maior

domingo, 5 de outubro de 2008

Sujeitos da práxis pedagógica


Texto publicado pela Agência de Notícias em 2006.


Observa-se que existe uma compreensão cultural na sociedade de que ser educador significa construir processos de ensino-aprendizagem a partir de uma profunda interação com o educando. Por isso, costuma-se dizer que onde há educador existe um educando e onde há um educando existe um educador. No entanto, educadores e educandos são aqueles que aprendem e ensinam mutuamente. Eles são os sujeitos da práxis pedagógica. Como sujeitos parecem definir também os seus conceitos e significados. Daí a importância de se refletir sobre os sujeitos da prática educativa escolar numa sociedade onde o sistema se coloca numa posição superior aos atores sociais desse processo de práxis pedagógica.
Educadores e educandos ocupam, sem dúvida, posições diferenciadas nesta reflexão o que não permite dizer que não exista uma inter-relação dialética entre os sujeitos. Talvez a primeira inter-relação entre os sujeitos em discussão seja o fato de ambos serem, antes de tudo, seres humanos. O ser humano constrói uma relação na medida em que adquire o seu modo de ser, de viver e de sobreviver. O ser humano é ativo em determinadas relações sociais e históricas que produz o próprio modo de ser do ser humano. Neste sentido, Marx já afirmava no século XIX que o ponto forte do ser humano é o trabalho realizado em condições históricas especificas e determinadas. Este trabalho constrói como aliena o ser humano.

Com isso dá-se à natureza do ser humano compreender e descobrir o seu modo de agir no mundo, pois o ser age sobre o meio ambiente, natural e social, reflete e adquire um novo entendimento sobre as coisas, produz uma ou várias ações, complexas ou não, por meio do trabalho que é uma fonte de humanização do ser humano desumanizado. Portanto, o ser humano diferencia-se do animal na sua forma de viver e de utilizar a natureza. Mas, essa diferença se dá a partir de sua própria ação, exceto na relação com o macaco. F. Engels intitulava no século XIX sobre o papel do trabalho na transformação do macaco em homem, pois são parecidos e afirma que o trabalho é que criou o homem. Daí a denominação básica da diferença entre ambos.
A alienação surge do produto do próprio trabalho e da própria ação do ser humano que trabalha. O trabalho produz o necessário para a sobrevivência do ser humano e na sociedade capitalista o trabalho também assume a condição de estimular a acumulação para gerar mais riqueza. O trabalho que aliena contem dentro de si a possibilidade de autoconstrução do ser humano. Assim, pode-se dizer que o trabalho constrói e/ou aliena o ser humano. Dessa forma, o ser humano manifesta-se na intenção de modificar o meio ambiente para suprir suas necessidades que poderá construí-lo ou aliená-lo. Seria interessante recorrer ao velho Marx sobre a questão do trabalho como construtivo e como alucinante do ser humano, para que possamos ter uma melhor compreensão e reflexão filosófica sobre o capitalismo, a economia e as ideologias que permeiam estas representações.
O educador e o educando são seres individuais e sociais, constituídos na trama contraditória crítica e alienativa que interage o processo educativo. Eles são os sujeitos da história que se constroem ao lado dos outros seres humanos e, também, são objetos da história que sofrem a sua influência. Em termo educativo o educador é um ser sempre visto como o responsável e aquele que dá direção ao ensino e o que participa do processo de formação/transformação do educando. O educador aprende na formação de novos sujeitos ativos da história. Neste sentido, educador e educando se relacionam realizando juntos, em comunhão, o processo educativo.
Há uma reflexão importante sobre o educador e seu papel humano enquanto construtor de si mesmo que acontece por meio da ação. Trata-se de entender o educador como criador e criatura ao mesmo tempo. O educador sofre as influencias do meio em que vive e se relaciona, é condicionador e condicionado por meio do exercício da docência. O educador como ser humano se diferencia substancialmente de um pássaro como a águia, mesmo sabendo que deva ensinar seus educandos a se tornarem águias. Assim, na práxis pedagógica o educador tende a adquirir um nível de cultura que dá a direção ao ensino e à aprendizagem, pois toma o papel de mediador entre a cultura acumulada em processo de construção permanente da humanidade. O educando, por sua vez, sofre a influencia do educador que constrói determinadas representações simbólicas em seu educando e o enriquece de saberes acumulados da sociedade, inserindo-o num universo até então desconhecido. O educador, que constrói no educando saberes coletivos da sociedade e transforma o seu ser individual, exerce o papel de um dos mediadores sociais entre a sociedade e o educando. Dessa forma, observa-se que o educador não é o mesmo professor que conhecemos, pois o professor tem um papel e o educador tem outro. O educador se diferencia do professor porque precisa ir além para que possa desenvolver seu papel. Neste caminho, o educador deve possuir algumas qualidades de compreensão da realidade e do meio em que se envolve. Trata-se realmente de um comprometimento político e de uma competência profissional para transformar a realidade na qual vive. Caso não haja uma compreensão da realidade, o educador não consegue desempenhar seu papel na práxis pedagógica e acabará caindo na tentação sistemática de vivenciar suas experiências docentes pautadas numa lógica de reprodução.
O educador não poderá ser ingênuo em relação à realidade que vive e trabalha. Uma vez que o educador deva ter essa compreensão da realidade e ter um comportamento ético com a sociedade em que vive com a plena clareza de sua ação, planejada, deverá trabalhar sempre na perspectiva da execução de seus ideais porque educador sem ideal não é educador. Não existe educador sem ideal e sem opções. O educador precisa conhecer bem o campo cientifico no qual atua, com a necessidade da competência para desempenhar, com efeito, a atividade que trabalha. Uma vez que se ensina geografia ele tem que conhecer bem esta ciência, assim como outras tantas ciências, a saber: matemática, história, português, sociologia etc. O educador também deve possuir habilidades e recursos de ensino para possibilitar a aprendizagem dos educandos. Para ser educador é preciso desejar ensinar, ter paixão na atividade, estar em sintonia afetiva com o que faz, pois ensinar não simplesmente ir para uma sala entre quatro paredes e despejar uma quantidade de conteúdos e não usar uma metodologia técnica especifica para o conteúdo apresentado. Neste sentido, o educador precisa deter recursos e técnicas que facilitem os procedimentos de ensino.
Para ser educador não basta ter contrato numa escola ou emprego de funcionário público. O educador tem que ter compromisso político, uma competência técnica e, principalmente paixão pelo que faz. Um professor que trabalha sem comprometimento somente por causa do salário, sem estrutura, sem competência, atrapalha a aprendizagem dos educandos e o próprio funcionamento da entidade escolar, além de transformar os educandos e educandas em novas vítimas sociais. O educador, assim como o educando, possui uma determinação compreensiva da realidade na qual vivem. Por meio da ação, ambos se tornam sujeitos ativos que se constroem ou se alienam no processo. Nesta relação dentro da práxis pedagógica, o educador é o sujeito que busca nova determinação critica da cultura, novos conhecimentos e habilidades, novos modos de agir, sempre a serviço do outro sujeito, a saber, os educandos.
Dentro dessa perspectiva, o educando é como massa a ser informada como sujeito de direitos, capaz de construir-se desenvolvendo seus sentidos de inteligências. O educando é um sujeito que necessita da mediação do educador para reformular sua cultura, abranger novos conhecimentos e desenvolver habilidades. Assim, o educando é um sujeito que possui capacidades que necessita da mediação da cultura que o possibilitará fazer a ruptura com o seu estado espontâneo. A não apropriação da cultura elaborada faz com que os sujeitos humanos permaneçam carentes de consciência. Dessa maneira, seja no trabalho ou na escola, o educador deve sempre estar atento ao fato de que o educando é um sujeito, assim como ele, com capacidades de crescimento, de aprendizagem, condutas e inteligências, criatividade e julgamento. A preocupação dos educadores deve estar pautada na formação de sujeitos, na formação de seres humanos que são os educandos. Quando negamos isto ao educando o tornamos em um ser alienígena, um ser perfeitamente manipulável pelas classes dominantes.
Como ninguém é obrigado a aceitar a idéia do outro, continuo com a idéia de que educadores e educandos são antes de tudo, seres humanos em processo de humanização constante. Com isso, precisa-se reconhecer e compreender que o educando necessita ser tratado adequadamente a partir de seus condicionantes econômicos, culturais, afetivos, políticos e religiosos. Com tais princípios respeitados, educador e educando caminharão juntos, em comunhão, onde um criará as condições necessárias para que o outro se desenvolva sistemática e permanentemente. Com certeza, precisamos repensar a vida discente de uma forma critica neste mundo globalizado e tecnológico e repreender as atividades docentes para que ousem novamente sonhar com um mundo diferente. Dessa forma, educadores e educandos estarão realmente construindo satisfatoriamente o processo de ensino-aprendizagem que os torna sujeitos da práxis pedagógica.

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

A democracia entrou na fábrica



Indubitavelmente a democracia é o melhor modelo de organização política que a humanidade já excogitou. No entanto, lá onde se introduziu no contexto de relações capitalistas de produção, vive em permanente crise. Por sua própria lógica interna, tais relações produzem desigualdades sociais e exclusões que corroem pela base a idéia mesma de democracia. Democracia que convive com miséria e exploração se transforma numa farsa e representa a negação da própria democracia. É notório que a democracia sempre parou na porta da fábrica. Lá dentro vigora, com elogiosas exceções, a ditadura dos donos e de seus administradores. Não obstante esta contradição, nunca cessa a vontade de fazer da “democracia, valor universal”, sonho imorredouro do notável teórico italiano, Norberto Bobbio, ou a “democracia sem fim” de Boaventura de Souza Santos, quiçá o melhor pensador político português, quer dizer, a democracia como projeto a ser realizado em todos os âmbitos da convivência humana e indefinidamente perfectível.
Em todas as partes, se procura romper o pensamento único e o modo único de produção capitalista, inventando formas participativas de produção e abrindo brechas novas pelas quais se possa concretizar o espírito democrático.
Recentemente, tive a oportunidade de assistir o exercício democrático de produção dentro de uma fábrica de cerâmica na cidade de Neuquén no sul da Argentina, na porta de entrada da Patagônia. Trata-se da Cerâmica Zanon, que pertencia a um grupo econômico multinacional, cujo dono principal era Luis Zanon, da empresa Ital Park, testa de ferro da privatização das Aerolineas Argentinas e um dos cem empresários mais ricos na Argentina. Este empresário, em 2001, estava prestes a decretar a falência da empresa. Chegou a demitir 380 operários e, ao mesmo tempo, tomava milionários empréstimos de vários organismos financeiros, para com a falência sair enriquecido. Tratava-se, portanto, de uma falência fraudulenta, como depois foi provado.
Os operários resistiram, começaram a se organizar e se articular com outras entidades sindicais, movimentos sociais, universidades, igrejas e diretamente mobilizando a sociedade civil local e até a nacional. Todos os intentos por parte da polícia de desalojá-los foram frustrados. Os operários assumiram a direção da fábrica de forma democrática, organizaram a complexa produção de cerâmica, de alta qualidade, com maquinaria moderna de origem italiana. Decretada a falência em 2005, trocaram o nome da fábrica. Agora se chama “Fasinpat”(fabrica sin patrones). Democraticamente ajustaram os departamentos, introduziram a rotatividade nas funções para todos poderem aprender mais, fizeram parcerias com a universidade local. Não só. A fábrica não se reduz a produzir produtos materiais mas também cultura, com biblioteca, visitação de escolas, shows multitudinários no grande pátio, colaboração com os indígenas mapuche que ofereceram sua rica simbologia assumida na produção. Lá trabalham 470 operários produzindo mensalmente 400 mil metros quadrados de vários tipos de cerâmica de comprovada qualidade.
Fazia gosto de ver o rosto dos operários desanuviados, libertos da servidão do trabalho alienado, contentes de estar levando avante a democracia real nas relações produtivas que se revertiam em relações humanizadoras entre eles. Sua postulação é que o Estado exproprie a fábrica, sem pagar as dívidas por terem sido fraudulentas e entregue a gestão aos próprios operários a serviço da comunidade através de obras públicas como construção de casas populares, postos de saúde, colégios e outros fins sociais. Como se depreende, a democracia pode sempre crescer e mostrar seu caráter humanizador.

Leonardo Boff, teólogo.

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Dom Luiz Cappio recebe prêmio internacional



Águas para a paz

A relação entre os usos das águas e a paz é tema de romaria, caminhada, seminário, debates, manifestações culturais e dia mundial de jejum coletivo na entrega do Prêmio Pax Christi International.

Salvador - Entre os dias 16 e 19 de outubro, milhares de pessoas são esperadas em Sobradinho, norte da Bahia, durante a 5ª Romaria das Águas e entrega do Prêmio pela Paz da Pax Christi Internacional (2008 Pax Christi International Peace Award), ao bispo Dom Luiz Cappio e às organizações e movimentos sociais, povos e comunidades tradicionais, envolvidos na luta pela revitalização e contra o projeto de transposição das águas do rio São Francisco.
A programação inicia no dia 16, à noite, com uma sessão solene na Câmara Municipal. O Seminário Revitalizar o Rio para a Vida em Paz, abre a sexta-feira (17) com a participação de representantes das comunidades e organizações populares daquela região. As palestras e debates sobre modelo de desenvolvimento terão foco na revitalização popular, aquela a partir dos problemas dos ecossistemas e das necessidades reais e iniciativas das comunidades, como instrumento para uma cultura de paz. No mesmo dia, à noite, uma Celebração Eucarística na Capela de São Francisco deve relembrar os 24 dias de jejum de Dom Cappio, entre novembro e dezembro de 2007. Na ocasião será lançado o Dia Mundial de Jejum pela Paz e Soberania Alimentar.
Este dia de jejum acontecerá durante o sábado (18). O gesto chama a atenção para a tendência mundial em concentrar a produção agrícola em grandes empresas e com altas tecnologias, agora potencializadas pelos combustíveis de origem vegetal, em detrimento da produção alimentar e da agricultura camponesa, com graves riscos ambientais. Ao mesmo tempo questiona o modelo de consumo egoísta e alienado - um dos fatores responsáveis pelo escândalo da fome no mundo e pelo agravamento da crise ecológica. Encerrado o dia de jejum com a entrega do Prêmio Pax Christi, às margens do Rio São Francisco, ao pé da Barragem de Sobradinho, espera-se a adesão de centenas de grupos e milhares de pessoas em Sobradinho, em outras cidades, estados brasileiros e mundo afora.
No Brasil, em particular, toda a programação questiona os grandes projetos na Bacia do São Francisco, além da transposição, a expansão indiscriminada do agro e hidronegócios, agrocombustíveis, novos perímetros irrigados, mineração e siderurgia, barragens, usinas, ferrovias, minerodutos, etc. Bancados com incentivos e recursos públicos, minimizam não os impactos, mas as responsabilidades pública e privada com as graves conseqüências sociais e ambientais.
A entrega do prêmio começa com uma celebração inter-religiosa, ainda no sábado a noite, às 20h. Líderes católicos estarão juntos com pastores de várias igrejas cristãs, mães-de-santo e pajés indígenas. Um testemunho vivo da paz como fruto das relações de respeito e convivência harmoniosa entre diferentes mas iguais.
Ao término da celebração romeiros seguem em caminhada durante três horas, por cerca de quatro quilômetros. Ao longo do percurso, quatro paradas marcarão a vigília de todos pela paz, com depoimentos de representantes dos demais premiados além do bispo Dom Luiz Cappio.
A chegada às margens do rio São Francisco, deve acontecer no início da madrugada e será o momento final. Uma representante da Pax Christi Internacional estará no Brasil para fazer a entrega do prêmio a Dom Cappio e a representantes do povo, como expressão do reconhecimento e incentivo à continuidade da luta popular em defesa das águas, da terra e de toda a vida..

O prêmio
O Prêmio pela Paz é outorgado por Pax Christi Internacional, anualmente desde 1988, a homens e mulheres que defendem a paz e a não-violência em qualquer parte do mundo. Dom Cappio é o terceiro brasileiro a receber. O primeiro foi a sindicalista Margarida Alves, que recebeu postumamente, em 1988. O segundo foi o membro do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos, Sérgio Vieira de Mello, morto vítima de um atentado terrorista no Iraque.
Dom Luiz Flavio Cappio, bispo da diocese de Barra (BA), escolhido para receber o prêmio em 2008 convive há mais de 30 anos com as comunidades do São Francisco. Entre 1993 e 1994 fez uma peregrinação de um ano entre a nascente e a foz do rio, denunciando seu estado deplorável e animando as comunidades à luta em sua defesa. Em 2005 e 2007 fez dois jejuns pela revitalização e contra o projeto de transposição. A entrega será marcante também por acontecer no Brasil e pela primeira vez fora da sede européia da Pax Christi.

A Pax Christi Internacional
A Pax Christi Internacional foi fundada na França, em 1945, como um movimento de reconciliação entre franceses e alemães após a Segunda Guerra Mundial. Constitui-se em movimento católico e uma Rede pela Paz, Respeito aos Direitos Humanos, Justiça e Reconciliação em regiões devastadas por conflitos. Baseia-se na crença de que a paz é possível e que os círculos viciosos da violência e da injustiça podem ser quebrados. Hoje conta com mais de 100 Organizações-Membro e atua em mais de 50 paises dos cinco continentes. No Brasil seu representante é a Comissão Pastoral da Terra – CPT. A Pax Christi tem status consultivo junto à ONU, à Unesco e ao Conselho da Europa.

Os proponentes
A entidade que encabeçou a proposição de Dom Luiz Cappio para o prêmio foi o SERPAJ – Serviço Paz e Justiça. O líder dessa organização é o Prêmio Nobel da Paz, Adolfo Pérez Esquivel, artista argentino que se notabilizou pela luta em defesa dos Direitos Humanos na Argentina e na América Latina. A ele se somaram mais de cento e cinqüenta (150) representantes de movimentos sociais, reunidos na Conferência dos Povos do São Francisco e do Semi-Árido, entre os dias 25 e 27 de fevereiro de 2008, em Sobradinho.

Maiores informações:
Clarice Maia – Comunicação Articulação São Francisco Vivo: (71... / 9236-9841
Ruben Siqueira – Comissão Pastoral da Terra (71... / 9208-6548
Luciano Bernardi – Comissão Pastoral da Terra (71...
Cristiane Passos – Comunicação Comissão Pastoral da Terra: (62...
Paróquia de Sobradinho – 74.3538-2432 / P. João Sena – 9962-6845
CPT Juazeiro – 74.3611-3550