domingo, 30 de novembro de 2008

Tempo das Religiões?



Pe. J. Ramón F. Cigoña, SJ

Até faz pouco tempo, profetas secularizados auguravam o fim de Deus e também das religiões. Estas eram projeções psicopatológicas ou meros sedativos sociais e alienantes, diziam eles. Aos poucos, foi se construindo o modelo neoliberal, com sua absoluta liberdade de mercado. Muitos não duvidaram de segui-lo e adorá-lo, como o mais novo bezerro de ouro!
Se “poderoso cavaleiro é Dom Dinheiro”, ninguém podia imaginar que estava ele interiormente doente e com os dias contados!
O noticiário nacional e internacional disse, com todas as letras, que o sistema financeiro americano deu sinais de ter entrado na fase inicial da crise sistêmica, com o contágio de um número crescente de instituições financeiras. O conflito chegou ao coração da economia, o sistema de crédito, afetado pela desconfiança das pessoas e instituições. Esta desordem econômica tem enorme impacto humano, pois muitas pessoas estão perdendo não só seus trabalhos, como também seus benefícios, suas casas e até a própria segurança.
A escandalosa busca por recompensas econômicas excessivas, sem qualquer responsabilidade social, é exemplo de um comportamento irresponsável e antiético. O “mercado” é meio e não fim na vida dos humanos! Nunca o bem-estar das financeiras poderá estar acima das pessoas!
O que aconteceu? Uma ganância exorbitante e práticas desonestas exploraram escandalosamente inúmeras pessoas concretas e vulneráveis. Não só as pessoas, mas a sociedade tornou-se refém do totalitarismo econômico. Os fundamentalismos, mesmo os econômicos, são desumanos e perigosos.
Se no século transcorrido passamos do dogma religioso para o dogma econômico, hoje vemos com clareza que o dinheiro não pode ser fator decisivo na vida e nos relacionamentos das pessoas. Quando isso acontece, vira um ídolo com pés de barro!
Junto com a macro-crise econômica e o declínio de ideologias positivistas do período histórico anterior há agora um retorno evidente do “religioso” em âmbito pessoal e também público. É o tempo das religiões?
O avanço do progresso e da modernização precisa da presença religiosa. As religiões são cada vez mais convidadas a partilhar sua sabedoria milenar no debate de temas humanos. Nesse debate global, e dentro de uma laicidade positiva, elas têm uma palavra a dizer em nome da fé e da razão. A intolerância, ideológica ou econômica, nunca é democrática!
O modelo neo-liberal que vivemos é uma ameaça à dignidade humana e à sobrevivência das nações. O deus dinheiro, tão exaltado e adorado por muitos, trouxe um desastre irreparável para os seus seguidores. Em tempos de crise sempre é bom rezar!

Fonte:
http://amaivos.uol.com.br/templates/amaivos/amaivos07/noticia/noticia.asp?cod_noticia=11173&cod_canal=46

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Que crescimento é desejável para um mundo em crise?


Maria Clara Lucchetti Bingemer

Em meio à crise, a pergunta: como vai ficar o crescimento do mundo? Governos e mercados preocupados com uma possível recessão mundial, as reflexões dos analistas mais lúcidos – no Brasil, Leonardo Boff, Frei Betto e outros têm escrito sobre isso - a busca por crescimento econômico está matando o planeta e precisa ser revista.
Aparentemente todos os esforços envidados com loucura pelas grandes potências para salvar a economia, o crédito, o dinheiro, de nada adiantarão se não se tentar construir outro modelo civilizatório. Todos os esforços para desenvolver combustíveis limpos, reduzir as emissões de carbono e buscar fontes de energia renováveis podem ser inúteis enquanto o sistema econômico continuar em busca de crescimento a qualquer preço.
Parece ser que para sair da crise, é urgente remodelar a economia, pois o grande problema na equação do crescimento econômico está no fato de que, enquanto a economia busca um crescimento infinito, os recursos naturais da Terra são limitados e o atual modelo econômico não faz outra coisa senão sugá-los mais ainda e ininterruptamente.
Revistas especializadas chamam a atenção para algo digno realmente de nota: parece que os economistas não perceberam um fato simples que para os cientistas é óbvio: o tamanho da Terra é fixo, nem sua massa nem a extensão da superfície variam. O mesmo vale para a energia, água, terra, ar, minerais e outros recursos presentes no planeta. Percebe-se a Terra esgotada já, não conseguindo sustentar a economia existente e seu delírio predatório e poluidor. Por isso, muito menos será capaz de sustentar uma economia que além do que já é, continue a crescer, e crescer desordenadamente.
O sistema, porém é baseado na busca do crescimento e do lucro acima de tudo. E isso faz com que o planeta caminhe para um desastre ecológico e também econômico, devido ao desejo incontrolável de fazer além da medida com recursos medidos e limitados. Para evitar a catástrofe que está vindo daí e já se anuncia apavorante, é preciso mudar o foco do nosso crescimento de quantitativo para qualitativo. Crescer com qualidade significará colocar limites nas taxas de consumo dos recursos naturais, não estimular vertiginosamente o consumo provocando o endividamento coletivo e a falência do sistema.
Parece ser que a lei do mercado não vale para a ecologia. Os valores das mercadorias e os preços podem aumentar, devido a inovações tecnológicas ou melhor distribuição. Mas esse crescimento não pode ir em proporção tal que o planeta não consiga mais sustentá-lo e suportá-lo.
Diante dos índices da crise que, quando parece que arrefecem repontam com mais fúria, ameaçando mesmo a rica Europa de concreta e dura recessão, seria preciso aprender a lição que dela nos vem. Não há desmando que não cobre seu preço logo adiante. Portanto, o crescimento desordenado acarretará necessariamente um desgoverno dos recursos e da qualidade de vida. Antes que seja tarde, é preciso tirar da crise aquilo que ela tem de bom: o aprendizado da sobriedade e do respeito pelos limites dos recursos naturais e humanos.

Fonte:
http://amaivos.uol.com.br/templates/amaivos/amaivos07/noticia/noticia.asp?cod_noticia=11190&cod_canal=44

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Meu nome é crise


Frei Betto+

Há tempos não se falava tanto de mim como agora. Tudo por causa de uma crise no sistema financeiro. A África anda, também há tempos, em crise crônica – de democracia, de alimentos, de recursos; quem fala disso?
Existe ameaça de crise do petróleo; governantes e empresários parecem em pânico frente à possibilidade de não poder alimentar 800 milhões de veículos automotores que rodam sobre a face da Terra.
No último ano, devido ao aumento do preço dos alimentos, o número de famintos crônicos subiu de 840 milhões para 950 milhões, segundo a FAO; mas quem se preocupa em alimentar miseráveis?
Meu nome deriva do grego krísis, discernir, escolher, distinguir – enfim, ter olhos críticos. Trago também familiaridade com o verbo acrisolar, purificar. Ao contrário do que supõe o senso comum, não sou, em si, negativa. Faço parte da evolução da natureza.
Houve uma crise cósmica quando uma velha estrela, paradoxalmente chamada supernova, explodiu há 5 bilhões de anos; seus cacos, arremessados pelo espaço, deram origem ao sistema solar. O sol é um pedaço de supernova dotado de calor próprio. A Terra e os demais planetas, cacos incandescentes que, aos poucos, se resfriaram. Daqui a 5 bilhões de anos o sol, agonizante, também verá sua obesidade dilatada até se esfacelar nos abismos siderais.
Todos nós, leitores, passamos pela crise da puberdade. Doeu ver-nos expulsos do reino da fantasia, a infância, para abraçar o da realidade! Nem todos, entretanto, fazem essa travessia sem riscos. Há adolescentes de tal modo submersos na fantasia que, frente aos indícios da idade adulta, que consiste em encarar a realidade, preferem se refugiar nas drogas. E há adultos que, desprovidos do senso de ridículo, vivem em crise de adolescência...
Resulto da contradição inerente aos seres humanos. Não há quem não traga em si o seu oposto. Quantas vezes, no trânsito, o mais amável cidadão arremessa o carro sobre a faixa de pedestres; a gentil donzela enfia a mão na buzina; o aplicado estudante acelera além da conveniência! Não é fácil conciliar o modo de pensar com o modo de agir.
Estou muito presente nas relações conjugais desprovidas de valores arraigados. Sobretudo quando a nudez de corpos não traduz a de espíritos e o não-dito prevalece sobre o dito. Felizmente muitos casais conseguem me superar através do diálogo, da terapia, da descoberta de que o amor é um exercício cotidiano de doação recíproca. O príncipe e a fada encantados habitam o ilusório castelo da imaginação.
Agora, assusto o cassino global da especulação financeira. Acreditou-se que o capitalismo fosse inabalável, sobretudo em sua versão neoliberal religiosamente apoiada em dogmas de fé: o livre mercado, a mão invisível, a capacidade de auto-regulação, a privatização do patrimônio público etc.
Dezenove anos após fazer estremecer o socialismo europeu, eis-me a gerar inquietação ao mercado. A lógica do bem-estar não lida com o imprevisto, o fracasso, o inusitado, essas coisas que decorrem de minha presença. Os governantes se apressam em tentar acalmar os ânimos como a tripulação do Titanic, enquanto a água inundava a quilha, ordenou à orquestra prosseguir a música...
Tenho duas faces. Uma, traz às minhas vítimas desespero, medo, inquietação. Atinge aquelas pessoas que não acreditavam em minha existência ou me encaravam como se eu fosse uma bruxa – figura mitológica do passado que já não representa nenhuma ameaça.
Minha outra face, a positiva, é a que a águia conhece aos 40 anos: as penas estão velhas, as garras desgastadas, o bico trincado. Então ela se isola durante 150 dias e arranca as penas, as garras, e quebra o bico. Espera, pacientemente, a renovação. Em seguida, voa saudável rumo a mais 30 anos de vida.
Sou presença freqüente na experiência da fé. Muitos, ao passar de uma fé infantil à adulta, confundem o desmoronar da primeira com a inexistência da segunda; tornam-se ateus, indiferentes ou agnósticos. Não fazem a passagem do Deus “lá em cima” para o Deus “aqui dentro” do coração. Associam fé à culpa e não ao amor.
Acredito que este abalo na especulação financeira trará novos paradigmas à humanidade: menos consumismo e mais modéstia no padrão de vida; menos competição e mais solidariedade entre pessoas e empreendimentos; menos obsessão por dinheiro e mais por qualidade de vida.
Todas as vezes que irrompo na história ou na vida das pessoas, trago um recado: é hora de começar de novo. Quem puder entender, entenda.

Fonte:
http://amaivos.uol.com.br/templates/amaivos/amaivos07/noticia/noticia.asp?cod_noticia=11193&cod_canal=53

+ Frei Betto é escritor, autor de “Cartas da Prisão” (Agir), entre outros livros.

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Festa na aldeia Krahô-Kanela


Texto publicado pela Agência de Notícias Adital e pela Revista Eclesiática Brasileira em 2006.

História de Deus na História da gente. Nas tribos primeiras, raiz Ameríndia do povo da terra, da Terra sem Males, dos males da terra. Nos dias antigos do rio, da lua, da dança. Na História violenta de tantas conquistas e tantos martírios. Na História teimosa de tanta bravura vencendo os impérios do lucro e da morte. Na História de Deus feito gente na história. Na história da gente tornando-se Deus, na única História da terra e do céu. (Dom Pedro Casaldaliga - Bispo Emérito da Prelazia de São Félix do Araguaia - MT).


Todo grupo humano é culturalmente festeiro. Festejamos tudo na vida. Desde o nascimento de uma criança até mesmo festejamos a irmã morte em algumas culturas. Festar ou festejar é uma atitude humana-animal. Quantas e quantas vezes somos acordados pelo som festeiro dos pardais em suas danças nas manhãs que surge anunciando um novo dia porvir. Quantas vezes vemos o grupo de andorinhas deslizando numa atitude de festa nos ares e no vento de um cair da tarde anunciando a noite que está para chegar. A própria natureza é uma festa constante, pois tudo é vida. Nem mesmo a morte nos separa da vida, pois até mesmo a morte não é capaz de nos separar da vida que é uma Festa.

Na sociedade ocidental, judaico-cristã, festeja-se a fé, a vida, o aniversário, a memória, amor, a colheita, a produção etc. Tudo se festeja. A vida é uma festa e a festa é símbolo da vida. A aldeia está em festa. A maloca Krahô canta sua alegria, pois estão em marcha, retornando ao lar que lhes é de direito.

Hoje a maloca está em festa. É uma festa humano-divina, pois Deus também dança a alegria de um povo. Não seria demais pensarmos na promessa de Deus ao Povo de Israel no passado e promessa de Deus hoje ao Povo Krahô-Canela, a saber: "Eu vi muito bem a miséria do meu povo que está no Egito. Ouvi seu clamor contra seus opressores, e conheço os seus sofrimentos. Por isso, desci para liberta-lo do poder dos egípcios e para faze-lo subir dessa terra a uma terra fértil e espaçosa, terra onde corre leite e mel..." (Ex 3, 7-8). Deus viu o sofrimento de seu povo Krahô que está em Tocantins. O mesmo Deus de Israel ouviu o clamor do Povo Krahô contra seus opressores, ouviu o clamor por libertação. O poder dos latifundiários e do poder local não foi suficiente para se esconderem de Deus que os conhece e sabe de suas ações contra os Krahô. O Deus da Vida e da Festa se fez Krahô e habita entre nós, pois fez com que os índios subissem ou retornassem ao seu verdadeiro lar, uma terra que historicamente lhes pertence e que lhes foi tomada por seus opressores. Por isso, esse Deus da Vida e da Festa é um Deus Justo.

Para os cristãos, Deus se fez gente entre nós e ao se fazer gente, assumiu nossa história de alegrias e tristezas. Vale lembrar o que diz a Constituição Pastoral Gaudium et Spes acerca do papel da Igreja no mundo de hoje: "As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo" (n. 01). Deus dança e a Igreja também dança de alegria junto com aqueles que sofreram para conquistar o direito de cidadania legítimo, direito a terra.

Depois de tantas cruzes no caminho do Povo Indígena Krahô-Canela, enfim a Páscoa-Ressurreição. Deus hoje se faz índio na esperança e nos sonhos desse povo irmão. Para nós cristãos tornou-se motivo de alegria pascal a participação nessa luta pela conquista da homologação das terras a estes irmãos e irmãs. Sabemos que muitas expressões de solidariedade se destacaram para conseguir pressionar o Ministério Público e o Juiz Federal com o objetivo de promover uma verdadeira rede de solidariedade humana para com os Krahô-Canela.
Os Krahô-Canela conseguiram suas terras. Sua luta foi nossa luta. Suas tristezas foram nossas tristezas que geraram gestos concretos de solidariedade por todo o Brasil. Localizados no estado do Tocantins, contaram com o apoio de muitos e muitas que colaboraram na campanha organizada pelos Direitos Humanos e por agentes de pastorais, entre eles, destaco dois personagens centrais: Dom Heriberto Hermes, bispo católico da Prelazia de Cristalândia e Padre Brás Rodrigues da Costa, sacerdote da Igreja Anglicana. Com seus testemunhos muitos outros entraram nesta rede de solidariedade criada para apoiar a conquista dos direitos de cidadania dos Krahô-Canela.

Foram quase 30 anos de angústia, dor, sofrimento, cruzes e a implantação de um projeto de genocídio a uma cultura, a um povo. Uma cultura da morte foi implantada para exterminar, massacrar e humilhar uma cultura que não conhecia as violentas formas de atuação do império do lucro, do medo e do capital. Para a lógica do capital, matar índios e tomar suas terras parece ser eticamente correto, pois nessa mesma lógica os índios não precisam de tanta terra.

Terra conquistada, sonhos recriados. Um novo sol urge na esperança. É Páscoa-Ressurreição na história de um povo que vence os males da terra. É hora de celebrar a festa da vida de um povo da terra, povo Krahô que também sonha com uma Terra Sem Males. É hora de repensar a cultura, os gestos, os símbolos, as tradições, os cantos e encantos milenares. É chegada a hora de rever a caminhada na alegria da conquista da Mãe-Terra, Pacha de todos os povos da terra, Gaia de sempre. Neste momento de alegria e de esperança torna-se propício o discernimento da caminhada feita na história. O caminho continuará apresentando novos desafios que serão assumidos para serem conquistados e outros superados. Mas, a dimensão da Festa jamais poderá ser perdida no tempo e no espaço, pois é nela que o Povo continuará resistindo e mantendo os rumos da história assumido pela luta social realizada para se (re) conquistar a tão esperada Terra Prometida.

A vida venceu a morte. O projeto de vida venceu, ao menos neste caso, o projeto da morte. Por isso, hoje tem festa na aldeia Krahô-Canela. Tem vinho novo no espírito da terra conquistada que é de todos e todas, ou seja, da comunidade Krahô.

sábado, 22 de novembro de 2008

A negritude e a liberdade



Marcelo Barros

Enquanto o mundo inteiro comemora a chegada do primeiro negro ao posto de presidente dos Estados Unidos e muitos refletem sobre as conseqüências disso para a América do Norte e para o mundo, o Brasil recorda a figura de Zumbi, líder negro do Quilombo dos Palmares, assassinado no dia 20 de novembro de 1697. Ele teve a sua cabeça exposta em um poste, numa praça do Recife, para que ninguém mais ousasse liderar um quilombo ou pretendesse ajudar os escravos a serem livres. Ao invés de pôr fim às lutas pela liberdade, a morte de Zumbi, ao contrário, suscitou da parte de muitos escravos a consciência de que não poderiam deixar que a morte desse grande líder fosse inútil. A memória do seu martírio se tornou incentivo para que negros, índios e brancos se unissem em torno de um projeto de igualdade humana e de um Estado cujas raças e etnias pudessem ser cidadãs de pleno direito. Até hoje, esta democracia racial plena não é um direito adquirido. No Brasil, as pessoas de raça negra ainda têm menos condições de acesso à educação, ao trabalho remunerado e à plena cidadania. E não só isso. José Vicente, reitor da Universidade Zumbi dos Palmares, em São Paulo, afirma: “A cor negra da pele de homens e mulheres, assim como sua raça e cultura própria, foram motivos de crueldade humana e de barbárie que mancharam e continuam manchando a dignidade da humanidade” (Carta Capital, 12/11/2008,p. 60).
Apesar das muitas repressões ao povo negro e da imensa capacidade dos seres humanos de reinventar formas variadas de escravidão, mais de três séculos depois, o Brasil continua cheio de quilombos e comemora este 20 de novembro (de 2008) como o dia nacional da união e consciência negra. Em um Brasil multicultural e pluralista, a maioria da população tem influência das culturas negras que formaram com outras expressões culturais o variado tecido da brasilidade. Neste conjunto, sem dúvida, o povo afro-descendente tem uma função própria. Ele vem de populações que, mesmo nas condições mais adversas e na pobreza mais extrema sabe dançar a vida e expressar alegria e confiança. Quem não precisa disso? Como garantir que os filhos e filhas das culturas afro-descendentes possam cumprir sua missão própria no conjunto da sociedade brasileira?
Nos Estados Unidos, a cada ano se lembra a memória do pastor Martin-Luther King, mártir da igualdade racial e do direito das minorias negras. Vários analistas salientaram que a celebração anual do aniversário do reverendo Luther King ajudou muito a que os cidadãos norte-americanos descobrissem que era possível eleger um negro como presidente do país.
No Brasil, muitos setores da sociedade, vítimas do racismo disfarçado e gentil que se esconde sob o véu da democracia racial, não vê com simpatia esta luta. O próprio assunto de culturas afro-descendentes os assustam. É preciso repetir a estes companheiros que a celebração de um dia da “união e consciência negra” nada tem a ver com exaltação racial ou com supremacia de uma cultura, menos ainda com revanchismo ou revolta. Ao contrário, é proposta pedagógica e litúrgica de diálogo e integração. Em várias cidades, como no Rio de Janeiro, Salvador, Maceió e Recife, que tornaram o 20 de novembro feriado municipal, a educação da juventude e o ambiente de convivência social tem progredido na direção da justiça.
Em Goiânia, por iniciativa do vereador Sérgio Alberto Dias, o Serjão, que tem se dedicado à causa da igualdade racial, a Câmara Municipal de Goiânia aprovou o projeto de lei 434 de 13 de novembro de 2007 que institui o dia 20 de novembro como feriado municipal também em Goiânia. Agora este projeto só depende da assinatura do prefeito que, esperamos, não tarde.
As cidades de Goiás, Pirenópolis e outros núcleos de colonização do Centro-oeste ainda guardam muros de pedra, construídos pelos escravos. Até pouco tempo, os garimpos eram mantidos por trabalhadores negros. Apesar de, aparentemente, guardar menos traços da cultura negra do que o Nordeste e alguns estados do litoral, o Centro-oeste, ao contrário, tem uma grave dívida social e moral com relação à população negra, libertada da escravidão e posta na rua, sem indenização, nem condições para se integrar social e economicamente na sociedade brasileira. As Igrejas cristãs, muitas vezes ou quase sempre, cúmplices da crueldade da escravidão, discriminaram as culturas negras e demonizaram suas religiões ancestrais.
Ainda bem que Deus é amor e não tem os mesmos preconceitos. Seu Espírito sopra onde quer e abraça todas as culturas. Por isso, Deus veio sempre encontrar seus filhos e filhas dos quilombos e terreiros. Num mundo sem esperança e consolação, eles se tornam para toda a humanidade, testemunhas de que Deus é ternura e beleza. Viva o dia da união e consciência negra!

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Massacre de Felisburgo, Movimentos pedem justiça


No dia 20 e novembro de 2004, 16 pistoleiros fortemente armados e encapuzados, incluindo o latifundiário Adriano Chafik Luedy, invadiram o acampamento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), situado na fazenda Nova Alegria, localizada no município de Felisburgo, na região da Comarca do Jequitinhonha (MG), e que já estava ocupada desde 2002 por um total 200 famílias.
Adriano Chafik e seus jagunços assassinaram cinco trabalhadores do movimento Sem Terra. Outros 13 trabalhadores ficaram feridos, 30 barracos foram queimados e uma escola foi destruída. O caso retrata a violência relacionada à questão agrária no Brasil e a grande influência que os donos terras possuem principalmente nos municípios do interior.

Adriano é um réu confesso, mesmo assim o MST e demais movimentos sociais temem pela impunidade do fazendeiro e lutam para o desaforamento do caso, ou seja, para que Adriano seja julgado em Belo Horizonte (MG) local onde ele possui menos influência política. O julgamento ainda não tem data para ocorrer.

Em entrevista à Radioagência NP, o integrante da direção estadual do MST que trabalha na região da Comarca desde 2001, Ênio Bonemberger, fala sobre a situação das famílias, a fazenda Nova Alegria e sobre o julgamento do fazendeiro.

Radioagência NP: Qual a situação da fazenda Nova Alegria hoje?

Ênio Bonemberger: A Justiça determinou a demarcação de 568 hectares da fazenda que são terras devolutas e é essa onde as famílias estão morando hoje e trabalhando, e o restante da área que é em torno de 1700 hectares está em processo de desapropriação por interesse social. E as famílias continuam lutando pela fazenda, os supostos proprietários abandonaram essa fazenda, e hoje então quem controla a produção no local são essas famílias.

Radioagência NP: As famílias da dos Sem Terra continuam sendo ameaçadas?

EB: Continuam porque os irmãos do Adriano têm outra fazenda no município, então cada vez que há um encontro sempre há provocações. Então tudo isso a gente tem registrado em novos boletins de ocorrência. Mas para se ter uma idéia, antes do massacre havia pelo menos sete boletins de ocorrência e que foram encaminhados para o Ministério Público com as ameaças de morte e dentre as autoridades locais, ninguém tomou providência.

Radioagência NP: A que se deve o fato de a justiça saber dessas ameaças e não fazer nada?

EB: Para se ter uma idéia, no município de Felisburgo a polícia militar é composta por três policiais e que são fortemente ligados ao grupo [fazendeiros]. Nessas cidades do interior quem tem mais poder econômico tem o poder político. Então a influência nas autoridades locais é muito grande por parte dos fazendeiros.

Radioagência NP: Fale sobre o desaforamento do processo?

EB: Nós conseguimos uma vitória importante que foi o desaforamento do processo. Então quando acontecer o julgamento desse massacre, este será em Belo Horizonte (MG). Isso é uma vitória porque a influência do fazendeiro sobre um júri da capital seria bem menor. Há uma maior chance de imparcialidade e de punição para o crime. Se o caso fosse julgado na Comarca do Jequitinhonha há uma grande probabilidade de não haver condenação, como já aconteceu em outros casos lá no Jequitinhonha.

Radioagência NP: Mesmo sabendo que Adriano já confessou que participou do massacre, há ainda o temor que de que ele seja inocentado?

EB: Há o temor sim, porque a gente sabe que no Brasil há impunidade, e que os massacres que continuam acontecendo são fruto dessa impunidade. Então nós acreditamos ainda numa condenação, mas sempre há o temor uma absolvição e isso não seria nenhuma novidade se acontecesse no Brasil.

De São Paulo, da Radioagência NP,
Juliano Domingues.

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

A novidade Obama



Eduardo Hoornaert

No dia 5 de novembro pp., assisti emocionado, como milhões de pessoas pelo mundo afora, à vitória de Obama pela TV. A tela mostrava a emoção estampada em tantos rostos, no calor da hora, não só nos Estados Unidos, mas no mundo inteiro. Fiquei pensando: onde está a novidade de Obama? O que ele revela ao mundo? Porque tanta emoção? Penso que a maior novidade está no rosto mestiço de Obama. Como todos sabemos, Obama é filho de um pai africano negro e de uma mãe americana branca. Ele revela, talvez pela primeira vez na história da humanidade com tanta clareza, o rosto mestiço que é o rosto da grande maioria das pessoas. Mais uma vez se verifica aqui como a realidade física antecede a compreensão mental, pois a mestiçagem não é uma novidade (no Brasil o processo mestiço já tem quinhentos anos), mas o termo ‘mestiço’ ainda não é usado nos meios de comunicação em massa. Nos comentários acerca da ‘cor’ da pele de Obama aparece o termo ‘negro’, ‘preto’ (sem a conotação negativa de ‘nigger’) e, mais recentemente, ‘afro-americano’ (um eufemismo). Mas não li nem vi em nenhum comentário dos grandes meios de comunicação o termo ‘mestiço’, ou ‘moreno’. Isso demonstra, de um lado, que os termos forjados na época do colonialismo (branco – negro; branco – índio; civilizado – selvagem; cristão – pagão; progressista – atrasado; desenvolvido – subdesenvolvido; primeiro mundo – terceiro mundo; educado - ignorante) ainda não desapareceram de nosso vocabulário e, de outro lado, que não se consegue expressar em palavras a novidade que aparece no rosto de Obama.
Mas com sua aparição no centro da cena mundial, é possível que a consciência mundial chegue a analisar melhor o equívoco contido no pseudo-conceito ‘raça’. ‘Raça’ não é um conceito, é um engano, um produto da mentalidade colonial. Pois um conceito, para ter consistência filosófica, tem de ‘prender’ algo real (como se prende um objeto pela mão). Ora, o termo ‘raça’ não prende nada, só expressa um preconceito. Não é um conceito no sentido filosófico do termo.
A realidade consiste na complexa formação do ser humano a partir do encontro sexual entre pessoas que, atualmente, provêm muitas vezes de continentes, culturas, religiões, mentalidades e classes sociais diferentes e divergentes. Somos todos – de certa forma – mestiços, pois o processo vem de longe. A filosofia grega (da qual somos herdeiros) sempre ocultou a mestiçagem. Os gregos eram mestiços, mas a literatura sempre ocultou esse fato (veja o livro ‘Black Athenas’).
O rosto de Obama mostra que ele é mestiço, suas palavras não. Diante desse silêncio (que é o silêncio dos meios de comunicação e da política em geral), não se sabe ao certo como o desocultamento mestiço, operado pela exposição mundial do rosto de Obama, vai repercutir em nível mundial. Com Obama na presidência do país mais poderoso (e mais exposto) do planeta, é de se esperar uma aceleração de consciência acerca de um preconceito que, desde os tempos da colonização européia, vem dividindo a humanidade.
Se isso acontecer, o governo de Obama pode ser um sucesso, inclusive no nível econômico. Pois a economia repousa sobre uma base psicológica. Sem confiança (que é uma disposição psicológica) não funciona a economia, como pudemos verificar nas últimas semanas. A confiança (ou desconfiança) move a economia, como move a política. Não sem razão, Obama declarou, no discurso da vitória: ‘Confiem em mim’. Será que ele conseguirá transmitir confiança e, ao mesmo tempo, ocultar as verdadeiras razões da simpatia de tanta gente por ele? Em última análise, as relações mercadológicas são psicológicas. Com confiança no ‘futuro’, o país vai para frente. O carisma de Roosevelt e de Kennedy consistiu em ativar essa confiança, e vamos ver se Obama conseguirá imprimir confiança nos americanos (ocultando o rosto dos que nele votaram). Pois os votantes em Obama não são os votantes em Roosevelt e Kennedy.
Os norte-americanos ‘brancos’ estão feridos na sua auto-estima e no seu orgulho, por causa dos recentes evoluções do mercado financeiro. Desde os ‘pais fundadores’, eles não duvidam: Deus está com eles. In God we trust.. Com muito acerto, Obama repete termos dos pais fundadores, como ‘change’, ‘we can do it’, ‘we are América’, que são termos de um exacerbado nacionalismo. Vamos ver para onde nos leva esse novo surto de nacionalismo norte-americano em tempos de crise econômica, pois em nenhum momento – no seu discurso inaugural – Obama abordou temas especificamente globalizantes. Ele não se dirigiu ao mundo, mas falou aos norte-americanos.
Por isso penso que não se devem colocar esperanças demasiadas no governo de Obama. Sua novidade consiste antes de tudo no desocultamento de sentimentos e emoções desde muito abafados e silenciados. 92 % das pessoas de origem africana votaram por ele, assim como 74 % dos chamados ‘hispânicos’ (veja ‘Carta Capital’ de 12/11, p. 53). São esses números que expressam a novidade Obama. Resta saber se o cidadão Obama vê as coisas dessa maneira.

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

FSM 2006 e a esperança dos povos do Sul


Artigo publicado na Agência de Notícias Adital em 2006.


Chegamos a mais um Fórum Social Mundial. O VI Fórum Social Mundial tem uma nova metodologia por ser policêntrico, ou seja, descentralizado de um único local de encontro e acontecerá em níveis continentais. O FSM terá três cidades sedes, a saber: Bamako em Mali na África onde o encontro acontecerá de 19 a 23 de janeiro; Caracas na Venezuela representando as Américas onde se reunirão de 24 a 29 de janeiro; e em Karachi no Paquistão que representa o encontro do continente asiático que deve acontecer no mês de março de 2006 devido ao terremoto ocorrido em outubro de 2005.

Mais uma vez, os povos do sul se reunirão com o objetivo de refletir a caminhada e rever as alianças dos pobres em relação aos blocos hegemônicos do mundo que se reúnem todos os anos em Davos no Fórum Econômico Mundial. Neste ano, sentimos falta das expectativas de Porto Alegre. Mas, Porto Alegre está viva na descentralização realizada para outras cidades sedes. O espírito é o mesmo, a esperança é a mesma. Além disso, será um momento importante de se avaliar as novas estratégias de ação movidas pela nova conjuntura política que se cria no mundo.

No continente mais excluído do mundo, a África, os povos do sul estarão reunidos em Bamako, no Mali sub-divididos em 10 eixos temáticos assim constituídos: 1. Guerra, segurança e paz; 2. Liberalismo mundializado: apartheid em escala mundial e empobrecimento; 3. Marginalização do continente e dos povos, migrações, direitos econômicos, sociais e culturais; 4. Agressão contra as sociedade campesinas; 5. Aliança entre o patriarcado e o neoliberalismo e marginalização das lutas das mulheres; 6. Cultura, mídia e comunicação: crítica e reconstrução, violências simbólicas e exclusões; 7. Destruição dos ecossistemas, diversidade biológica e controle dos recursos; 8. Ordem Internacional: Nações Unidas, instituições internacionais, direito internacional e reconstrução da frente do sul; 9. Comércio internacional, dívida e políticas econômicas e sociais; 10. Alternativas que permitirão avanços democráticos, o progresso social e o respeito da soberania dos povos e do direito internacional.

O encontro de Bamako permitirá a discussão desses eixos de forma transversal o que nos indica um grande avanço na metodologia dos Fóruns, além de uma maior participação de delegações de países com poucas condições financeiras para subsidiar recursos se tal encontro acontecesse num único local. No entanto, em Bamako, quatro eixos nos chamam muito a atenção: o eixo 2 nos traz a discussão acerca do "apartheid" não mais em escala continental ou sul-africana, mas em escala mundial tendo como efeito o empobrecimento generalizado por todo o mundo devido à exclusão dos povos do sul na aplicação eficaz de políticas econômicas e sociais para o desenvolvimento sustentável. O eixo 4 representa a economia do continente africano baseada na agricultura de subsistência e que também enfrenta as tentações do Agro-Negócio e do Hidro-Negócio. Seus efeitos são devastadores porque impõe uma agressão silenciosa e silenciada às sociedades campesinas que encontram dificuldades em se manter na terra devido as pressões do capital especulativo das indústrias agro-pecuárias. O eixo 5 revela a aliança entre a concepção de patriarcalismo com a ideologia neoliberal, pois ambas possuem um objetivo em comum, ou seja, marginalizar a luta das minorias, em especial, a luta das mulheres. E, por fim, o eixo 10 que tratará das alternativas democráticas frente ao avanço do neoliberalismo como vírus que contamina a todas as nações. Todos esses eixos poderão estar provocando novas reações, novos debates e novas esperanças nas militâncias africanas que permitirá novas conquistas e novas alternativas, principalmente, em se tratando de nações que se encontram no desafio de superação da miséria e da fome.

Devido aos terremotos, o encontro de Karachi no Paquistão acontecerá em março de 2006, mas já estão definidos os eixos temáticos. A Ásia entra neste cenário do FSM com três grandes antagonismos: a crise entre Israel e Palestina, a crise geral do Oriente Médio e das invasões imperialistas dos Estados Unidos no Afeganistão e no Iraque e com uma economia desigual e sem limites entre países vizinhos como é o caso da Arábia Saudita com Bangladesch ou entre Coréia do Sul e Índia. Além disso, o caso do Irã com a retomada das experiências com bombas nucleares preocupa o mundo e, principalmente, os Estados Unidos que são os únicos que querem continuar a fazer tais experiências exatamente por se sentirem o Grande Império.

Também com 10 eixos temáticos que estão assim sub-divididos de forma transversal, a saber: 1. Imperialismo, militarização e conflitos armados na região e movimentos pela paz; 2. Direitos aos recursos naturais, controle da população e privatização e disputas fronteiriças; 3. Desenvolvimento do comércio e globalização; 4. Justiça social, Direitos Humanos e Governo; 5. Estado e Religião, pluralismo e fundamentalismo; 6. Nação, nacionalidades e identidades étnicas e culturais; 7. Estratégias de desenvolvimento, pobreza, desemprego e deslocamento; 8. Movimentos populares e estratégias alternativas; 9. Mulheres, patriarcalismo e mudança social; 10. Meio ambiente, ecologia e sustento.

Numa região de conflitos, o eixo 1 talvez possa gerar expectativa no cenário mundial já que teremos uma maior representatividade de delegações assim como na África e na América. O encontro de Karachi tem um significado especial por duas razões: Primeiro, por estar sendo realizado no Paquistão que sofreu recentemente com a perda de milhões de vida devido ao terremoto que abalou metade do país. Segundo, por estar situado numa região de conflito armado e não podemos esquecer que o Paquistão foi um dos braços dos Estados Unidos na ocupação do Afeganistão e do Iraque.

Três eixos me chamam a atenção até porque são eixos importantes para se entender o contexto do continente asiático mergulhado pelos conflitos armados, pela forte presença religiosa e pelo agravamento do meio ambiente que causou desastres com o Tsunami em 2004 e o Terremoto do Paquistão em 2005. O eixo 1 que refletirá a questão do imperialismo estadunidense, econômico e também o chamado imperialismo ocidental. Além disso, a questão da militarização e dos grupos armados que possuem duas características fundamentais: querem uma mudança política e uma autonomia na soberania das nações (principalmente, as nações muçulmanas) e agem enquanto grupo armado em nome de Alá por serem todos islâmicos. Este cenário nos dá uma visualização complexa do contexto existente no Oriente Médio. Mas, também no mesmo eixo se tratarão dos avanços dos movimentos pela paz, pois mesmo entre os islâmicos, judeus e cristãos existem os que procuram a defesa da paz enquanto saída urgente e necessária para combater o próprio Império que utiliza o mesmo terrorismo dos grupos armados como Taleban e outros.

O eixo 5 é uma complementação do eixo 1. Ele nos dá o entendimento do cenário político da região que consegue misturar Estado e Religião numa mesma esfera como é o caso do Irã que está desafiando os Estados Unidos e o Ocidente com as pesquisas e experiências com o Urânio. A questão se trata de entender o cenário baseado em Estados Islâmicos (fundamentalistas) e em Estados Religiosos Islâmicos (pluralistas). A Arábia Saudita é um Estado religioso, centro da religião islâmica (a se ver a cidade de Meca), mas respeita a diversidade religiosa. Ao contrário do Irã. Na verdade, são grupos islâmicos diferentes como se vê todos os dias nos noticiários entre Xiitas e Sunitas no Iraque. São islâmicos, discípulos de Maomé (Profeta), mas com visões diferenciadas acerca da política, da economia e da própria religião. Existem estas divisões no cristianismo e também no judaísmo. No próprio catolicismo, temos a Opus Dei (A Obra de Deus - em especial para os detentores do capital e a elite) e a Teologia da Libertação (a opção preferencial pelos pobres) que são cristãos católicos com uma visão praticamente oposta em relação ao Evangelho, a Igreja e a Doutrina. A questão é que os muçulmanos se matam entre si e, até que se saiba, ainda não se viu nada parecido no cristianismo. E, por fim, o último eixo que se trata do Meio Ambiente, o eixo 10, uma nova preocupação que ronda o universo dos asiáticos devido aos últimos desastres naturais. Mas, também este eixo tem uma profunda ligação com o eixo 1, pois as nações estão preocupadas com o ecossistema e querem fazer com que todos os países cumpram o Protocolo de Kyoto, principalmente, os Estados Unidos, o Grande Império que se negou a assina-lo.

O encontro do FSM das Américas se dará na capital venezuelana, Caracas. É um local propício, pois nestes últimos dois anos, a Venezuela se tornou por meio de seu Presidente Hugo Chávez uma pedra nos caminhos dos Estados Unidos. Mas, outros fatores nos fazem refletir acerca desse encontro, tais como: as políticas econômicas conservadoras de Lula no Brasil e Kirchner na Argentina; as denúncias contra o Partido dos Trabalhadores no Brasil e o desafio de Lula para superar a crise política; os avanços da esquerda na América do Sul, em especial, na Bolívia com o líder cocaleiro indígena Evo Morales eleito Presidente, o Peru com um descendente indígena, Toledo, na Presidência e, principalmente, o grande opositor do Império, Hugo Chávez na Venezuela. No Uruguai com Tabaré Vasquez, as esquerdas conseguiram eleger pela primeira vez um governo com ideais socialistas, resta saber se não cairá na tentação de comer a maçã do neoliberalismo. E, por fim, no Chile é eleita a primeira mulher à Presidência, Michelle Bachelet representante da Democracia Cristã e do Socialismo. O Chile se tornou um país de centro-esquerda assumido com Ricardo Lagos e agora sua candidata Michelle continuará, ao que tudo indica, na mesma direção.

Como podemos notar, esperanças e expectativas não faltam na América Latina. A Alca continua ameaçando, mas se começa a esboçar um fortalecimento do Mercosul com a entrada da Venezuela na Cúpula. Resta saber se o Mercosul atingirá toda a América Latina, até mesmo o México, com sua política de defensionismo de G. W. Busch. O FSM no encontro de Caracas irá proporcionar amplos debates sub-divididos em 06 eixos transversais, a saber: 1. Poder, política e lutas pela emancipação social; 2. Estratégias imperiais e resistências dos povos; 3. Recursos e direitos pela vida: alternativas ao modelo civilizatório depredador; 4. Diversidades, identidades e cosmovisões; 5. Trabalho, exploração e reprodução da vida; 6. Comunicação, educação e cultura.

Em Caracas o debate tem como pano de fundo o novo cenário político que está se formando. O eixo 1 e 2 estão amplamente correlacionados. É evidente que as estratégias imperiais é fazer com que a Alca seja aceita por todos atendendo aos interesses da economia norte-americana de Busch. No entanto, este sonho de Busch está cada vez mais longe devido ao novo cenário político que desponta. Talvez, a Colômbia seja um dos únicos países da América do Sul a ser fiel e dependente da política armamentista de Busch. Na América Latina, ainda temos o México como vilão dos pobres países da América Central. Mas um bloco aparece neste cenário que poderá fortalecer as experiências alternativas dos movimentos sociais e das redes sociais. Destacam-se: Venezuela, Peru, Bolívia e Uruguai, Argentina e Brasil correm por fora, pois não sabem os futuros políticos que adotarão e o Chile, mesmo com uma política econômica conservadora e socialmente assistencialista, desponta com um grande aliado dessa nova força e fortalece o eixo progressista da América Latina.

É preciso destacar o que une as três cidades sedes. Parece-me que a temática do imperialismo e tônica das reflexões. O imperialismo não se trata somente dos Estados Unidos como Grande Império e grande líder do G8, mas de todos os países desenvolvidos que não respeitam as soberanias nacionais e tentam implantar políticas internacionais à força para os países em processo de desenvolvimento. O modelo neoliberal se encontra desgastado e já se inicia seu processo de superação. Aos poucos, estamos convictos de que alternativas aparecerão como já estão ocorrendo.

Assim, o FSM tem mais uma vez a missão de resistência ao modelo hegemônico no cenário mundial. O deus mercado está incerto. É preciso aproveitar o momento de instabilidade e aplicar o golpe fatal e fazer emergir novas formas de participação e de políticas que possam restabelecer o respeito com as minorias.

No Brasil, a política se encontra desgastada pelo processo de mortificação constante ao Partido dos Trabalhadores e ao Governo de Lula. As forças reacionárias já se organizam por meio do PSDB e do PFL. O FSM de Caracas terá um grande papel ao se refletir sobre a problemática política brasileira. O futuro de Lula, na qual o povo brasileiro tinha tanta esperança, está totalmente incerto. Seu governo está desacreditado pelas alianças realizadas. Há quem diga que não se governa sem alianças. Outros dizem que é possível manter um bloco coeso e alternativo. De fato, Lula que era símbolo do maior partido político da América Latina, assumiu determinadas alianças com setores antagônicos da sociedade brasileira que ainda encontram na política a velha prática do coronelismo, do clientelismo e do caciquismo. Resta saber se os erros continuarão no futuro, pois caso cesse poderá nascer uma nova forma de fazer política, que respeite as decisões de segmentos da sociedade organizados, por exemplo, por meio do FSM, uma esperança para os povos do sul.

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Mapa dos Perímetros da Irrigação do Rio São Francisco


Aceleração do Crescimento na Bacia do Rio São Francisco

‘ACELERAÇÃO DO CRESCIMENTO’ NA BACIA DO RIO SÃO FRANCISCO: O TRAÇADO DE CONFLITOS E INJUSTIÇAS SOCIAIS E AMBIENTAIS

Relatório - Denúncia


São Francisco Vivo - Terra e Água, Rio e Povo




Articulação Popular pela Revitalização do São Francisco
Sobradinho 16 de outubro de 2008

Introdução
Em Sobradinho (BA), nos dias 18 e 19 de outubro de 2008, Dom Luiz Cappio e o povo do São Francisco e do Semi-árido receberam o Prêmio Pax Christi Internacional pela luta em defesa do Rio São Francisco e do Semi-árido brasileiro.

No Brasil e no mundo os Movimentos Sociais e Organizações Civis se levantaram pela Soberania Alimentar, fazendo da Semana da Alimentação, criada pela Organização das Nações Unidas (ONU), uma jornada de lutas. Foi um libelo em defesa da Água, bem vital, e do acesso à Alimentação, direito fundamental, contra os grandes negócios privados em torno da Água como recurso hídrico, da Terra e da Comida, que ameaçam sua destinação primordial - a Vida de Todos. Um gesto pela Paz, fruto da Justiça Social e Ambiental, como quiseram nossos jejuns, orações e os enfrentamentos populares concretos.

Desde sempre o povo do São Francisco tem lutado, afinal são as vítimas principais das conseqüências nefastas dos sucessivos "ciclos do desenvolvimento" impostos autoritariamente: currais de gado, hidrelétricas, irrigação, "reflorestamento", mineração, entre outros. Mais recentemente, os Movimentos e Organizações Sociais e as lutas populares concretas da Bacia do Rio São Francisco têm procurado se articular para fortalecer a defesa do Rio e de seu povo.

Como resultado disso, nasceu a Articulação Popular pela Revitalização do São Francisco, congregando entidades civis de todo canto da Bacia e também de fora dela. Têm se realizado um sem número de viagens, visitas, intercâmbios, reuniões, encontros, assembléias, acampamentos, manifestações e, sobretudo, lutas concretas. O povo da Bacia - Indígenas, Quilombolas, Beiradeiros, Pescadores, Vazanteiros, Geraiseiros, Brejeiros, Catingueiros e Populações Urbanas - deu-se a conhecer e conheceu suas misérias e belezas, e, sobretudo, está trocando experiências de luta. Além disso, enfrentou com novo ímpeto o modelo de desenvolvimento predatório instalado na Bacia, com suas velhas e novas caras. E ainda, passou com mais segurança a propor outros modos de viver e produzir e de se relacionar com os bens da terra, entre as pessoas, povos e comunidades, e com o Criador. Essa população tem prioridade para apontar os erros presentes e indicar caminhos futuros para o meio-ambiente em que vive e que é seu principal patrimônio - dom do Rio São Francisco.

A ocasião é propícia para um relato do que temos encontrado nestes anos, sobretudo, no momento atual. É o que fazemos, apresentando esse Relatório-Denúncia sobre as ameaças que pesam sobre o "Velho Chico", seus afluentes, suas terras e sua gente. Aos antigos projetos, vêm se somar, em escala inédita, novos empreendimentos econômicos, de infra-estrutura e de exploração dos bens naturais e das populações da Bacia. Projetos agrícolas (principalmente para produção de agrocombustíveis), pecuários, de mineração e reflorestamento (eucalipto), e de infra-estrutura, como hidrelétricas, ferrovias, minerodutos e de transposições, estão sendo implantados, incentivados pelos Governos Federal e Estaduais, com altos financiamentos públicos e privados, voltados para exportação sem salvaguardas sociais e ambientais.

Tudo em nome de um falso desenvolvimento, que se apelidou de "sustentável" no intento de esconder sua natureza essencialmente economicista e predatória, descomprometida com as outras dimensões da vida. Ora infenso aos limites impostos pelas mudanças climáticas, ora fazendo deles novas chances de (eco)negócios. O equilíbrio dos ecossistemas e dos biomas da Bacia está em risco como nunca esteve antes. Os estudos e medidas "mitigadoras" de impactos não são para valer, não modificam substancialmente projetos, menos ainda os impedem. As demandas internacionais por matérias-primas, manufaturados, produtos agrícolas, agrocombustíveis e por commodities lucrativas, com a conivência e a irresponsabilidade de nossas autoridades, significam risco fatal para o combalido "Velho Chico" e para o complexo de vida que tem nele o seu eixo.

Esse relatório baseia-se em informações empíricas confrontadas com dados secundários de fontes confiáveis, listadas em notas de rodapé. Aliás, é grande a dificuldade de acesso a informações. Os projetos públicos ou privados, na maior parte, são verdadeiras "caixas pretas" e a desinformação faz parte do seu modo de operar. O que vem a público é quase só marketing. Por isso, mais um motivo para este relatório-denúncia. O objetivo é também a socialização da informação como meio de qualificar a luta pelo São Francisco Vivo - Terra e Água, Rio e Povo.

1. AGROCOMBUSTÍVEIS
A onda dos agrocombustíveis, que o marketing oficial insiste em chamar "biocombustíveis", está trazendo um inédito e avassalador assédio sobre terras, águas e territórios da Bacia do Rio São Francisco.

BahiaBio
O caso mais notório é o Programa do Governo da Bahia chamado BahiaBio (1). Através dele 510 mil hectares perfazem o potencial de Cana irrigada na Bacia do São Francisco, 300 mil no Oeste Baiano, 20 mil no Projeto Salitre, 60 mil no Canal do Sertão, 40 mil no Projeto Baixio do Irecê, 60 mil no Médio São Francisco, 30 mil no Rio Corrente. A uma média de um litro por segundo por hectare, para irrigar 510 mil ha são necessários 510 mil litros por segundo em média, ou seja, 510 m³. Um litro de etanol pode consumir até 3.600 litros de água para ser produzido com a cana irrigada. O Comitê de Bacia do São Francisco, baseado em dados da AgênciaNacional de Águas (ANA), diz que no São Francisco restariam apenas 25 m³/s, que a Transposição consumiria. De onde vão tirar tanta água para tanta cana e etanol? (2)

O governo baiano criou uma política de incentivos fiscais para a produção de etanol no Estado, com percentuais de abatimento da carga tributária entre 4,5% e 18% sobre o ICMS, conforme o tipo de álcool produzido, sua destinação e a localização da empresa. Uma das áreas mais cobiçadas é o Oeste Baiano, no Médio São Francisco. Conforme o BahiaBio, a Região deverá atingir, até 2015, uma área de 300 mil hectares plantados com cana-de-açúcar, tornando-se um novo pólo sucroalcooleiro no país (3).

"Fundos norte-americanos de pensão estão de olho em 30 mil ha de terra às margens do Rio São Francisco. O objetivo é plantar a cana irrigada para produzir 260 milhões de litros de álcool combustível e gerar 96 MW de energia com a queima do bagaço. (...) Aliás, no calor do debate mundial biocombustíveis x alimentos, alguns advogam a concentração da produção mundial dos bio em regiões onde os balanços energéticos são vantajosos, como Brasil, Índia e África". (4)

A estimativa da Associação dos Agricultores e Irrigantes da Bahia (AIBA) é que, em dez anos, a cana ocupe 20% de toda a área plantada no Cerrado, o que representará 300 mil ha. Exemplos disso são os dois grandes projetos no município de São Desidério (BA), o grupo Agrícola Xingu, braço da Multigrain, investe R$ 570 milhões em um projeto que prevê o plantio de 30 mil ha de cana irrigada com água do rio Guará, divisa com o município de Correntina-BA.

Outro empreendimento no setor já está sendo articulado para implantação, no município de Luis Eduardo Magalhães, por um grupo de investidores paulistas (5).

Cana na Região das Nascentes
A Região conhecida como "Nascente do São Francisco" está localizada no Centro-Oeste Mineiro e compreende municípios como São Roque de Minas, Lagoa da Prata, Bambuí, Luz, Arcos, Pains e outros. Aí está localizada a nascente histórica e geográfica do São Francisco e vários afluentes.

Na década de 1960, foi implantada uma usina de cana no município de Lagoa da Prata, na fazenda Luciânia. A família de Antônio Luciano, um dos maiores grileiros de terra de Minas Gerais, era a proprietária. Os proprietários, visando o plantio de cana e facilidade de acesso para transporte, fizeram um corte de 300m no leito do Rio São Francisco, no local onde o Rio fazia uma curva fechada de aproximadamente 7 km. Vários impactos ambientais foram observados, como supressão da vegetação, assoreamento, destruição de lagoas, poluição, entre outros.

A monocultura da cana ocupa 85% do município de Lagoa da Prata e parte de municípios vizinhos. A produção é garantida por poucas fazendas arrendadas e que vendem a produção à usina. Atualmente a indústria de etanol é de propriedade da transnacional francesa Louis Dreyfus (6).

Expansão da cana e de seus impactos no Alto São Francisco
Por volta de 2005, iniciou-se um processo de expansão da monocultura da cana de açúcar (de etanol) para os municípios de Iguatama, Bambuí, Luz, Arcos e Capitólio. Uma usina da empresa Total está sendo implantada em Bambuí, e está planejada mais uma no município, duas em Arcos e uma em Iguatama. A expansão, incentivada pelas empresas Louis Dreyfus e Total, se dá com arrendamento das propriedades da região (contratos em torno de 10 anos e com valor de R$ 35 por ha ao mês) e compra de cana de fornecedores (em menor número) (7).

Os impactos ambientais que já se observam: desmatamento ilegal; monocultivos afetam a conservação da bio e agrodiversidade; queimadas e poluição do ar com a palha da cana queimada, causadora de sujeira e doenças; contaminação das águas e do solo por agrotóxicos e chorume; destruição de lagoas, afetando a reprodução da ictiofauna; abuso da água (a Louis Dreyfus retira água diretamente do leito do São Francisco, para processamento industrial e em etapas da produção da cana);

Produção de etanol no Médio - Barra (BA)
A Celltrion é a empresa coreana que, em parceria com o governo da Bahia, vai adquirir uma área de aproximadamente 40 mil ha (quatro fazendas à margem do Rio Grande), no município de Barra (BA), para plantio de cana e produção de etanol. O investimento é de R$ 500 milhões. A previsão é de que a unidade agroindustrial produza 1,3 milhões de litros de etanol por ano e 50 MW/h de energia elétrica. A perspectiva é de plantar 27 mil ha de cana-de-açúcar, com capacidade de moagem de até 2,7 milhões de toneladas anuais. Novidade, o projeto viria com regularização fundiária para as comunidades ao redor e unidades de conservação. As responsabilidades social e ambiental já viriam prontas. Não há como não suspeitar: as terras regularizadas das comunidades seriam também para plantar e fornecer cana para as usinas da Celltrion?

Cana no Sub-médio
O Canal do Sertão terá 456,8 km passando pelas terras mais férteis do sertão pernambucano, podendo irrigar aproximadamente 150 mil ha. O projeto foi defendido ainda durante a gestão anterior do Governo do Estado (Jarbas Vasconcelos), que apoiaria as obras de Transposição desde que fosse incluído o Canal do Sertão. O canal vai duplicar a área irrigada entre Pernambuco e Bahia. Usinas de etanol seriam cinco. O acordo com o Grupo Itochu já havia sido firmado pelo Governador do Estado em recente visita ao Japão (8). Na empreitada estariam também a Petrobrás, Votorantim e Odebrecht.

Um dos grandes perímetros de irrigação que vai ser alimentado por este canal é o projeto de irrigação Cruz das Almas com 28 mil ha, em Casa Nova (BA) destinado à produção de biocombustíveis e fruticultura (9).

A AGROVALE, no Projeto Tourão, em Juazeiro-BA, maior área de cana irrigada do mundo (16 mil ha), está em franca expansão. Investiu R$ 12 milhões de capital próprio na ampliação da área plantada de cana na safra de 2007. Até 2011, gastará R$ 60 milhões para ampliar sua área irrigada de 16,5 mil para 21 mil hectares. O que vai elevar sua capacidade de moagem de cana para 2,2 milhões de toneladas anuais (10). Em 1984, a AGROVALE foi responsável pelo despejo de vinhoto no Rio, matando toneladas de peixes, alterando para sempre o ecossistema aquático no trecho atingido.

Cana no Baixo
No Baixo São Francisco são intensificados pólos de irrigação de monocultivos, especialmente de cana para a indústria sucroalcooleira, como a Usina Paisa do Grupo Toledo, em Alagoas, que assim como outras têm um intensivo gasto de água e é uma das principais poluidoras das lagoas marginais, rios e afluentes, não respeitando nem áreas de proteção ambiental. Além da cana, grandes plantações de coco, fumo, mamona, etc., impactam territórios tradicionais, como as comunidades de Betune, Marituba do Peixe, Ponta Mufina, Serrão, Ilha do Aurélio (AL), etc. (11)

2. PERÍMETROS IRRIGADOS
Atualmente existem em operação 24 perímetros irrigados da Cia. de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (CODEVASF). Com a implantação dos projetos que ainda estão em fase de estudo ou de implantação, a demanda total de terra irrigável será de 640 mil ha, e a de água para irrigação vai atingir 648 m³/s.

Só os novos projetos de irrigação (ver planilhas anexas) vão exorbitar o consumo de água na Bacia. Os Projetos Salitre, Pontal e Baixio de Irecê juntos vão consumir 239,1 m³/s, o que corresponde a 68% da demanda total.

No Oeste Baiano, a fronteira agrícola atual na Bacia do São Francisco, a situação da água já é insustentável: oito dos principais rios das últimas duas grandes bacias afluentes do São Francisco - as dos rios Corrente e Grande -, estão em sua capacidade-limite de uso para atividades agrícolas, segundo a Secretaria de Recursos Hídricos do Estado (hoje INGA - Instituto de Gestão da Água e do Clima). O consumo é da ordem de 11 bilhões de litros de água por dia para irrigação. "(...) as duas bacias têm áreas totais irrigadas de 145.701 hectares e demandas máximas outorgadas de 11.370.240 metros cúbicos de água por dia (o equivalente a 11 bilhões, 370 milhões e 240 mil litros de água por dia) ou 131,6 metros cúbicos por segundo" (12)

A irrigação, como se pode ver no gráfico abaixo, é a maior consumidora de água da Bacia. A produção de hidreletricidade compromete 70% da vazão regularizada do Rio, mas não retira água.


A preponderância das demandas de água para irrigação tem alto potencial de conflito para outros usos. Não se percebe a preocupação das autoridades com isso, muito menos as políticas estruturais de prevenção a esses conflitos. Tudo que existe é a Política Nacional de Recursos Hídricos, tida como uma das mais modernas, mas submetida aos interesses econômicos e políticos mais poderosos.
Jaíba - MG
O Projeto Jaíba está localizado no Médio São Francisco, no Norte de Minas Gerais, envolvendo os municípios de Mucambinho, Jaíba e Matias Cardoso. Implantado nas décadas de 70/80, pelos militares com apoio do capital japonês (Projeto JICA), como parte do Programa de Desenvolvimento do Cerrado (PRODECER), foi considerado o maior do mundo.

A iniciativa estava com funcionamento restrito, mas foi retomada recentemente, na onda dos agrocombustíveis.

A monocultura da cana vem sendo implantada nas Etapas 2 e 3 do Projeto Jaíba. Atualmente existem 4 mil ha de cana plantados. A empresa SADA implantou uma usina com capacidade de processar mais de 18 mil ha. Eles já adquiriram uma área com essa extensão. Toda a produção é realizada através de pivôs centrais abastecidos com água dos canais retirada do São Francisco. A empresa já tem licenciamento ambiental para implantar mais 10 mil ha. (13)

Baixio do Irecê - BA
O Projeto corresponde a uma área de 59 mil ha, divididas em oito etapas, na Região do Sub-médio São Francisco, sendo que as maiores áreas estão nos municípios de Xique-Xique e Itaguaçú da Bahia. Já recebeuoutorga da Agência Nacional de Águas (ANA) para retirar 58,055 m3/s de água que serão levados por um canal de aproximadamente 87 km. O principal objetivo é a produção de agroenergia - cana de açúcar para etanol e plantas oleaginosas (mamona, pinhão manso, etc.) para diesel, além da fruticultura irrigada. O custo total está estimado em R$ 880 milhões, sendo R$ 547 milhões previstos no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).

Foi formado um consórcio entre a Companhia de Desenvolvimento do Vale do Rio Verde (CODEVERDE), empresa liderada pela Odebrecht, e a estatal líbia LAFICO (Libyan Arab Foreign Investiments), na perspectiva de uma Parceria Público-Privada - PPP. O Ministério do Interior firmou contrato com o Banco Mundial para uma análise crítica dos estudos já feitos e modelagem do projeto. Os estudos iniciais foram realizados por um consórcio formado por incorporadoras e bancos privados, entre eles o Banco Santo André, FNP, Odebrecht, CODEVERDE e LAFICO (14).

O canal principal está em construção pela empresa e já tem 14 km. São 500 famílias atingidas somente na comunidade de Boa Vista, Xique-Xique, local da tomada de água.

Salitre - BA
O Projeto Salitre, no município de Juazeiro-BA, estava em construção e ficou parado desde o final da década de 90, sendo retomado em 2007, com o Plano de Aceleração do Crescimento (PAC). O Projeto de implantação do perímetro de irrigação está numa área total de 67.400 ha, sendo 34 mil ha irrigáveis, com a capacidade para captar 32 m3/s de água no Rio São Francisco. O empreendimento já dispõe de projetos executivos, licenciamento ambiental e outorga de utilização da água. Aproximadamente 45% das obras civis já foram executadas.

No dia 1º de abril de 2007, perto de mil famílias do Movimento dos Sem Terra (MST) ocuparam uma área junto ao canal do Projeto Salitre. Em apenas nove meses, as famílias produziram toneladas de melão, tomate, melância, cebola, quiabo, verduras, entre outros produtos. No dia 19 de junho foram despejadas pela PM e desde então se encontram alojadas na periferia de Sobradinho, sem acesso à água e sem possibilidade de produção (15).

Pontal - PE
O Projeto Pontal, localizado na região semi-árida do Estado de Pernambuco, envolve cerca de 33.526 ha, dos quais 7.717 serão destinados à irrigação (3.588 etapa sul e 4.129 etapa norte), com captação de cerca de 7,8 m3/s de água no Rio São Francisco, com potencial para a fruticultura e agrocombustíveis. Aproximadamente 90% das obras do canal de irrigação da etapa sul já estão concluídos.

Cerca de 2.500 famílias Sem Terra ocuparam área deste Projeto no dia 14 de abril de 2007. Essa ação está entre as maiores ocupações de terra da história do MST em Pernambuco. Em junho de 2008, aconteceu a desocupação pela PM (16).

3. MINERAÇÃO E SIDERURGIA
O Complexo Minerário-Siderúrgico-Madeireiro não só domina o Alto São Francisco, como também é o principal eixo da economia de Minas Gerais. O setor siderúrgico demanda enorme quantidade de energia e carbono, grande parte suprida pelo carvão vegetal. Atualmente as siderúrgicas são abastecidas por carvão produzido nos Cerrados e Caatingas das Regiões do Norte de Minas, Bahia, Goiás e Mato Grosso. A monocultura do eucalipto também abastece esse setor e 75,7% do carvão proveniente dessa atividade são produzidos em Minas Gerais.

Entretanto, segundo dados oficiais, no ano de 2006, foram produzidos no Brasil 35,125 milhões de m³ de carvão, sendo 49% originários de matas nativas - grande parte consumida pelas produtoras de ferro-gusa. Sessenta e seis por cento do carvão produzido no Brasil foram consumidos no Estado de Minas. Até 1988, mais de 80% da produção de carvão tinham origem da mata nativa.

A atividade mineradora vem causando enormes prejuízos à Bacia do São Francisco. Na retirada do minério a vegetação é suprimida, os solos retirados, os lençóis freáticos rebaixados, causando poluição, erosão e assoreamento. Em toda a Bacia, a maior concentração de sedimentos em suspensão é nos afluentes do Alto São Francisco - Paraopeba e Alto/Médio Rio das Velhas.

Em geral os impactos da atividade de produção de ferro-gusa em alto-forno a carvão vegetal se dão na geração de efluentes atmosféricos (material particulado na descarga, manuseio e peneiramento de matérias-primas e no alto-forno); efluentes líquidos (esgotos sanitários e águas pluviais - caracterizadas pela presença de sólidos em suspensão) e resíduos sólidos (finos de carvão vegetal e minério, escória e pó/lama de alto-forno). Além da diversidade dos resíduos, é expressivo o volume gerado, representado em Minas Gerais, apenas nos resíduos sólidos, aproximadamente 3.800 toneladas diárias.

Somam-se a estes os impactos gerados pelo uso da matéria-prima carvão vegetal nos altos-fornos. Parte dos impactos decorre da atividade legalizada: desmatamento, implantação de grandes áreas de monocultura, com plantio de eucalipto, etc. É grande ocorrência de desmatamentos ilegais, em larga escala, sem qualquer licenciamento ambiental, comprometendo o cerrado brasileiro. Aí atua o crime organizado, com falsificação de notas para habilitar o desmate, venda e transporte do carvão, gerando danos ambientais e prejuízos econômicos e tributários ao Estado. A face ainda mais sombria, porém, é a exploração do trabalho infantil e escravo (17).

Avanço da Siderurgia em Minas Gerais
As unidades independentes de produção de ferro-gusa, que hoje totalizam 75 empresas e 118 fornos de carvão vegetal no Estado de Minas Gerais, produzem por ano, acima de 4 milhões de toneladas. Esta atividade é considerada de elevado impacto ambiental, classe 5 (em escala de 1 a 6).

Verifica-se o expressivo crescimento das usinas chamadas "não integradas" (guzeiras), que produzem apenas ferro-guza, de 6.278 em 2001 para 9.467 em 2006, conforme dados do Instituto Brasileiro de Siderurgia (IBS). As guzeiras elevaram sua produção, em 2001, de seis milhões de toneladas para aproximadamente 10 milhões de toneladas em 2006.

A Bacia do Rio São Francisco / MG, em 2001, época do levantamento realizado no Projeto Minas Ambiente, congregava a totalidade das indústrias independentes de ferro-gusa, distribuídas nas sub-bacias do Rio das Velhas (41%), Pará (43%) e Paraopeba (16%), afluentes da margem direita.

A atual legislação ambiental mineira, que incentiva as guzeiras a consumir carvão vegetal, vem sendo alterada para facilitar os licenciamentos. O sistema continua extremamente ineficiente, permitindo que as guzeiras consumam carvão vegetal acima de 10% do permitido e paguem a multa mantendo altos lucros. Ainda são as próprias empresas que fornecem os dados para os órgãos ambientais.

Em Minas Gerais, ocorrem grandes conflitos sócio-ambientais com mineradoras, como no Parque Estadual Serra do Rola-Moça, Serra do Gandarela (Mina Apolo), Serra da Moeda Sul - Serra da Calçada, Serra da Piedade-Caetés. São áreas protegidas sobre jazidas que sofrem pressões e investidas das mineradoras, sem que o Estado esteja se mostrando forte o suficiente para a defesa e a preservação.

Avanço da Mineração na Bahia
O consumo mundial acelerado, impulsionado pela China e pelos países emergentes, inclusive o Brasil, dobra as descobertas de jazidas minerais no País, nos últimos dez anos. Os preços dos metais estão quatrovezes maiores. É visível em toda a Bacia do São Francisco a abertura de exploração mineral.

Na Bacia do São Francisco / Bahia, a exploração do minério de ferro vai colocar o estado em condição de tornar-se o 3º no ranking nacional (18). A Votorantim Metais investirá R$ 24 milhões em exploração mineral na Bahia até o final de 2008 para exploração de zinco nos municípios de Irecê e Mundo Novo, e níquel, em Pedras Altas.

No Médio São Francisco, na Bahia, no município de Caetité, é explorada pela empresa pública Indústrias Nucleares do Brasil (INB) a maior jazida de urânio do Brasil, produzindo 400 toneladas de pasta de urânio por ano. Agora, grande exploração de ferro pela Bahia Mineração Ltda. (BML) está começando na mesma região A ferrovia Oeste-Leste inclui um trecho Caetité/Ilhéus, cujo objetivo está ligado a empreendimentos como este. Incluída no PAC, a ferrovia está em processo de licitação e este trecho será construído pela estatal Engenharia, Construções e Ferrovias S. A. (VALEC) até 2011 (19). Também um mineroduto com o mesmo trajeto Caetité/Porto de Ilhéus já está em fase inicial de implantação.

Existe um grande investimento em pesquisa para exploração de minério, em Campo Alegre de Lourdes, Cobre em Riacho Seco / Curaçá (2.404 ha), e Ferro, Ouro e metais-base (níquel, cobre, fósforo e zinco) em Remanso, Sento Sé, Pilão Arcado, Casa Nova e Campo Alegre de Lourdes (20).

Poluição
O Rio das Velhas, mais especificamente a Região Metropolitana de Belo Horizonte, é responsável pela maior carga poluidora de toda a Bacia do São Francisco. A poluição industrial e mineral, a poluição doméstica e o lixo são os principais vilões da queda da qualidade ambiental da Bacia. Por conta das indústrias, e principalmente de siderúrgicas, as águas estão contaminadas por metais pesados. Nem a Região da nascente do São Francisco escapa. A falta de saneamento básico é o outro fator responsável pela degradação do Rio. A maior parte dos esgotos domésticos cai diretamente nos cursos d’água e o que passa pelas Estações de Tratamento de Esgoto (ETE´s) recebe apenas o tratamento primário. No caso do Arrudas, apesar da estação ter a capacidade, segundo a Companhia de Saneamento de Minas Gerais (COPASA), de tratar 93% do esgoto que cai no córrego, apenas 40% são tratados, pois os demais, clandestinos, não caem na rede de coleta (21).

A maior evidência desta poluição monumental são as cianobactérias, também chamadas "algas azuis", que nos últimos anos, no verão, infestam o Rio das Velhas e através dele, boa parte do Alto e do Médio São Francisco, com graves conseqüências para o abastecimento hídrico, humano e animal e para a pesca e os pescadores.

O caso mais escandaloso é o da contaminação do Rio São Francisco em Três Marias pela Votorantim Metais, que no barranco do Rio, há 40 anos, explora zinco, sem que haja contenção eficiente de rejeitos. Em conseqüência, a mortandade de peixes se agrava a cada ano. Fala-se em até 150 toneladas de peixes mortos, entre os quais cerca de dois mil surubins adultos. Os maiores prejudicados são os pescadores, cuja atividade de subsistência está seriamente comprometida (22).

Este não é o único caso. Em Três Marias, a operação do reservatório pela Companhia Energética de Minas Gerais (CEMIG), em 30 de março de 2007, resultou em 40 ton. de peixes mortos das diversas espécies (23). Na Barragem de Pandeiros, no Norte de Minas, da mesma empresa, aconteceu caso semelhante com a mortandade de 30 ton. de peixes na abertura das comportas (24).

Mas não é só no Alto São Francisco que a mineração tem gerado problemas. No Médio São Francisco, na Bahia, no município de Caetité há muito é explorado urânio. Na época de implantação da mina foi grande a luta das comunidades atingidas e relocadas, por respeito e indenizações justas. Agora, surgem denúncias de contaminação das águas por radiação do urânio. De acordo com reportagem: "análises feitas em amostras de água em locais próximos à mina de urânio de Caetité apontam para índices de radioatividade sete vezes acima do parâmetro estabelecido pela Organização Mundial de Saúde (OMS), de acordo com estudos feitos pelo Greenpeace (...).25 Notícias chegam de que é grande a intimidação e até terrorismo por parte da empresa sobre as vítimas, para que cessem as denúncias...

Uma menina de quatro anos, Tauana Chagas Silva, nasceu sem o braço esquerdo e tem um lado do corpo atrofiado. A comunidade de 300 habitantes da Vila de Juazeiro, no interior de Caetité, está amedrontada, achando que a anomalia é conseqüência da água contaminada. Outros casos são possíveis, conforme conta o motorista Valdemir Silva, 44 anos: "Aqui não brota milho, não brota feijão, pinto nasce com pescoço virado para trás, gado morre misteriosamente e já vi até bezerro nascer aleijado". "Eu mesmo fiquei doente por causa daágua. É dormência nas pernas, nos braços, no corpo inteiro, além de dor de cabeça e pressão alta" (26).

4. CARVOARIAS E EUCALIPTO
A demanda crescente de carvão para as empresas siderúrgicas de Minas Gerais, somada ao declínio da produção local, fizeram as empresas carvoeiras, que operam legal ou clandestinamente, descerem bacia abaixo e atacar o Cerrado e a Caatinga da Bahia, alcançando o Piauí e o Maranhão.

Um relatório reservado do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) revela uma enorme devastação em 24 cidades dos estados de Goiás, Minas Gerais e Bahia para produção de carvão vegetal ilegal. O negócio movimenta cerca de R$ 60 milhões a cada mês. Para transportar essa carga criminosa, os fiscais do IBAMA constataram a circulação mensal de três mil caminhões na região. O cálculo foi feito em apenas três locais de passagem de caminhões entre Bahia e Minas. Um entre Urandi (BA) e Espinosa (MG), outro entre Juvenília (BA), Manga e Montalvânia (MG), e o terceiro entre Cabeceiras (GO), e Arinos (MG). Existem outras 17 rotas de carvão na Região já identificadas pelo IBAMA (27).

Em Pilão Arcado, no Baixo Médio São Francisco, foi encontrada uma carvoaria com 210 fornos. Na Região de Barra, pouco acima, têm-se instalado um grande número de carvoarias. Uma empresa comprou no local uma área de aproximadamente 23 mil ha de terra para a retirada de madeira para o carvoejamento em 540 fornos em ação. O município com maior produção de carvão vegetal do extrativismo no Brasil é Jaborandi (BA), no Alto Médio, com 6,7% da produção nacional.

Num sobrevôo durante a Fiscalização Preventiva Integrada - operação que congrega órgãos federais e estaduais, em agosto de 2008 -, foram encontradas cerca de 140 carvoarias nos municípios de Cocos, Jaborandi, Correntina, Santa Maria da Vitória, Coribe e Brejolândia.

Quase sempre nestas carvoarias as condições de trabalho são ínfimas, insalubres e ilegais, não raro análogas à escravidão.

Pelo menos 1,6% do Cerrado brasileiro foi desmatado no período de 2003 a 2007, o equivalente a 18.900 km², ou 12 vezes a área do município de São Paulo. A estimativa foi feita pelo Sistema Integrado de Alerta de Desmatamentos (SIAD), desenvolvido pelo Laboratório de Processamento de Imagens e Geoprocessamento da Universidade Federal de Goiás (Lapig-UFG).

Eucalipto
As plantações de eucalipto também são bastante problemáticas. As empresas ditas "reflorestadoras", que não plantam florestas, mas monocultivos, criam grandes áreas de deserto verde. Esses plantios estão distribuídos em quase todas as regiões da parte mineira da Bacia do São Francisco, avançando para o Médio São Francisco, na Bahia. As empresas implantaram enormes maciços de eucalipto não respeitando as comunidades locais e os limites ambientais, como áreas de preservação permanente e áreas inaptas para esse tipo de atividade. O passivo ambiental deixado é enorme e os conflitos tendem a se agravar. Na região de Bocaiúva, no Norte de Minas, a Valourec Manesmann, através de um segurança contratado, assassinou no dia 26 de fevereiro de 2007, Antônio Joaquim dos Santos, camponês de uma comunidade cercada pela empresa (28). Os monocultivos de eucalipto causam enorme deficit hídrico onde são implantados. Alguns cálculos mostram que na Região do Norte de Minas, em 1 milhão de ha são consumidos 1,64 bilhões de m3 por ano.

Em Minas Gerais, já são 1,2 milhões de hectares de eucalipto. A iniciativa privada e o Governo do Estado vêm consolidando o Pacto da Sustentabilidade, criado para evitar o que supõe ser um "apagão florestal", se faltar carvão para a siderurgia. Por esse Programa, pretende-se aumentar a área plantada de eucalipto para 3,8 milhões de ha até 2017 (29).

O setor é dos que mais cresce, pelo aumento da demanda mundial de celulose, não só para papel e congêneres, mas também para a produção de energia, como matéria-prima do etanol linho-celulósico, segundo especialistas, a fonte de Agroenergia mais promissora e lucrativa em um futuro próximo.

Na área social o problema é ainda maior. Muitas empresas foram beneficiadas pelo incentivo governamental através de contratos para uso das terras públicas (devolutas) no Norte de Minas, São Francisco e Jequitinhonha, expulsando as populações que ali viviam e usavam as terras de forma comum, coletando frutos do Cerrado e criando gado na "solta".

5. BARRAGENS
Região que detém os principais tributários do São Francisco, com exceção do Rio das Velhas, localizado no Alto São Francisco, os rios do Médio Mineiro e Baiano contribuem com grande volume de águas para o caudal que forma o maior rio inteiramente brasileiro. Esta extensa malha hídrica foi tomada pelo seu potencial hidroenergético, com um grande o número de projetos hidrelétricos, abrangendo Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs), Usinas Hidrelétricas (UHEs), Barragens de Perenização e Barragens de Múltiplos Usos.
Segundo a CODEVASF, em Minas Gerais está previsto um sistema de múltiplos barramentos com cinco barragens, para incremento da vazão mínima garantida no São Francisco e geração incremental de energia na cascata de UHEs da CHESF, em 300 MW (30).

O Programa de Geração de Hidreletricidade de Minas Gerais prevê um total de 101 barragens a serem instaladas na Bacia do Rio São Francisco / MG, sendo 20 UHEs de grande e médio portes, cinco UHEs de grande porte, 15 UHEs de médio porte e 81 PCH’s, a gerar 2.925 MW. Considerando o que será produzido e o que já produz, o total é de 3.652 MW, 14% do total do Estado. Quanto as PCHs, existem 15 em fase de licenciamento ambiental na Bacia em MG.

A Barragem de Congonhas, na Bacia do Jequitinhonha, está sendo implementada para uma transposição de águas para a Bacia do Rio Verde Grande, afluente do São Francisco. O processo de licenciamento ambiental está sendo questionado pelo TCU.

Usinas Nucleares
O Plano Nacional de Energia (PNE 2030) prevê quatro Usinas Nucleares e identificou as margens do Rio São Francisco como lugar ideal para a instalação. Assim, o fluxo de água permitiria o resfriamento dos reatores. A Bahia, além da posição geográfica favorável é o único estado produtor do urânio, matéria-prima dessas usinas, na Mina de Caetité (31).

Para as outras Centrais Nucleares, vários locais estão sendo apontados, inclusive os municípios de Petrolândia, Belém do São Francisco (PE), em Canindé do São Francisco (SE), e outros entre Xingó e a Foz.

6. PSICULTURA E TURISMO
A CODEVASF vem apoiando a criação de pólos de aqüicultura em áreas que reúnem características e potencialidades para sua implantação, em que se destacam as regiões Norte do Estado de Minas Gerais, de Barreiras, no Oeste do Estado da Bahia, em Petrolina/Juazeiro, na fronteira dos Estados de Pernambuco e da Bahia, nos reservatórios de Itaparica, Paulo Afonso e Xingó, entre os Estados de Pernambuco, Bahia, Sergipe e Alagoas e do Baixo São Francisco, compreendendo parte dos Estados de Sergipe e de Alagoas.

O Vale já dispõe de mais de 20 Estações de Pisicultura, a maioria de propriedade privada, produzindo dezenas de milhões de alevinos por ano, que são utilizados, principalmente, para a piscicultura comercial.

Pólos de Pisicultura existem ao longo do Rio São Francisco no Norte de Minas Gerais, em Barreiras (BA), Juazeiro (BA) e em Petrolina (PE)/Juazeiro, e no Baixo São Francisco, abrangendo parte dos estados de Alagoas e Sergipe, sendo reconhecido no país, por técnicos e empresários, como o de maior potencial para o desenvolvimento da Picicultura de águas interiores da América Latina. Este último conta com mais de 14 mil ha potenciais e já tem cerca de 650 produtores em atividade, 1 mil ha de viveiros de criação de peixes. Nessa região, encontram-se instaladas nove estações produtoras de alevinos, com 87,3 ha de espelho d'água e com capacidade de produção de 42 milhões de alevinos por ano (32) Instalada na região do Lago de Itaparica está a Netuno, uma das maiores empresas do setor.

Em visita a estas fazendas de Tilapicultura, durante a Semana Santa de 2008, agentes do Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP) se surpreenderam com a quantidade de peixes boiando nos tanques, mortos, atrofiados pela superpopulação e com doenças causadas por agentes infecciosos (bactérias, fungos e vírus). Sob estresse a tilápia morre agonizada nos tanques sem oxigênio, contaminando outros peixes. Decididamente esta não é alternativa para a pesca no Baixo São Francisco, como no restante de toda a Bacia.

Turismo
Outra crescente ameaça na Bacia do São Francisco é o turismo. No Baixo, as autoridades não vêem outra solução para perda quase total da base econômica da Região, em conseqüência da deterioração das condições hidro-ambientais. A região que já é muito sacrificada pelos conflitos fundiários, no Brejo Grande (SE), tem seus povos e comunidades tradicionais - os pescadores da Resina, os quilombolas do Brejão dos Negros e os posseiros da Carapitanga - sob ameaça diante da chegada da Construtora Norcon. Uma imensa faixa de terra, à beira do Rio São Francisco, no frágil e degradado ecossistema da Foz, está sobe a investida desta empresa, que exige a retirada de todas estas comunidades de seus territórios seculares, com o objetivo de construir um grande resort na Região.
(2) Cf. Roberto Malvezzi, Bahiabio: 20 vezes pior que a transposição. 2008. http://www.correiocidadania.com.br/content/view/1841/9/
(4) A Tarde, Coluna Tempo Presente, 07/05/2008.
(5) Idem.
(6) Mendonça, Maria Luisa. Monocultivo da cana devasta o Cerrado no Alto São Francisco, Brasil de Fato, de 3 a 9 de julho de 2008.
(7) Idem.
(8) Canal do Sertão: obra estimulará produção de etanol, Jornal do Commércio, 27/7/2007.
(9) CODEVASF et Consórcio Hydros Enerconsult. Elaboração do estudo de viabilidade sócio-técnico-econômica e ambiental e EIA/RIMA para o perímetro irrigado de Cruz das Almas, do projeto Sertão de Pernambuco, localizado no município de Casa Nova - BA. 2006. (mimeo)
(11) Articulação Popular do Baixo São Francisco, Um Manifesto do Baixo: Guerra Ecológica do Rio São Francisco, outubro de 2008.
(12) Maiza de Andrade, 89% da água do oeste é para o agronegócio, A Tarde, 06/06/2008: http://www.atarde.com.br/cidades/noticia.jsf?id=896950
(13) Relatório - Perímetro Irrigado de Jaíba, CODEVASF, Distrito de Irrigação de Jaíba, RURALMINAS, data?, 12 p
(14) Siqueira, Ruben. Projeto de Irrigação Baixio de Irecê na Bacia do São Francisco expulsa pequenos agricultores. 26 Set 2008 http://www.correiocidadania.com.br/content/view/2378
(17) Baseado em informações de: Santiago, Alex Fernandes. Impactos Ambientais e Siderurgia: as Unidades Independentes de Produção de Ferro-Gusa em Alto Forno a Carvão Vegetal em Minas Gerais, 2008. Trabalho para publicação na Revista de Direito Ambiental da Editora Revista dos Tribunais. Os dados constantes no trabalho foram obtidos junto aos cadastros de licenciamento da Fundação Estadual do Meio Ambiente - FEAM, de Minas Gerais, sem referência na versão digital aqui utilizada.
(18) Demanda acelerada dobra as descobertas de jazidas no País - Gazeta Mercantil - 05/03/2008
(20) Fonte: Companhia Baiana de pesquisa Mineral- http://www.cbpm.com.br/port/index2.asp?width=1280
(21)http://www.copasa.com.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htmsid=160&infoid=763&tpl=section.htm. Paulo Guedes, Sobre o Esgoto Sanitário em BH. Debate e Apresentação de Levantamento realizado pelo Dep. Est. P. Guedes, impresso, 4 páginas.
(22) Relatório Técnico - Mortandade de peixes. Relatório SISEMA 01/2005, Processo Copam 194/1977, 26 pp.
(25) Maiza de Andrade e Juscelino Souza, Urânio contamina água de povoado, A Tarde, http://atarde.ideavalley.com.br/flip/tools/flipPrint/printMateria.php?id_materia=90ae5, 17/10/2008.
(26) Juscelino Souza, Caso de anomalia gera apreensão, A Tarde,http://atarde.ideavalley.com.br/flip/tools/flipPrint/printMateria.php?id_materia=fef01a... 17/10/2008
(28) Relatório SISEMA 01/2005, Processo COPAM 194/1977, Relatório Técnico - Mortandade de Peixes, 2005, 26 pp. (mimeo)
(29) Cf. Martins, Marcos Lobato - Minas será um mar de eucaliptos? http://www.minasdehistoria.blog.br/2008/09/minas-seraum-mar-de-eucaliptos
(31) Denúncias recentes dão conta de contaminação da água usada pela população, como no povoado de Juazeiro, em Caetité. Cf. A TARDE on line, 7/10/2008, às 00:51, Urânio contamina água em povoado rural de Caetité, Maiza de Andrade e Juscelino Souza.
(32) Cf. ANA, Estudo Técnico de Apoio ao PBHSF - Nº 15. Desenvolvimento da Pesca e Aqüicultura. 2004, http://www.ana.gov.br/prhbsf/arquivos/Estudos/ET%2015%20Pesca%20Aquicultura.pdf