sábado, 28 de fevereiro de 2009

A Reforma Tributária de que o Brasil precisa


Odilon Guedes[1] - agosto/ 2008

O mais recente projeto de reforma tributária permanece na Câmara dos Deputados e, aliás, como ocorreu com todos os outros elaborados nos últimos anos no Brasil é muito pouco discutido entre os verdadeiros interessados, que é a maioria do povo brasileiro.

O debate em torno desse assunto no país acaba centrado em grande parte no aspecto da diminuição dos impostos porque a carga tributária é alta em relação aos serviços que o Estado oferece. Os que mais defendem a diminuição dessa carga são os empresários, baseados no argumento de que pagando muitos impostos seus negócios são dificultados. Fica praticamente excluída do debate a maioria da população brasileira e, principalmente, sua camada mais pobre – proporcionalmente a que paga mais – que não tem a menor idéia de quanto eles pesam no seu bolso.

Este artigo visa contribuir para a discussão a respeito do tema e apresenta alguns dados que permitem visualizar o tipo de reforma que o Brasil precisa não só para tornar mais justa a carga tributária mas também a distribuição de riquezas.

Luta histórica

A questão tributária tem sido causa ou pretexto de inúmeras revoluções e transformações sociais na história da humanidade.

Em 1215, ano em que foi criada a constituição inglesa, um dos pontos centrais definidos entre o Conselho de Nobres e João Sem Terra, baseava-se no fato de que, dali para diante, não poderia ser criado nenhum tributo pelo rei sem que o Conselho fosse consultado. Havia algumas exceções pontuais, como quando fosse feito o primeiro casamento de sua filha mais velha, ou quando seu primogênito se tornasse cavaleiro, por exemplo.

Na mesma Inglaterra, a revolução burguesa que eclodiu na primeira metade do século XVII teve como um dos motivos a cobrança de tributos. O rei Carlos I, para reforçar o absolutismo, começou a cobrar impostos que já haviam caído em desuso, como o ship money. Criado para proteger as cidades portuárias de ataques piratas, o imposto acabou sendo cobrado até mesmo nas cidades de interior, onde dificilmente haveria esse tipo de ataque. O fim do rei foi a sua decapitação.

A data nacional da independência norte-americana, 4 de julho, faz lembrar que uma das razões que foram amadurecendo para o início da guerra de libertação foi a cobrança de impostos como o Sugar Act (1764), que taxava produtos que não viessem das Antilhas Britânicas; do Stamp Act (1765), que exigia selagem até de baralhos e dados (posteriormente revogado); e o Tea Act (Lei do Chá, 1773) que concedia o monopólio desse comércio à Companhia das Índias Orientais. Este último fato causou grande revolta, com os colonos americanos se vestindo de índios e jogando ao mar o chá dos navios da Companhia que estavam ancorados no porto de Boston.

A Revolução Francesa, como se sabe, teve como um dos estopins o aumento de impostos decretado pelo rei para enfrentar a grave crise que o país enfrentava após a derrota para a Inglaterra na Guerra dos Sete Anos.

No Brasil, a questão da cobrança de impostos marcou profundamente algumas rebeliões ao longo da história. A primeira delas foi a Inconfidência Mineira, tentativa de libertar o Brasil de Portugal, que resultou no enforcamento do herói Tiradentes e no desterro das lideranças envolvidas no movimento. O motivo principal dessa revolta foi a “derrama”, isto é, a cobrança de impostos atrasados feita pelos colonizadores portugueses aos moradores de Minas Gerais.

Entre as décadas de 1830 e 1840 o Brasil foi palco do mais longo conflito armado em seu território, a Guerra dos Farrapos, na então província do Rio Grande do Sul. A causa central desse conflito foi a taxação do charque (carne-seca) rio-grandense pelo governo imperial, enquanto os produtos que vinham do Uruguai e da Argentina estavam isentos desse imposto. A elite gaúcha estava sendo profundamente prejudicada em seus interesses porque perdia competitividade no mercado interno.

No fim do século XIX um dos pretextos para o exército brasileiro cercar e destruir a comunidade de Canudos (interior da Bahia) foi o fato de seu líder, Antonio Conselheiro, pregar aos habitantes de vários municípios do interior do Nordeste brasileiro o não pagamento dos impostos instituídos pelo recente regime republicano.

Os pobres pagam mais

A questão da injustiça tributária no Brasil é gravíssima e podemos dizer com toda a segurança que as camadas mais pobres da população pagam proporcionalmente mais impostos no país. Vários estudos feitos pelo UNAFISCO (órgão dos auditores fiscais da Receita Federal) e pela Universidade de São Paulo (USP) comprovam claramente tal situação. Esses estudos mostram que as pessoas cuja renda familiar alcança até dois salários mínimos comprometem 48,9% de seus recursos com o pagamento de tributos. Enquanto famílias que têm uma renda superior a 30 salários mínimos comprometem apenas 26,3%.

Esse brutal descompasso ocorre porque mais de 50% da carga tributária no país é indireta, isto é, incide sobre o consumo. Na maioria dos países capitalistas desenvolvidos a carga tributária direta é muito mais acentuada que a nossa, recaindo sobre a renda, a riqueza, a propriedade e a herança.

Os dados apresentados pelo Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário (IBPT) ilustram a regressividade na cobrança de tributos em nosso país. Por exemplo, do total que se paga da conta de luz, 45,8% são compostos por tributos. Assim, se um cidadão gastar R$ 100,00 de energia, R$ 45,80 vão para os cofres públicos, independentemente do fato de ele ganhar um salário mínimo ou R$ 50 mil por mês. Em relação a um quilo de açúcar, a carga tributária é de 40,5%, e sobre o litro de gasolina incide 53,0%.

Em relação aos tributos diretos sobre a renda, a riqueza, a propriedade e a herança, a taxação de impostos é muito baixa, especialmente quando comparada a de outros países.

Imposto de renda

No Brasil existem somente duas faixas de cobrança, 15,0% e 27,5% (*). Para salários até R$ 1.372,81 há isenção. Para os salários entre R$ 1.371,82 até R$ 2.743,25 a alíquota é de 15% e para salários acima de R$ 2.745,25 a alíquota é de 27,5%. Nesse contexto é importante lembrar que, entre 1983 e 1985 havia 13 faixas com variação de 0% a 60% nas alíquotas, com intervalo de 5%.

Para efeito comparativo, nos EUA existem cinco faixas variando as alíquotas de 15% a 39,6%; na França existem 12 faixas com variação das alíquotas entre 5% e 57%; na Holanda há quatro faixas com variação de 6,2% a 60% das alíquotas.

Por outro lado, nos países denominados em desenvolvimento como o Brasil, alguns exemplos mostram a seguinte situação: no Chile existem seis faixas, variando as alíquotas entre 5% e 45%; na Argentina são sete faixas, variando as alíquotas entre 9% e 35% e na Bolívia há cinco faixas, variando a alíquota de 15% a 30%. (Fonte: Waterhouse & Coopers/Unafisco Sindical).

Imposto sobre herança

O imposto sobre herança no Brasil é definido pelo artigo 155, Inciso I da Constituição Federal no qual consta que a responsabilidade pelo estabelecimento das alíquotas é dos Estados. Em São Paulo, essa alíquota é de 4%.

Estabelecendo uma comparação com outros países, constata-se que, na Inglaterra esse imposto é cobrado há mais de 300 anos. Após a morte da princesa Diana, os jornais ingleses noticiaram que o fisco cobrou U$ 15 milhões dos U$ 30 milhões deixados para seus filhos. Segundo matéria da revista VEJA (21/11/2007) Churchill, o conservador primeiro ministro inglês que conduziu a Inglaterra na Segunda Guerra mundial, dizia que o imposto sobre a herança era infalível para evitar a proliferação de “ricos indolentes”.

Nos EUA o imposto sobre a herança tem uma alíquota de 47% para fortunas acima de US$ 1,5 milhão e no Japão a alíquota é de 70%. (Fonte: www. legiscenter.com.br)

Os dados acima demonstram como esse imposto é extremamente baixo no Brasil. Há, portanto, uma ampla margem para aumentar sua cobrança tendo em vista ainda o alto índice de concentração de riqueza no país.

Imposto sobre a propriedade

Outra distorção flagrante pode ser notada na arrecadação dos impostos sobre a propriedade existentes no Brasil: o Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana, o IPTU, de âmbito municipal e o Imposto Territorial Rural, o ITR, de âmbito federal. Em relação a este último, a situação beira a incredulidade. Para exemplificar, nos doze meses de 2007 foram arrecadados, em todo o território nacional, cerca de R$ 379 milhões, segundo dados da Receita Federal. Um montante cujo valor é menor do que dois únicos meses de contribuições recolhidas do IPTU da cidade de São Paulo.

Diante desses números, nunca é demais lembrar que, de acordo com dados do Ministério do Desenvolvimento Agrário, em um universo de cinco milhões de propriedades, 26 mil, ou menos de 1% do total, detêm 46% das terras. Além disso, 55 mil imóveis classificados como grandes propriedades improdutivas detêm 120 milhões de hectares. Paralelamente, o chamado agronegócio, que movimenta bilhões de reais em suas transações, utiliza cada vez mais terras para plantio de cana-de-açúcar e o capital internacional avança na compra de terras na Amazônia e em todo território nacional. Pode-se então concluir que, na prática, os grandes latifundiários e proprietários rurais na prática, não pagam esse tipo de imposto no país.

Imposto sobre grandes fortunas

Como todos sabem, o Brasil figura entre as 12 economias mais ricas do mundo. O grande problema é a extrema concentração dessa riqueza. Dados publicados pelo economista Márcio Pochmann mostram que há no país cinco mil famílias que detêm um patrimônio da ordem de US$ 250 bilhões. Por outro lado, o ministro de Assuntos Estratégicos, Roberto Mangabeira Unger, demonstra num estudo que 70% da dívida pública do Brasil, hoje na casa dos R$ 1,3 trilhão, encontra-se nas mãos de 30 mil famílias. Em 2007, o pagamento dos juros dessa dívida foi cerca de R$ 160 bilhões e, logicamente, 70% desse valor ficaram em posse daquelas 30 mil famílias.

O Atlas da Exclusão Social – Os Ricos no Brasil (Cortez, 2004) é outra referência importante onde se demonstra a enorme concentração da renda e riqueza em nosso país. É, portanto, mais do que urgente a aprovação do imposto sobre as grandes fortunas.

Características da reforma

Diante desse quadro totalmente desequilibrado e injusto, pode-se refletir sobre o tipo de reforma tributária de que a população brasileira precisa. Logicamente, não se deve ignorar que são importantes as definições sobre a cobrança do ICMS no Estado que produz uma mercadoria ou onde ela é consumida, sobre o número de alíquotas desse imposto e do IPI ou as discussões referentes à criação do Imposto sobre o Valor Agregado (IVA). Mas essas questões precisam estar submetidas a decisões sobre as características básicas da reforma pretendia.

Muitas dessas características vêm sendo propostas por vários especialistas da área tributária. Eles se preocupam com os problemas sociais do Brasil e percebem claramente a necessidade de se fazer justiça social utilizando como um dos instrumentos importantes a cobrança de tributos.

Adam Smith já afirmava, quando escreveu História da Riqueza das Nações, que “os súditos de todo Estado deveriam contribuir para sustentar o governo, tanto quanto possível em proporção às suas respectivas capacidades” (Smith, 1986, p. 366).

Uma questão preliminar a ser destacada e definida antes de se discutir as propostas é autorizar a progressividade dos impostos como determina a Constituição Federal, no parágrafo 1º do artigo 145. Isto porque a progressividade é um instrumento de importância fundamental para se fazer justiça tributária.

- Redução de tributos sobre o consumo e isenção sobre a cesta básica

Uma das vertentes que a reforma a ser votada deve considerar, é a redução da carga tributária sobre o consumo sendo esta medida extremamente positiva porque diminui a regressividade na cobrança de impostos e beneficia a classe média e principalmente a população de baixa renda com a melhoria do seu poder aquisitivo. Por outro lado, a isenção de cobrança de impostos indiretos na cesta básica também é de grande importância porque tem o efeito de diminuir o custo de vários produtos de consumo popular, o que permite indiretamente a elevação da renda desse setor da população e possibilita uma melhoria em sua qualidade de vida.

- Aumento da taxação sobre a renda, a riqueza, a propriedade e a herança

A outra vertente deve se apoiar na taxação de forma mais acentuada e progressiva da renda, da riqueza, da propriedade e da herança proporcionando a abertura de um amplo espaço para se fazer justiça social. A adoção de tal medida compensará a perda dos impostos em decorrência da diminuição dos tributos sobre o consumo e da isenção da cesta básica. Além disso abrirá a possibilidade da diminuição da carga tributária incidente sobre pequenos e médios produtores e também sobre ramos industriais que atendam aos interesses da sociedade brasileira.

Em relação ao imposto de renda a proposta que defendemos é aumentar o número de faixas e a amplitude de sua cobrança. Pode-se estipular a cobrança a partir de um patamar de R$ 1.987,51 que é o salário mínimo definido pelo DIEESE para maio de 2008 e criar 12 faixas, com variação de 5% a 60% nas alíquotas, com intervalo de 5%, semelhante ao que ocorria em nosso país entre 1983 e 1985.

Ainda em relação ao imposto de renda, é necessário destacar que há outras questões a serem discutidas e que precisam ser alteradas como, por exemplo, a atual isenção sobre a distribuição de lucros para sócios das empresas, tanto no Brasil como no exterior; a isenção para remessa de lucros etc.

Em relação à propriedade, definir que a cobrança desse tipo de imposto tanto o IPTU quanto ao ITR seja feita de forma progressiva em todo o país. Em relação ao ITR, deixar público porque a arrecadação desse imposto é irrisória e avançar do ponto de vista de que os grandes proprietários rurais e o agronegócio definitivamente passem a pagar impostos sobre suas propriedades.

Quanto ao imposto sobre herança, nossa proposta é elevar sua alíquota de forma progressiva, pois, como vimos, ela é baixíssima no Brasil. Em razão da alta concentração de riqueza que há em nosso país, deveríamos ter como referência a tributação estabelecida na Inglaterra e nos EUA (cerca de 50%), o que possibilitaria progredir na ampliação da arrecadação, diminuir a regressividade da carga tributária e avançar do ponto de vista da justiça social.

O imposto sobre grandes fortunas (IGF), que se encontra previsto na Constituição Federal de 1988, segundo proposta do economista Amir Khair, poderia ser cobrado de forma progressiva, arbitrando-se um nível mínimo de isenção, incidindo através de alíquota reduzida sobre o valor do patrimônio declarado no imposto de renda do final do exercício de pessoas físicas e jurídicas, que exceder o valor da isenção. A proposta que está tramitando na Câmara dos Deputados prevê que 51,6% do IGF sejam direcionados para Estados e Municípios.

È importante destacar em apoio à aprovação desse imposto que dados do FMI mostram que a riqueza e o PIB mundial atingiram, em agosto de 2007, US$ 190 trilhões e US$ 48 trilhões respectivamente, ou seja, a riqueza é quatro vezes superior ao PIB. O Brasil apresenta, como já reiterado, uma das mais perversas distribuições de renda e riqueza do planeta. Diante desse quadro podemos deduzir que entre nós a concentração de riqueza deve ser bem maior do que a apresentada pelo FMI. Portanto, é urgente a aprovação do IGF em nosso país.

Em síntese, alinhamos as questões que, em nosso entender, são vitais na elaboração de uma autêntica reforma tributária no Brasil, verdadeiramente capaz de promover maior justiça e igualdade de direitos.

(*) Após o início da atual crise, no final de 2008 o governo definiu uma nova tabela para o Imposto de Renda.

Rendimento em R$ Alíquota %

Até 1.434,59 Isento

De 1.434,60 até 2.150,00 7,5%

De 2.150,01 até 2.866,70 15,0%

De 2.866,71 até 3.582,00 22,5%

Acima de 3.582,00 27,5%



[1] Economista, mestre em economia pela PUC/SP, é professor das Faculdades Oswaldo Cruz. Foi presidente do Sindicato dos Economistas no Estado de São Paulo e vereador na cidade de São Paulo. E-mail: odilon.guedes@uol.com.br

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Diferenças: algumas palavras sobre o asilo concedido a Cesare Battisti

Prof. Virgílio Cunha Mattos[1]

Muito relutei em manifestar-me publicamente sobre a questão do asilo político concedido ao cidadão italiano Cesare Battisti, não só pelo fato de ter estudado um tempo na Itália; nas “duas Itálias”, tanto a do norte (Bologna), quanto a do sul (Lecce); como por ter deixado vários amigos por lá; mas sobretudo para não fornecer mais material para o sensacionalismo da “mídia gorda” – para emprestar a brilhante expressão de Mylton Severiano – que quer, como sempre, tergiversar sobre alguns pontos importantes – que eu diria mesmo fundamentais -, e reforçar a argumentação neofascista de que qualquer argumentação contrária a “verdade” produzida pelas grandes corporações da venda de notícias é “terrorista”.

Essa – a de manifestar-me publicamente sobre um caso teoricamente ainda sub judice - não é uma decisão simples e por certo desagradará a amigos daqui e da Itália, mas como sou candidato apenas a cuidar da própria vida e devo respeito aos alunos e professores que compartilham comigo a luta por um mundo melhor, combatendo visceralmente os oportunistas de toda parte, peço-lhes que tentem ler desapaixonadamente as anotações sobre o tema e concluam que o escritor Cesare Battisti, cidadão italiano, é um asilado político no Brasil, incomode a quem incomodar.

ONDE, QUANDO E UMA IDÉIA DOS PORQUÊS

Europa, final dos anos 1960 e durante toda a década seguinte, muito se falará sobre estratégia de estado e nos ambientes mais extremos se passará à clandestinidade absoluta e à luta armada. Em um recorte mais específico podemos reduzir ainda mais o foco e direcioná-lo para Itália. À esquerda teremos o desenvolvimento de várias organizações importantes, destaco Gruppi d’Azione Partigiana (GAP), Nuclei Armati Proletari (NAP), Prima Línea (PL), os Comitati Comunisti Rivoluzionari (Co.Co.Ri), os Proletari Armati per il Comunismo (PAC, organização a qual pertencia Battisti) e as famosas Brigate Rosse (BR). À direita, em notória promiscuidade com o Estado[2], várias organizações denominadas de terrorismo nero, exemplificativamente Ordine Nuovo, Ordine Nero, Terza Posizione, Avanguardia Nazionale que hoje sobrevivem na “legalidade” de Lega Nord, Alianza Nazionale e outros partidos da confusa direita italiana. Berlusconi e seu império midiático de Mediaset (privado) e RAI (público) que o digam.

Da época, auge da Guerra Fria, esse confronto à italiana será batizado de estratégia da tensão (strategia della tensione). O clima – pesado – é de insegurança e perigo, não de risco e incerteza, insista-se, mas de insegurança generalizada – qualquer semelhança com os grandes centros urbanos dos países de capitalismo periférico não será coincidência – e desespero instilado. Existem não apenas as grandes ações, mas atentados contra os chamados objetivos mínimos: cidadãos simples, agentes de polícia, profissionais liberais, gerentes de indústrias, etc. Algo ainda misterioso e ignorado em sua complexidade. As Brigadas Vermelhas advertiam que PUNIAM UM, PARA EDUCAR UMA CENTENA![3]

Importante ter em mente que o eleitorado italiano, conservador por índole, é preparado para aceitar, como espécie de “salvação” respostas de tipo militar por parte do Estado, justificando e aceitando procedimentos restritivos das garantias constitucionais[4] das liberdades individuais. A chamada emergenza terrorismo faz avançar a ganância de um estado policialesco, aumentando os controles das várias forças policiais e ampliando o leque de tipos penais[5]. Tal “estado de emergência” não terminou e ganhou novo fôlego com o 11 de setembro estadunidense (11/09/2001).

Os anos de 1970 são bastante significativos. Passado um século da unificação italiana (1870), há uma generalização cotidiana dos conflitos políticos e culturais, capilarizados em todos os lócus da sociedade. Os números são impressionantes: quarenta mil denunciados judicialmente, quinze mil presos, quatro mil condenados a milhares e milhares de anos de cadeia, centenas de mortos e feridos de ambos os lados.

Cesar Battisti, militante da organização Proletários Armados pelo Comunismo, criada na Lombardia, em 1977, foi condenado a duas prisões perpétuas[6], pela suposta autoria de quatro homicídios, ocorridos entre 1977 e 1979, julgados no clamor da época e cuja insuficiência probatória, para aqueles que conhecem a fundo os dois processos, chega a ser inacreditável. Battisti sempre alegou inocência. O único arremedo de prova contra ele existente – sem querer imiscuir-me no Judiciário italiano – é a palavra de co-réu, visceralmente interessado em afastar a própria responsabilidade, que negociou com o Ministério Público isenção/redução de pena. Battisti foi condenado, à revelia – é bom que se diga -, com base nesse tipo de “depoimento”. Difícil, para não dizer impossível, afastar a conotação política. Importante saber, isso a “mídia gorda” não divulga, que as “provas” produzidas contra Battisti foram extraídas das declarações do pentito – “arrependido” – Pietro Mutti, que procurou garantir a notável diminuição de sua pena pelas leis da emergenza italiana.

Para que não haja nenhuma dúvida da conotação política das ações armadas de Battisti, esteve ele foragido da justiça italiana na França, depois no México e novamente na França, quando vigendo a Doutrina Mitterand, consistente em dar asilo político a estrangeiros perseguidos em função de crimes de natureza política, desde que renunciassem expressamente a qualquer “atividade subversiva contra o Estado francês”.

Com o advento do governo de direita na França, leia-se Sarkozy, foi renovado o pedido de extradição por parte do governo italiano, dessa vez concedido pelo governo francês, o que fez com que Battisti viesse para o Brasil.

PRESO COMUM OU PRESO POLÍTICO?

Já ensinava Augusto Thompson que todo preso é preso político, a única diferença é que o preso dito “comum” é preso político e não sabe. Mas isso não vem ao caso nesse caso.

Tarso Genro, Ministro da Justiça do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva – que já se manifestou sobre a questão dizendo que agiu corretamente o seu Ministro da Justiça e, convenhamos, não poderia ter tido comportamento diferente -, de formação jurídica, agiu correta e estritamente dentro da lei e das tradições de concessão de asilo político do Estado brasileiro, qualquer que seja a orientação política do beneficiado (o ditador paraguaio Alfredo Strossner que o diga), logo, a confusão que se quer fazer com a dação de asilo político a Battisti não é só uma questão de princípios (CR art. 4º, X) ou de soberania: a questão é, também, de ordem técnica; a Constituição da República proíbe expressamente a extradição neste caso (Art. 5º, LII – não será concedida extradição de estrangeiro por crime político ou de opinião). Logo, desnecessárias outras considerações da ordem do sistema do direito, especificamente, porque a Constituição da República, norma superior a todas as demais, assim o determina.

Do ponto de vista da lei penal, inferior à Constituição em hierarquia, permitam-me insistir, no que diz respeito ao crime político, temos três teorias: objetiva, subjetiva e mista. Pela primeira, basta que o agente tenha por objetivo atacar a organização político-jurídica do Estado, e isso Battisti fez. Pela segunda, o decisivo é o fim perseguido pelo agente, e é óbvio que Battisti pretendia, com o proletariado armado, instaurar novo regime na Itália, é o fim político. E, a chamada teoria mista, requer a presença de ambos os elementos preenchidos por Battisti. A lei brasileira adota o chamado critério da prevalência, só concedendo a extradição quando o chamado crime comum for o objetivo principal, o que, evidentemente, não era o objetivo de Battisti. Querer enquadrar Battisti na categoria de terrorista tem um nítido objetivo: excetuá-lo da proteção do asilo político já concedido.

A insuspeita Procuradoria-Geral da União manifestou-se pela não concessão da extradição, diante do comando da Constituição da República.

Querem – a “mídia gorda” e seus patrões, os anunciantes - indispor o Ministro da Justiça politicamente perante a nação e, quem sabe, talvez diante do próprio governo. Este texto pretende apenas discutir a correção da concessão do direito de asilo a um autor de crime político, nada mais.



[1]. Professor de Criminologia da Escola Superior Dom Helder Câmara e da Rede Nacional de Altos Estudos em Segurança Pública (RENAESP) do Ministério da Justiça. Doutor pela Università Degli Studi di Lecce (IT). Graduado, Especialista em Ciências Penais e Mestre em Direito pela UFMG. Coordenador do Grupo de Pesquisas sobre Violência, Criminalidade e Direitos Humanos da Escola Superior Dom Helder Câmara. Do Grupo de Amigos e Familiares de Pessoas em Privação de Liberdade. Editor da revista VEREDAS DO DIREITO. Autor de Crime e Psiquiatria – Preliminares para a Desconstrução das Medidas de Segurança e A visibilidade do Invisível – Entre o ‘Parada, polícia’ e o alvará de soltura – Criminalização da pobreza e encarceramento feminino em Belo Horizonte no início do século XXI., dentre outros.

[2] - Em especial os famigerados Servizi Segreti e a Loja Maçônica P2, da Itália, tudo sob a orquestração da estadunidense Central Inteligence Agence (CIA). Sabe-se hoje que o atentado à estação ferroviária Bologna Central, com quase uma centena de mortos, foi executada com a participação de agentes da temível Dirección Nacional de Informaciones a DINA, chilena.

[3] - Colpirne uno per educarne cento. Mao Tse-tung

[4] - A Constituição italiana vigente é de 1947.

[5] - Da época, exemplificativamente os reati associativi, em bom português os crimes de dolo de perigo presumido.

[6] - No Brasil tivemos caso semelhante, o militante da resistência armada à ditadura militar José Roberto Gonçalves de Resende foi condenado a duas prisões perpétuas e mais 70 (setenta) anos de reclusão.