sábado, 31 de janeiro de 2009

Carta aos Judeus


Frei Betto
11/01/2009

[Carta de Maurício Abdalla, companheiro no Movimento Fé e Política, professor de filosofia da Universidade Federal do Espírito Santo referendada por Frei Betto]

"Por mais que o governo de Israel e todos os que o apóiam tentem, não irei odiar a vocês, irmãos judeus. Ainda que as tropas israelenses matem centenas de crianças e pessoas inocentes, não irei desejar a morte de suas crianças nem jogar a culpa na totalidade de seu povo.
"Mesmo que manchem a Faixa de Gaza com o sangue de um povo, que também corre em minhas veias, metade árabe, não irei revoltar-me contra nenhuma etnia nem julgar que há raças melhores ou com mais direitos que outras, como quer nos fazer acreditar o governo israelense.
"Embora eu também queira ouvir as vozes judaicas de protesto contra o massacre dos palestinos, não deixarei de condenar os que se calaram diante do holocausto judeu. E mesmo que tomem à força a terra do povo árabe, não irei jamais apoiar o confisco dos bens do povo judaico, praticado há tempos pelo governo nazista.
"Por mais que o governo de Israel e todos que o apóiam traiam a tradição hebraica dos grandes profetas que clamaram por justiça e paz, ainda quero manter viva a esperança que eles anunciaram. Mesmo que joguem sua memória na lata de lixo, faço dos profetas do antigo Israel os meus profetas, pois o anúncio da justiça não distingue credos, nações ou etnias.
"Sei que muitos de vocês condenam a violência, não apóiam o massacre dos árabes palestinos, e gostariam que o governo de Israel respeitasse as decisões da ONU e o clamor da comunidade internacional pelo cessar-fogo imediato. Mas, gritem! Se sua voz não for ouvida, acreditar-se-ão com razão aqueles que ainda falam mal de seu povo.
"Mesmo que sejam deploráveis todos os anti-semitas, o silêncio dos judeus diante do massacre perpetrado pelo país que ostenta a estrela de Davi na bandeira pode ser usado como reforço para os argumentos torpes da superioridade racial.
"Há mais de 60 anos seu povo clamou ao mundo por solidariedade. Chegou o momento de retribuir, de mostrar que a solidariedade é um sentimento universal e não restrito a uma etnia. Não deixem o governo de Israel fazer esquecer o quanto vocês sofreram como vítimas, só porque agora ele é algoz e está protegido pela maior potência mundial, os EUA.
"Não permitam que a ação de Israel faça parecer que, apesar das manifestações mundiais de condenação, seu Estado se acredita o único que possui razão, pois era assim que o governo alemão pensava no tempo do nazismo.
"Estejam certos de uma coisa: independentemente do resultado da absurda campanha israelense ou qualquer que seja a posição de seu povo diante da violência e injustiça cometida por aquele país, não irei ceder à tentação do pensamento racista; não irei apagar da minha memória a catástrofe do nazismo e o sofrimento do povo judeu; não irei pensar que há povos que não merecem nação e que devem ser eliminados; não deixarei de condenar o anti-semitismo ou qualquer tipo de preconceito étnico.
"Continuarei defendendo a idéia de que todos, sem distinção, somos iguais, e temos os mesmos direitos: judeus, negros, árabes, índios, asiáticos etc. Manter-me-ei firme em minhas convicções, pois jamais quero me igualar aos governantes de Israel e àqueles que o apóiam."
Faço minhas as palavras de meu querido amigo Maurício Abdalla, companheiro no Movimento Fé e Política, professor de filosofia da Universidade Federal do Espírito Santo e autor de reconhecida qualidade, como o comprova o texto acima, que tão bem traduz a indignação e a dor de tantos que testemunhamos a guerra do Oriente Médio.
Vários intelectuais judeus têm manifestado indignação frente às operações do Estado de Israel. Tom Segev, historiador e cientista político, escreveu no "Haaretz" que "Israel sempre acreditou que causar sofrimento a civis palestinos os faria rebelarem-se contra seus líderes nacionais, o que se mostrou errado várias vezes". O escritor Amos Oz sublinhou: "chegou o tempo de buscar um cessar-fogo", com o que concorda o escritor David Grossman e o ex-chanceler israelense Shlomo Ben-Ami.

Fontes: Adital;
http://www.revistamissoes.org.br/artigos_ler.php?ref=2692

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Por um novo pacto ecológico


Os problemas que a humanidade enfrenta podem ser considerados insignificantes diante da ameaça concreta à vida do ser humano. A extinção do ser humano é uma possibilidade real. Não se trata de messianismos ou de tipos de convulsões coletivas fundamentalistas de mortes em massa em nome de um sistema religioso. Pelo contrário, são os próprios seres humanos que estão promovendo essa possibilidade real de extinção, de desaparecimento, do fim.

Na noite do dia 24 de janeiro, na cidade de Belém – Pará, durante o III Fórum Mundial de Teologia e Libertação, teve-se um momento histórico com três personagens que lutam e defendem um novo pacto ecológico para humanidade. Não foi um debate e, muito menos, palestras para ouvintes cansados de um dia de atividades variadas. Foi um momento sublime de diálogo, de construção do "pathos" utópico, de amor e compaixão para com a vida que se manifesta em toda natureza. Nós, homens e mulheres, somos parte desse Todo ambiental, ecológico, natural e cultural.

Sob a mediação do Procurador da República no Estado do Pará, Felício Pontes, os mais de 1.000 participantes do III Fórum Mundial de Teologia e Libertação tiveram a oportunidade de ver, aprender, escutar, aplaudir e resgatar os sonhos com dois personagens históricos da luta popular por um mundo melhor, a saber: a Senadora Marina Silva, acreana, seringueira, mulher e com uma humildade que a torna forte e guerreira nos momentos necessários; e Leonardo Boff, teólogo da libertação, ecologista, cristão no mundo, educador e como ele mesmo se intitula: "um agitador social", função do intelectual engajado. Ambos dialogaram a partir do tema: "A vida do Planeta desde a Amazônia".

A abertura do diálogo foi realizada pelo Procurador da República, Felício Pontes, que assumiu a tarefa de introduzir o tema. Sua tarefa como representante da Justiça no Estado do Pará vem se destacando pela defesa das causas populares e da ecologia. Sua introdução se destaca pelo compromisso que assume na defesa jurídica aos seringueiros, camponeses, indígenas, povos da floresta e com a própria Amazônia. Para ele, vivemos o choque entre dois mundos, o choque entre dois modelos de desenvolvimento, a saber: o modelo predatório e o modelo sócio-ambiental.

O modelo predatório nega a existência do ser humano, o direito às pessoas em suas condições materiais, existenciais, biológicas, econômicas e sociais o que permite a geração de violência no campo e na floresta com forte imposição do trabalho escravo e a morte de trabalhadores rurais, indígenas e agentes de pastoral. Tais episódios podem estão atestados nos relatórios da Comissão Pastoral da Terra que a cada ano lança um Relatório dos Conflitos no Campo. Este modelo se encontra pautado em quatro eixos predatórios: madeira, pecuária, extração mineral e monocultura agrícola. Para estes "homens de negócio" a floresta é um obstáculo que gera o latifúndio e a concentração de renda. Além disso, este modelo predatório consegue financiamento público para atingir os interesses capitalistas por meio de três bancos públicos: Banco da Amazônia, Banco do Brasil e a SUDAM. Com dinheiro público se financia a cultura de morte e o modelo predatório que se torna a fonte especulativa mais perigosa na Amazônia, em especial, na região Sul do Pará.

O modelo socioambiental, utópica e urgentemente necessária, permite à floresta uma possibilidade de viver e que os povos de que dela dependem utilizem a metodologia do socioextrativismo interrompendo a cultura predatória. O Procurador da República, Felício Pontes, conclama para a urgência das demarcações das terras indígenas, quilombolas, seringueiros e ribeirinhos. Atualmente, 4% da Amazônia já é uma reserva extrativista que deve ser mantida e ampliada.

Por sua vez, a Senadora Marina Silva iniciou sua intervenção afirmando que a destruição da Amazônia significa um grave problema de desequilíbrio. O que seria a Amazônia para o mundo? Pulmão? Coração? Marina Silva nos deixa uma nova alternativa. A Amazônia é o rim do mundo, já que dessa porção continental entra e saí muita água que doa vida aos seres da floresta e à própria floresta. Por isso, pensar a Amazônia significa pensar outro tipo de democracia que possibilite o diálogo a partir de forças mediadoras. Também, pensar a Amazônia é pensar os conflitos de interesse. São os mesmos interesses de capital predatório que gera o que podemos chamar de "crise civilizatória".

Seria o momento de mudar os paradigmas? As mudanças são frutos das mãos do próprio ser humano que desde a Revolução Industrial assumiu como fundamento o paradigma da dominação, do predatório, da barbárie, do genocídio e do etnocídio, da cultura e do pensamento único... Trata-se de um paradigma único e absoluto, fruto de uma visão antropocêntrica. Na tradição judaico-cristã, Deus cria primeiro todas as coisas antes de criar o homem. Assim, poderia o homem colocar-se acima de tudo e de todos com uma argumentação infantil e fundamentalista que legitima a lógica dominante?

Vejamos: "Frutificai, disse ele, e multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a. Dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todos os animais que se arrastam sobre a terra" (Gen 1, 28). Como se trata de interesses, os homens utilizam ideologicamente este versículo isolado sem nenhuma hermenêutica dos conceitos para justificar o paradigma antropocêntrico por meio da Bíblia. Dominai significa compaixão, cuidado e responsabilidade para com a Terra onde não existe a barbárie da destruição.

Com o extermínio da floresta há um extermínio dos povos tradicionais que ali vivem, em especial, os 60 milhões de índios em toda América Latina. Por isso, a razão instrumental do Ocidente, chamada pelo sociólogo português Boaventura de Souza Santos de "razão indolente" já não responde mais aos problemas da humanidade. Para que tenhamos uma idéia do problema indolente, atualmente, temos 1/3 (um terço) da humanidade que sofre com a desertificação afetando 20% da soberania alimentar mundial. Por outro lado, 75% de CO² produzido pelo Brasil se devem ao desmatamento das florestas amazônica, cerrado e atlântica. Os países ricos produzem 80% de CO², sendo os Estados Unidos o campeão de emissão de CO², em torno de 20%. Os países emergentes juntos são responsáveis pelos 20% que restam.
Para Marina Silva, precisamos de um diálogo com os saberes por meio da troca de experiências com culturas diferentes que respeitam e valorizam os saberes narrativos, em especial, dos povos indígenas. Durante 500 anos de chegada dos invasores europeus, no Brasil foram massacrados 1 milhão de índios em cada século o que podemos caracterizar uma estimativa de 20% do total de mortos durante a II Guerra Mundial. Atualmente, são 500 mil índios no Brasil. Dessa forma, seria uma grande injustiça trocar 18 mil índios da Raposa Terra do Sol por 06 arrozeiros grileiros no Estado de Roraima. Isto seria uma ameaça à soberania nacional.

Concordamos com a reflexão serena de Marina Silva onde afirmou que nos alimentamos por muito tempo do pensamento cartesiano e seu dualismo constante. Para a lógica cartesiana, as coisas ou são boas ou são más. Por isso, o pensamento cartesiano apresenta um profundo sistema maniqueísta que o fundamenta. Para a Senadora Marina Silva precisamos superar a dicotomia cartesiana entre saber versus conhecer. Segundo a ex-ministra do meio ambiente "precisamos pensar o mundo a partir da Amazônia e pensar a Amazônia a partir do mundo".

Além disso, 80% da população mundial vivem no estado de "homo sapiens" e 20% destes se encontram no estado avançado "homo sapiens global" onde somente os melhores, os ricos e os que detêm o monopólio do capital é que conseguem atingir. Por isso, mais um motivo para mudarmos de paradigma, de modelo, numa visão de desenvolvimento e de progresso marcados profundamente por uma lógica de aceleração mercantil. Com isso, somos chamados ao alerta em não acreditar nos projetos que homogeneízam sonhos e as utopias e que desrespeitam a diversidade.

Por sua vez, Leonardo Boff iniciou seu diálogo afirmando que a Floresta Amazônica é um patrimônio da humanidade, com um ecossistema riquíssimo. Os povos indígenas são os verdadeiros ecologistas e educadores que nos ensinam as representações simbólicas do significado "ser cultural". A natureza, por excelência é um grande sistema vivo.

Para Leonardo Boff, a crise do capital que estamos vivenciado na atualidade "tem tudo para ser uma crise final", pois, ou nos adequamo-nos às condições da Terra, enquanto filhos da Terra que somos ou então padeceremos em nossa imbecilidade paradigmática e morreremos juntos. Diante de tudo isso, Leonardo Boff apresentou a proposta da Declaração Universal do Bem Comum Planetário que está sendo preparado por vários intelectuais, entre eles, François Houtart.

Os fundamentos éticos dessa Declaração deverão estar pautados sob a égide de 4 (quatro) Pactos que minimizem o econômico como paradigma fundante da sociedade capitalista. São eles: 1) O Pacto ecológico natural: responsável por proteger a Terra; 2) O Pacto ecológico social: responsável por unir todas as esperanças das nações e unilateralmente as vontades de um único Império absoluto; 3) O Pacto ecológico cultural: que deve estar baseado na promoção do pluralismo, da tolerância e do aphantesis (encontro) da humanidade com os ecossistemas, os biomas, com a vida do Planeta; 4) Por fim, o Pacto ecológico ético-espiritual: fundado na dimensão do cuidado, na compaixão, na responsabilidade de todos com tudo.
Evidentemente, estes pactos não podem ser dicotomizados e classificados hierarquicamente, pois estão por vir-a-ser a partir da superação dessa lógica cartesiana que persegue nossas consciências. Seria realmente uma verdadeira lição para os analfabetos ecológicos dos Ministérios da Agricultura e da Fazenda que em nossa realidade brasileira andam privilegiando o modelo predatório estimulado pelo agronegócio e pelo hidronegócio.

São questões importantes apontadas por Leonardo Boff que nos indica que a Terra poderá continuar vivendo mesmo sem a vida humana por falta de amor às dimensões libertadoras desse ser humano, principalmente, em tempos de ameaça da vida promovida pelas próprias pessoas. Uma prova disso é o orçamento militar de todo o Planeta que, de forma inadmissível, gira em torno de 1 Trilhão e 200 Bilhões de Dólares. Destes, 24 Bilhões poderiam resolver metade dos problemas da fome no mundo. Somente na guerra do Iraque foram utilizados 400 Bilhões. Trata-se realmente de uma razão indolente, irracional e anti-humana.

Podemos concluir com Marina Silva e Leonardo Boff que os povos da terra, os pobres do mundo, os povos indígenas, seringueiros, camponeses e ribeirinhos não podem ser condenados a viver neste vale de lágrimas. Outro mundo é possível? Outra sociedade é possível? Outros paradigmas são possíveis? Serão possíveis desde que partamos para o enfrentamento e o rompimento com a razão indolente deste capitalismo predatório que mutila milhões de vidas a uma situação de morte anunciada. Eticamente podemos realizar este novo pacto ecológico e estamos no limite do tempo para fazê-lo. Dependerá de nós, dessa geração, anunciar este pacto e denunciar o velho paradigma em crise.

Claudemiro Godoy do Nascimento
Filósofo e Teólogo. Mestre em Educação/Unicamp. Doutorando em Educação/UnB. Professor da Universidade Federal do Tocantins – UFT/Campus de Arraias.
E-mail:
claugnas@uft.edu.br

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

As estranhas acusações de Clodovis Boff


José Comblin*

Adital - Como vários amigos, fiquei estupefato quando li as acusações feitas por Clodovis Boff à teologia que ele chama de teologia de libertação. Não existe nenhuma instituição chamada teologia da libertação de tal modo que muitos podem perguntar-se se são da teologia da libertação ou não. A acusação feita à chamada teologia da libertação é totalmente indefinida.
Clodovis não cita nomes e não dá nenhuma referência, nenhuma a obras de alguns autores que seriam incriminados. Não cita as páginas em que estão os erros. A acusação é a seguinte: a teologia da libertação substituiu Cristo pelo pobre. O pobre ocupa o lugar de Cristo do cristianismo. Essa substituição é tão forte que os teólogos da libertação substituíram a cristologia por uma pobrelogia.
Essa acusação é espantosa. Suprimir o lugar central de Cristo é deixar de ser cristão. Na palavra de Clodovis os teólogos da libertação - cujo nome não aparece - já não são cristãos. Já estão fora da Igreja. Os sacramentos que celebram ou recebem são sacrilégios. Clodovis é muito mais severo do que a Sagrada Congregação para a Defesa da Fé, porque condena muitos de uma vez.
Além disso, os teólogos da libertação ficam totalmente desacreditados no povo de Deus. Deveriam ser evitados porque poderiam contaminar almas inocentes.Não existe lista oficial dos teólogos da libertação. Mas há alguns nomes que eventualmente poderiam entrar numa lista não oficial, e sujeita à revisão se alguns não aceitam essa identificação.
Quero dar testemunho de que os teólogos da seguinte lista, que conheci ou conheço pessoalmente crêem no lugar central de Cristo no cristianismo e não defendem a pobrelogia. Quero defender publicamente Gustavo Guitiérrez, Juan Luis Segundo, Ronaldo Muñoz, João Batista Libânio, Luiz Carlos Susin, Cleto Caliman, Leonardo Boff, Carlos Palácio, F. Taborda, Agenor Brighenti, Jon Sobrino, I. Ellacuría, Pedro Trigo, Luis del Valle, Carlos Bravo, Miguel Concha, Virgilio Elizondo, Hugo Echegaray, Víctor Codina, Alberto Parra, Roberto Oliveros, José Luis Caravias, Pablo Richard, Paulo Suess, Diego Irrarázaval, Marcelo Barros, Juan Hernándes Pico. Estes teólogos acreditam no lugar central de Cristo e não substituem Cristo pelos pobres. Todos querem destacar o lugar que ocupam os pobres na revelação cristã, mas ninguém os coloca no lugar de Cristo. Mas todos são suspeitos. Não quero citar nomes de teólogas para que não sejam expostas à suspeita, mas nenhuma se aproxima nem de longe da tese da pobrelogia. Aliás, elas se identificariam mais com a teologia feminina do que com a teologia da libertação.
Eu mesmo não sei se posso estar na lista e me pergunto se eu também não coloco os pobres no lugar de Cristo e já não seria mais cristão. No entanto, muitas pessoas me consideram como cristão. Eu estaria enganando-as? Como sair da dúvida?
Há com certeza teólogos que não conheço pessoalmente. Os culpados estariam entre eles? De qualquer maneira, já que a acusação é geral, ela atinge todos os nomes citados.
Achei muita petulância, para não dizer inconsciente arrogância, essa maneira de acusar todos os colegas teólogos latino-americanos, como se ele fosse o dono da verdade.
Se encontrou em alguns escritos algumas expressões que não entendeu bem, ou suscitam dúvidas que se lembre do princípio de caridade: quando não entendo bem uma expressão, preciso dar ao autor o benefício da interpretação mais favorável, até que argumentos convincentes venham demonstrar o contrário.
O autor poderia dizer que escreveu dentro de um gênero literário, o gênero de requisitório, o que explicaria e justificaria as suas expressões inflamadas. Usou um linguajar de procurador. Não se deveria tomar tão literalmente as acusações que são, antes de mais nada, exercícios de eloqüência.
Sucede que há leitores que vão tomar literalmente as acusações. Podem inclusive abrir processos. Estas denúncias lembram um fato histórico que poderia ser um precedente. Lembro-me do padre Roger Vekemans, que, para minha confusão, era do país em que nasci. Depois de Medellín, Vekemans declarou a guerra a Gustavo Gutierrez e lhe prometeu que iria destruí-lo. Deixou o Chile, foi para Colômbia e fundou um centro DESA, dedicado exclusivamente a atacar e denunciar a teologia da libertação. Vekemans lançou o tema da teologia da libertação como fachada que esconde o marxismo na Igreja. Segundo ele, a teologia da libertação era a penetração do marxismo na Igreja. Era uma corrupção total do cristianismo.
Vekemans fundou uma revista para repetir indefinidamente as mesmas denúncias. Há uma frase famosa de Voltaire em que diz que repetindo sempre a mesma mentira, sempre produz um efeito. Foi o que fez Vekemans. Teve bastante êxito. Forneceu a Alfonso Lopez Trujillo toda a documentação para atacar os teólogos da libertação. Este foi mais alto. A Instrução do cardeal Ratzinger sobre a teologia da libertação repete todos os argumentos de Vekemans.
É verdade que o Papa João Paulo II proclamou que a teologia da libertação estava morta. Mas de repente agora em Roma podem descobrir que ainda não estava totalmente morta e precisa de um golpe final.
A nova heresia já recebeu um nome: pobrologia. Dar um nome é muito perigoso porque as pessoas se contentam como repetir o nome, o que as dispensa de ler as obras. O nome inclusive não é muito adequado literariamente. Mistura o português com o grego. Todas as palavras que terminam em -logia, começam com uma palavra grega: teologia, cristologia, pneumatologia antropologia, cardiologia, oftalmologia, ecologia, psicologia, oncologia, dermatologia, etc. Aqui devia ser "ptochologia" já que em grego pobre se diz ""ptochos".
Clodovis multiplica os argumentos para mostrar que Jesus está no centro do cristianismo. Ninguém vai discordar. É como ensinar o catecismo ao senhor vigário.. Mas essa repetição dos argumentos parece insinuar que os teólogos da libertação são muito ignorantes da cristologia. Então muitos leitores vão pensar que esses teólogos são mesmo muito ignorantes. O que se consegue com isso? Quem vai sofrer com essas controvérsias, são os pobres. Os teólogos têm comida garantida, casa garantida. Se são condenados, não vão sofrer muito. Quem vai sofrer serão os pobres na medida em que a Igreja se desinteressa deles por medo de cair numa heresia. Sempre ouvi Gustavo Gutiérrez dizendo que a teologia da libertação pode morrer e não importa. O que importa, são os pobres. Para um cristão a teologia é algo completamente secundário e dispensável. Mas os pobres não são dispensáveis. Não se pode ser cristão sem acolher a mensagem que vem dos pobres.
Alguns podem ficar exasperados pela preocupação constante pelos pobres. Lembro-me de uma frase que ficou famosa e que foi pronunciada por um alto dignitário eclesiástico. Dom Leonidas Proaño foi bispo de Riobamba no Equador durante 30 anos. Na sua diocese os índios constituem 80% da população. Quando chegou na diocese, descobriu o estado de horrível miséria dos índios tratados como animais. Dedicou a sua vida à libertação dos índios, a libertação cristã. Viveu pobre, visitou constantemente os miseráveis povoados da montanha onde moram os índios. A sua casa estava sempre aberta para os índios que vinham à cidade para vender as poucas coisas que podiam vender. A primeira coisa que fez dom Leônidas foi organizar uma casa de acolhida na cidade para que os índios pudessem tomar banho. Pois nas suas montanhas falta água. A segunda coisa que fez, foi a reforma agrária em duas fazendas da diocese em que descobriu os instrumentos de tortura que se usavam para forçar os índios a trabalhar.
Foram 30 anos de luta. Basta ver os índios hoje em dia para ver que o seu trabalho não foi em vão. Há alguns meses atrás o presidente da república foi a Riobamba para proclamar Proaño patrimônio da pátria. A assembléia constituinte decidiu que seria obrigatório em todas as escolas do país ensinar a vida e os ensinamentos de Proaño. Um dia um jornalista perguntou a essa alta personalidade eclesiástica o que pensava de dom Leônidas Proaño. A personalidade respondeu "É um homem muito bom. Mas ele tem a mania dos índios!"
Então poderíamos também dizer de alguns teólogos: "É um homem bom, mas ele tem a mania dos pobres!".
Compreendi melhor a centralidade dos pobres no cristianismo num episódio da minha vida. Foi no Equador também. Foi em 1976, quando 17 bispos foram presos em Riobamba . Havia também umas 40 pessoas, padres, religiosas, leigos e leigas. Entre estes estava Adolfo Pérez Esquivel, prêmio Nobel da Paz. Eu estava no meio. Fomos todos levados por soldados armados de metralhetas até um quartel de Quito e deixados numa sala, sem explicação. No meio da noite, alguns bispos acharam que seria muito bom celebrar a eucaristia. Mas como achar pão e vinho? Uma senhora equatoriana foi falar com os soldados e conseguiu convencê-los que trouxessem algo de pão e de vinho.
Celebraram a eucaristia. Ora, nesse mesmo dia, um dos bispos, dom Parra León, bispo de Cumaná na Venezuela, celebrava os seus 50 anos de sacerdócio. Estava tão emocionado que chorava. Então ele disse: "Faz 50 anos que celebro a eucaristia todos os dias sem perder nenhum dia. Mas só agora estou entendendo!".
Pode-se celebrar a eucaristia pensando em tudo o que ensinam os teólogos e os liturgistas. Pode-se celebrar com muita piedade e devoção, com muitos sentimentos de amor, mas sem entender. Não se entende a eucaristia e de modo geral não se entende Jesus Cristo a partir da piedade, dos sentimentos religiosos, ou a partir dos conhecimentos teológicos. Tudo isso é secundário e não permite penetrar na realidade. Quando o bispo estava preso ( uma prisão ainda bem suave), estava numa situação de impotência, era pobre. Então entendeu.
Clodovis quer salientar que o fundo da teologia é professar: "Cristo é o Senhor". Acho que todos os teólogos sabem disso e ninguém vai discutir. Mas o problema é outro. O problema é "quem diz "Cristo é Senhor"? Onde? Quando?
O general Videla dizia "Cristo é Senhor". O general Pinochet dizia "Cristo é Senhor" Era fé? Ou era blasfêmia? A elite latino-americana que oprimiu os povos durante 500 anos sempre proclamou: "Cristo é Senhor". Era ato de fé? Ainda é ato de fé? Este é o nosso problema. Os teólogos latino-americanos afirmaram: quem pode dizer "Cristo é Senhor" com sinceridade, como expressão de toda a sua vida, são os pobres. Daí o lugar central dos pobres, que não afeta em nada o lugar central de Cristo, pelo contrário, o confirma.
Os poderosos proclamam "Cristo é Senhor", mas a sua vida diz: "Senhor, sou eu!" O grito de Paulo "Cristo é Senhor" é um protesto contra todos os "Senhores", uma denúncia da opressão, um desafio lançado contra os que se acham os Senhores. É uma negação de todos os poderes opressores. Há somente um Senhor!
O papel da teologia não consiste em buscar quais são as palavras que expressam a fé, mas o que é a fé realmente vivida.
Pois, não se entende Jesus a partir da teologia, seja ela de libertação ou de prosperidade. A questão não é saber o que significam as palavras atribuídas a Jesus nas celebrações ou na teologia. Não se trata de entender as palavras escritas na Bíblia para entender a realidade. Jesus aparece no seu verdadeiro sentido, como realidade, a partir de uma situação na qual o cristão se assimila a ele. Vivendo o que ele viveu, se pode entender. Somente os pobres dizem de modo autêntico "Cristo é Senhor!" Todos os outros podem dizer as palavras corretas que no seu caso, somente expressam figuração, imaginação, sensibilidade, até comédia. A piedade pode enganar muito, criando a ilusão de fé quando se trata de uma fantasia mental, ou de uma fórmula administrativa de um bom funcionário que é pago para dizer essas coisas.
Quem não é pobre, pode aprender dos pobres, com a condição de ser muito humilde. Jesus viveu a impotência, a fragilidade dos pobres. Para entendê-lo é preciso entrar na mesma condição.
Jesus Cristo é o centro do Reino de Deus, o centro de toda a história da salvação, o centro de cada vida de discípulo. Mas não se trata do nome "Jesus Cristo", mas da realidade. Ora, essa realidade de Cristo somente se manifesta a quem vive nele, com ele, fazendo a mesma experiência humana. Por isso há uma centralidade da pobreza como acesso à centralidade de Jesus Cristo.
Isto não é novidade. Em todas as fases da história da Igreja houve cristãos que entenderam bem isso. Na América latina, depois de séculos de dependência e de passividade colonial com os olhos fechados sobre a condição dos índios ou dos negros, houve um despertar. Os olhos abriram-se. Bispos, sacerdotes, religiosas, religiosos, leigos e leigas, converteram-se quando descobriram a realidade da humanidade e o vazio da sua religião.
Por isso houve a Conferência de Medellín que foi como o descobrimento de Jesus Cristo na sua realidade, na sua presença. Era preciso descobrir os pobres para descobrir Jesus Cristo. A Conferência de Medellín foi preparada pelo Pacto das Catacumbas. No dia 16 de novembro de 1965, poucos dias antes da clausura do Concílio, 40 bispos do mundo inteiro reuniram-se na catacumba de Santa Domitila em Roma e assinaram o Pacto das Catacumbas. Cada um se comprometia a viver pobre, a rejeitar todos os símbolos ou os privilégios do poder e a colocar os pobres no centro do seu ministério pastoral. Não era comédia, porque já estavam agindo assim. Nesses quarenta havia um número importante de brasileiros e latino-americanos e , mais tarde, outros subscreveram também.
Alguns acham que a opção pelos pobres é expressão de caridade para com os pobres. Acham que significa amor aos pobres É isso também, mas é secundário. A grande questão é o conhecimento de Jesus Cristo. O que é conhecer Jesus? Onde e como se conhece Jesus Cristo? A centralidade dos pobres vem do fato que os pobres entenderem o que é Jesus Cristo. Não se quer dizer que todos os pobres fazem essa experiência, mas que o conhecimento se faz dentro dessa condição. Nós podemos aprender deles. Nada vamos aprender nocionalmente, mas vivencialmente.
A centralidade dos pobres não compromete em nada a centralidade de Cristo. Pelo contrário, permite que se entenda melhor.
Um sacerdote pode ser um bom funcionário do culto, que celebra com muita piedade, sempre bem comportado, um desses padres que nunca dão problema ao bispo. Mas não entende nada. Provavelmente nunca teve oportunidade de aprender. A culpa não é dele.
Por outro lado, nos evangelhos Jesus identifica-se com os pobres. O que se dá aos pobres, é dado a ele. A sabedoria popular transmitiu fielmente esse ensinamento. Encontrar um pobre no caminho é encontrar Jesus Cristo. O problema aparece nas grandes cidades. A gente encontra tantos pobres que é impossível evocar Jesus Cristo cada vez. Somente alguns podem fazer isso. Por outro lado, muita gente tem dificuldade em aceitar que a consideração dos pobres muda toda a cristologia, como muda a pneumatologia, a eclesiologia e as representações usadas para falar de Deus. Muda toda a teologia tradicional, pelo menos no Ocidente. Isto não pode surpreender. A cristologia tradicional concentrou-se em torno dos dogmas dos 4 primeiros Concílios, e da teoria anselmiana da redenção. Isto quer dizer que era muito parcial, muito particular, centrada em poucas questões. Historicamente, novas questões aparecem que obrigam a situar tudo de uma nova maneira. Novas leituras da Bíblia fazem com que apareçam novas perspectivas.
É significativo que os bispos da geração de Medellín, os padres que os seguiram, tiveram que passar por uma conversão. De repente, descobriram que a teologia que tinham aprendido no seminário escondia uma parte da realidade e que fatos evidentes obrigaram a descobrir, por exemplo, o que a Bíblia diz dos pobres.
Um obstáculo é o preconceito de que Jesus anuncia uma boa nova para todos. Ora ele anuncia uma notícia péssima para os ricos que vão perder tudo, para os sacerdotes que vão perder o templo e desaparecer, para os doutores cuja ciência se torna irrelevante, para os fariseus cuja santidade fica desmascarada, para Herodes.
A boa noticia é para os pobres, os desarmados, os perseguidos. Mas sucede que muitos cristãos fazem questão de apagar as diferenças e lêem o evangelho como se se dirigisse a todos igualmente, como se Jesus falasse para os homens em geral, sem nenhuma referência à sua situação, assim como fazem os filósofos gregos. O próprio documento de Aparecida apresenta o evangelho como boa noticias válida para todos, sem nenhuma diferença. De fato, para quem estudou somente a teologia tradicional, não há problema. Para eles o evangelho é o mesmo para todos, embora os textos bíblicos e inúmeros documentos da Tradição manifestem a cada página que não é verdade. A teologia podia esconder o evangelho. Desconfio que ela não era completamente inocente, mas que tinha alguns motivos menos religiosos para silenciar certos aspetos dos evangelhos.
Um dia um camponês do sertão pernambucano disse-me: "Eu sou alfabeto, mas quando ouço o vigário explicar o evangelho, acho que ele não lê tudo, porque o que lê, sempre dá razão a ele". Esse camponês era muito inteligente. Pois o vigário escolhe sempre o que é favorável a ele.
Claro está que Clodovis sabe tudo isso. Mas muitos leitores não sabem e podem ficar confirmados nos seus preconceitos. Continuarão achando que os pobres não têm nada a ver com a doutrina cristã, em particular com a cristologia. Pensarão como sempre que os pobres são objeto da caridade dos cristãos e os cristãos devem reconhecer esse dever de caridade. Como dizia um dia o cardeal Daniélou: "os pobres têm lugar num parágrafo de um artigo de um capítulo do tratado sobre a caridade". Os pobres seriam objeto da compaixão dos cristãos porque sofrem muito.
Se essa fosse a opção preferencial pelos pobres, esta seria totalmente inofensiva e irrelevante.
Os pobres não tomam o lugar de Cristo, mas eles têm um lugar especial, fundamental, central em Cristo.Que a teologia da libertação morra ou não, não importa. Mas depois de Medellín a teologia não poderá continuar sendo o que era.

* Teólogo.

sábado, 24 de janeiro de 2009

Direitos Humanos, Teologia e Profecia na Amazonia


Na apresentação da mesa-redonda “Direitos Humanos e Teologia” na tarde do dia 23 de janeiro durante o III Fórum Mundial de Teologia e Libertação que está sendo realizado na cidade de Belém, capital do estado do Pará, refletiu-se sobre a possibilidade de construirmos novas teologias que viessem superar o profundo racionalismo cartesiano que se estabelece na mentalidade de muitos teólogos e teólogas, mesmo nesta nossa tão querida América Latina. Tratou-se da necessidade evangélica de um novo contexto de promoção dos sonhos e utopias, bem como do enfrentamento aos novos instrumentos de barbárie que estão se solidificando na sociedade.

Sob a coordenação de Felício Pontes, Procurador da República no Estado do Pará, iniciou-se um momento forte e rico de experiências, de fé e de testemunho daqueles que estão no fazer - teológico da práxis, do cotidiano e que sentem a realidade dos povos em suas mais diferentes atuações, sejam elas pastorais, educacionais, políticas ou culturais. O Procurador Felício Pontes é um jovem animado pelas experiências que conduziram sua caminhada dentro dos movimentos sociais o que o torna sensível ao clamor dos pobres e daqueles que se encontram em situações que podemos chamar de “desumanas”.

Após a saudação introdutória do Procurador da República Felício Pontes, deu-se início alguns testemunhos de teólogos e agentes de pastorais, entre os quais: um teólogo mexicano, um teólogo boliviano, um teólogo quilombola do Brasil, um teólogo coreano, um teólogo brasileiro da Igreja Batista, um padre brasileiro ameaçado de morte em Santarém - PA e um pastor evangélico de Cuba que terminou os testemunhos com uma oração de louvor e ação de graças à Revolução Cubana e destacou: “Dez presidentes yanques – norte-americanos – passaram e a Revolução continua!” E, houve um imenso aplauso para as palavras desse franzino pastor cubano chamado Raúl. Contudo, um testemunho chamou-me a atenção pelo motivo de que os problemas apresentados estão sendo vivenciados em terras brasileiras, a saber: O testemunho de Dom José Luis Azcona, bispo do Marajó, religioso agostiniano que vive como missionário no Brasil há muitos anos e que em nossos dias sofre conseqüentes ameaças de morte.

A situação no estado do Pará em relação à violação dos direitos humanos foi denunciada pelo bispo do Marajó, Dom José Luis Azcona, em especial, violação dos direitos das mulheres, crianças, adolescentes, camponeses e indígenas. A crítica foi realizada ao poder público que se encontra em estado amorfo, sem nenhuma ação concreta de combate aos mais variados tipos de exploração humana. O poder judiciário se encontra complacente com a situação e problemática de exploração sexual onde crianças, adolescentes e jovens são “coisificados” pela cobiça do prazer e do capital por um grande esquema de exploração sexual que envolve desde políticos até membros da elite dominante do estado do Pará.

Mulheres são enviadas para prostituição em outros países, concretamente, na Guiana Francesa o que caracteriza uma violação dos direitos humanos já que se constataram casos concretos de tráfico humano. O tráfico humano de mulheres coincide com a exploração sexual constante de crianças e adolescente em todo Estado, em especial, na ilha do Marajó, território onde se localiza a Prelazia.

Além do bispo do Marajó, Dom José Luis Azcona, outros dois bispos do Pará estão ameaçados de morte. Dom Flávio Giovenale, bispo de Abaetetuba e Dom Erwin Kräutler, bispo da Prelazia do Xingu onde se encontra a cidade de Anapu na qual Irmã Dorothy Stang foi brutalmente assassinada por defender os povos indígenas, os trabalhadores rurais e a floresta. Na defesa dos povos indígenas realizada pelo bispo do Xingu se percebe o compromisso com o Evangelho e com os direitos dos índios e da floresta. Na defesa da garota menor que se encontrava trancada numa prisão com vários homens, o bispo de Abaetetuba sofre conseqüentes ameaças de morte. Trata-se de uma situação concreta de anúncio profético da Igreja na Amazônia e de denúncia das injustiças sociais contra os mais oprimidos da sociedade. As ameaças realizadas são porque os referidos bispos fizeram o compromisso com uma causa que afeta os interesses de uma elite dominante, a mesma que pratica crimes ambientais e ecológicos contra a floresta e, principalmente, contra os povos da Amazônia. Além dos três bispos, segundo Dom Azcona, mais de 200 pessoas se encontram ameaçadas pelo capital hegemônico incorporado por meio de empresas, latifundiários, transnacionais, madeireiros, traficantes de pessoas e de drogas, entre outros.

Em plena realização do III Fórum Social Mundial na cidade de Belém, na mesa-redonda sobre “Direitos Humanos e Teologia”, Dom José Luis Azcona apresentou algumas questões que nos faz pensar o que-fazer teológico de todos os participantes deste Fórum. Evidentemente, suas palavras estavam cheias de “paixão” pela causa do Reino e pela causa dos pobres. Como disse claramente o bispo do Marajó: “Teologia da Libertação não se faz em gabinetes, mas em ações concretas”.

Também nos apresentou algumas características concretas do estado do Pará e dos pobres que se encontram em situação de “cooptação” por parte de programas paliativos e compensatórios do Governo brasileiro, entre eles, Bolsa-Família. Estão cooptados porque estão despolitizados completamente, sem nenhuma noção de seus direitos e totalmente silenciados para almejar um processo de luta contra o sistema que os escraviza.

Dom Azcona, crítica a situação de descaso do Estado em suas relações econômicas que forçam as pessoas a permanecerem num estado de escravidão. Por causa do Evangelho e dessa esperança de um mundo melhor é que, segundo Dom Azcona, se ousa lutar contra a lógica perversa de um sistema que cria e recria constantemente a “cultura de morte”. Tais ameaças estão pautadas a partir de três principais questões, a saber: Denuncia de prostituição infantil, trabalho escravo e camponeses; tráfico humano para Guiana; Cultura da morte: falta de dignidade humana; Contexto de desumanidade: falta de direitos humanos mínimos.

Segundo Dom Azcona, perguntaram-lhe os jornalistas recentemente: “O Sr. não tem medo de morrer?” Trata-se de uma pergunta chave. Pela causa do Evangelho e da dignidade humana, dos direitos elementares do ser humano e em defesa da Amazônia e de suas populações que vivem ainda no atraso social e totalmente despolitizado deixando o banquete nas mãos de pequenos estamentos patrimonialistas que se formam nas cidades inseridas nas matas do Marajó (...) Por causa disso, está preparado para seguir o testemunho de Jesus e defender com a vida suas convicções. O bispo, com uma voz profunda de profeta, diz sentir uma profunda alegria nestes momentos de tormenta em sua vida. E pede a todas as comunidades: “(...) rezem para que não seja covarde, para que siga na defesa dessas crianças, das mulheres e dos injustiçados”.

Dom Azcona, lançou um desafio ao III Fórum Mundial de Teologia e Libertação. Que se fizesse um Manifesto a partir do Fórum Mundial para que desse visibilidade internacional aos problemas apresentados e que servisse para sensibilizar os poderes instituídos na sociedade brasileira: executivo, legislação e judiciário. E afirmou com toda veemência: “Podemos fazer uma teologia combativa que não seja teologia de gabinete”. O Manifesto possibilitaria mostrar ao mundo inteiro a falta de direitos humanos no Brasil e no estado do Pará, pois até o momento ninguém foi investigado. Por fim, Dom Azcona não hesitou em afirmar: “Não tem libertação, não tem teologia, se não vai à história”.

Que Teologia da Libertação temos e queremos? Que Teologia da Libertação se espera? As palavras de Dom José Luis Azcona nos colocam questões fundamentais para que possamos refletir sobre o sentido epistemológico, mas também, profético da teologia hoje. Penso que a teologia se faz a partir da práxis das comunidades, dos movimentos sociais e pastorais das igrejas e do testemunho profético, emergencialmente necessário para construirmos outro mundo possível e uma teologia encarnada na realidade de tantos clamores de sujeitos que não possuem voz e vez na sociedade idolátrica onde até mesmo seres humanos estão sendo consumidos como “coisas descartáveis” com a omissão dos poderes públicos.

Claudemiro Godoy do Nascimento
Filósofo e Teólogo. Mestre em Educação/Unicamp. Doutorando em Educação/UnB. Professor da Universidade Federal do Tocantins – UFT/Campus de Arraias.
E-mail:
claugnas@uft.edu.br

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

O Petróleo tem que ser nosso... Para que?


Paulo Piramba
Dezembro de 2008

A armadilha em que o capitalismo nos meteu. Responsáveis por mais de 81% da energia consumida no mundo, os combustíveis fósseis encontram-se perto de seu esgotamento. Os especialistas calculam que, mesmo com novas descobertas do tipo da reservas abaixo da camada do pré-sal, o petróleo e o carvão estarão esgotados nos próximos 40-100 anos. Durante décadas as grandes empresas petrolíferas e países produtores boicotaram quaisquer pesquisas sobre formas alternativas de produção de energia, assim como cuidados para diminuição da emissão de gases poluentes, em especial o CO2 que é um dos principais causadores do efeito estufa. Se hoje temos catalisadores industriais e nos veículos e combustíveis menos poluentes, isto se deve à pressão da sociedade e dos ecologistas sobre os governos.
Além dos veículos e da produção industrial, os combustíveis fósseis também são usados na produção de energia elétrica. O carvão consegue ser ainda mais poluente que o petróleo, causando problemas de saúde na extração e nas partículas jogadas na atmosfera pela usinas termelétricas. A energia nuclear vem sendo apresentada como "limpa e segura", apesar continuarem insolúveis os problemas ligados à operação, manipulação e armazenamento do lixo radioativo. Outro problema é a utilização da tecnologia nuclear na produção de armas nucleares ou navios e submarinos. É dessa forma que entramos no século XXI: pressionados, por um lado, pelo esgotamento da matriz energética hegemônica no mundo; e, por outro, tendo que, rapidamente, substituir esta matriz por outra (ou outras) que interrompam o ciclo de aquecimento do planeta.

Apocalipse motorizado. Pegando o Rio de Janeiro como exemplo, em 2007, 38.220 pessoas foram vítimas da violência no trânsito no Estado do Rio de Janeiro. 18.235 apenas na Capital, contra 15.724 em 2006. Atualmente, 7 pessoas morrem por dia no Rio. A quantidade de vítimas fatais certamente é maior, já que as estatísticas não acompanham o histórico pós-acidentes dos feridos. Estima-se que circulam no Rio cerca de 2,2 milhões de veículos, sendo 90% deles automóveis movidos a gasolina e a álcool, e 10% ônibus e caminhões a óleo diesel. Em média, o carioca perde 2 horas e 10 minutos indo e voltando diariamente do trabalho. Dados da FEEMA, em 2006, atribuem às fontes móveis (automóveis, caminhões, ônibus, etc.) a responsabilidade por 77% dos poluentes emitidos para a atmosfera, que têm contribuído para o aumento das doenças respiratórias. O trânsito também é responsável pela poluição sonora, pelo stress provocado pelo tempo gasto no transporte e pelas relações cada vez mais violentas que ele vem estabelecendo.

Individualismo insustentável. Quando privatiza as cidades, o neoliberalismo impõe soluções e caminhos que favorecem as classes dominantes. Em termos da mobilidade e do deslocamento urbano, ele se materializa na supremacia dos veículos individuais sobre os meios coletivos de transporte. No Rio de Janeiro, as últimas grandes intervenções urbanas foram feitas para facilitar o deslocamento dos automóveis. Enquanto isso, o Metrô cresce a passos de tartaruga, os ônibus trafegam na rota da falta de planejamento e controle e os trens atendem a uma parcela pequena comparada ao que atendiam anos atrás. A precariedade do transporte coletivo faz com que o carro, além de ser um fetiche para os mais ricos, torne-se uma solução também para os mais pobres. A produção nacional de carros, juntamente com as facilidades para o crédito e a importação, vem provocando um aumento exponencial da frota nacional, principalmente nas grandes concentrações urbanas de São Paulo e do Rio de Janeiro. O impacto dessa gastança sobre o aquecimento global e as mudanças climáticas já está sendo sentido. É necessário apontar para outro modelo de civilização que supere essa escalada da insensatez.

Agrocombustíveis: uma resposta sem energia. De 3 anos para cá, os agrocombustíveis como o biodiesel e o etanol, começaram a ser apresentados como uma solução "verde" para os problemas do aquecimento global. As grandes petroleiras, entre elas a Petrobras, começaram a se intitular "empresas de energia", enquanto as montadoras se apressaram a apresentar modelos de carros "flex", "verdes", ou coisa que o valha. A grande vedete é o etanol, combustível fabricado a partir da cana de açúcar, da palma do dendê, do milho e de outros grãos, um combustível renovável e "limpo", reduzindo assim a emissão de gases formadores do efeito estufa. A União Européia tem avançado em estabelecer um programa de redução de emissão de CO2. Os Estados Unidos têm direcionado grande parte de sua produção de milho para a produção de etanol. No Brasil, o etanol fabricado a partir da cana é um dos carros-chefe do governo Lula, saudado internacionalmente como modelo a ser seguido. Porém...
Porém é preciso dizer que o etanol só poderá ser considerado um substituto do petróleo, se os padrões de consumo e desperdício de combustíveis forem revistos, ou seja, se o próprio capitalismo, que é viciado em petróleo, for questionado, o que não é o caso. A serem mantidos os atuais padrões, vai ser necessário que se avance ainda mais para dentro da Amazônia e remanescentes de outras florestas tropicais, e que as áreas hoje destinadas á produção de alimentos sejam convertidas em grandes desertos verdes. É preciso dizer também que a moda do etanol surgiu a partir da necessidade do capital financeiro encontrar novos mercados, por conta da crise 'subprime'. E que ele conseguiu, dos governos dos EUA e da União Européia, subsídios para a agroindústria dos agrocombustíveis. É preciso dizer que não existirão ganhos ambientais nessa substituição de matrizes de geração de energia, já que os possíveis ganhos obtidos na queima do etanol serão menores que os passivos ambientais gerados na produção do etanol. Para se produzir um litro de etanol do milho, é necessária mais energia do que a gerada por esta quantidade do combustível. O que ainda resta das florestas tropicais asiáticas tem sido devastada para a plantação da palma do dendê. No Brasil, o deserto verde da cana empobrece a biodiversidade, empurra a fronteira agropecuária para dentro dos biomas do Pantanal e da Amazônia e explora a mão de obra dos bóias-frias, submetendo-os a condições de trabalho mais severas do que a dos escravos. No Brasil e no Mundo a destinação de terras e de grãos para a produção dos agrocombustíveis, acirra ainda mais a fome e subnutrição.

A saída não é a nave espacial. O ministro de Assuntos Estratégicos, Esotéricos e Esquisitos Mangabeira Unger afirmou recentemente que "mesmo se a Terra definhar, acharemos um meio de escapar para outros pontos do Universo". Como certamente o preço da passagem para Alfa-Centauro não vai ser objeto de promoção na Internet, é mais adequado pensarmos em alternativas energéticas que não comprometam o futuro do planeta. E, nesse sentido, convém não cometermos os mesmos erros como, por exemplo, colocar todas as fichas em uma única matriz alternativa, ou criarmos grandes unidades de produção de seja lá qual for a matriz, produzindo intervenções agressivas ao meio ambiente. A palavra de ordem é diversificar as fontes e descentralizar a produção. Tudo isso, evidentemente, submetido a uma nova lógica de consumo de produção de bens agregada à supremacia do valor de uso em relação ao valor de troca. Hoje, já é possível produzir energia elétrica usando a matriz eólica, como no caso das fazendas eólicas da península Ibérica e nos países nórdicos. A energia solar só não está mais desenvolvida, porque os investimentos em pesquisa ainda são muito reduzidos. O próprio etanol e a biomassa são saídas inteligentes se não estivermos submetidos ao padrão de consumo capitalista. Ou seja, não é suficiente substituir a matriz fóssil por uma, ou uma série de matrizes limpas. É preciso reduzir drasticamente o consumo de energia, combinado com uma profunda transformação do sistema energético, em termos de descentralizaçã o, diversificação e eficiência.

A questão não é participar ou não da Campanha, mas como participar e propondo o que. Nestas campanhas é freqüente que as bandeiras de luta e palavras de ordem não sejam exatamente as desejadas por eles, que devem abraçar a campanha, ganhando legitimidade para, se possível, tentar apresentar propostas mais conseqüentes. Nesse sentido, não existe polêmica em relação à nossa participação na Campanha "O Petróleo tem que ser nosso". Devemos, através da legitimidade conquistada, do diálogo e do convencimento avançar na formulação de propostas anticapitalistas. Para isso, nossa primeira tarefa é nos engajarmos na Campanha, ampliando-a para nossas áreas de atuação, seja divulgando suas atividades, seja, quando possível, promovendo debates, no sentido de acumular forças para a resistência ao leilão marcado para o dia 17/12.

O Petróleo tem que ser nosso... Para que? Mesmo que a palavra de ordem "O Petróleo tem que ser nosso" signifique um avanço em relação ao primeiro momento da Campanha – que tinha um cunho muito nacionalista – devemos defender dentro dela que não nos basta ter o controle sobre ele, mas criar condições para que a transição da atual matriz energética para as alternativas colocadas, leve em consideração a relação entre estas alternativas e as mudanças climáticas, e aplicar parte importante dos lucros obtidos com a exploração das novas jazidas, além da educação e saúde, na pesquisa e aperfeiçoamento das matrizes solar e eólica. Devemos questionar, também, entendimentos que defendam o aumento da produtividade da Petrobras, sem questionamento aos modelos de consumo capitalistas, responsáveis pelo esgotamento dos combustíveis fósseis e pelo aquecimento global. Racionalizar a produção e diminuir o consumo são medidas decisivas para manter a temperatura da Terra dentro dos limites estabelecidos pelo IPCC, evitando conseqüências ainda mais graves do que as que estão se repetindo ao redor do planeta. Trazer a questão da matriz energética e das mudanças climáticas para dentro da Campanha, amplia seu escopo da luta, questiona e responsabiliza o modelo consumista e esbanjador do capitalismo.

A re-estatização da Petrobras não é garantia em si; a Petrobras tem que ser pública. É importante, nessa discussão, recuperar o conceito de empresa estatal e de empresa pública. Empresa pública é aquela cuja atuação é voltada para o interesse da maioria da população, o que não acontece, necessariamente, com as empresas ou organismos estatais. O Banco Central, por exemplo, é estatal, mas está a serviço permanente dos interesses da burguesia financeira. É interessante lembrar como a discussão sobre a autonomia do Banco Central, tão defendida pelos conservadores nos primeiros anos do governo Lula, não se coloca mais, totalmente superada pela subserviência deste governo ao capital financeiro. Não existe, portanto, garantia em si que a simples re-estatização da Petrobras, recuperando o controle estatal sobre ela, a partir do controle das ações hoje de posse de investidores/ especuladores internacionais, signifique uma inflexão na trajetória da empresa, voltada para o lucro, esgotamento dos recursos naturais e agressão ao meio ambiente. A Petrobras não faz outra coisa hoje, a não ser concretizar as políticas do governo Lula, que tem exatamente essa relação com os recursos e com o meio ambiente, seja no apoio ao agronegócio, na estratégia destruidora no Centro-Oeste e Amazônia, nas obras do PAC e IIRSA, etc. É preciso que essa crítica ao governo seja claramente feita pela Campanha. De que vale a população brasileira ter a posse das riquezas naturais, se a lógica de exploração e esgotamento, na busca do lucro, se mantiver?

A Petrobras não pode continuar desrespeitando o meio ambiente. A Petrobras, assim como as empresas petroleiras em geral, é uma campeã em desrespeito à legislação ambiental, e uma das maiores causadoras de passivos ambientais do mundo. A defesa de uma Petrobras pública passa pela condenação do modelo atual de empresa, que negligencia a segurança de seus funcionários e do meio ambiente, para aumentar a produtividade e o lucro. Além disso, a empresa, até pouco tempo atrás, utilizava pretensas "responsabilidades social e ambiental" nas propagandas institucionais, para alavancar o preço de suas ações na Bolsa de Nova Iorque. O recente episódio do enxofre no diesel, quando ela, em conluio com as montadoras de veículos, e com a vacilação da Justiça e do Ministério do Meio Ambiente, conseguiu o adiamento da utilização de um diesel com menor teor de enxofre no Brasil, mostra o descaso da empresa com a saúde do povo brasileiro. Na Baixada Fluminense, até hoje, 8 anos depois do derramamento de óleo na Baía da Guanabara, centenas de pescadores do fundo da Baía continuam sem poder trabalhar, já que os efeitos do óleo derramado nos manguezais ainda contaminam os peixes. É preciso defender uma Petrobras verdadeiramente responsável, tanto do ponto de vista social e público, como também do ponto de vista ambiental.

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Água, Terra e Teologia para outro mundo possível



Com o tema “Água, Terra e Teologia para outro Mundo possível” realizar-se-á em Belém, estado do Pará, na Amazônia brasileira o III Fórum Mundial de Teologia e Libertação, entre os dias 21 a 25 de janeiro. Este evento antecede a realização do Fórum Social Mundial que também se realizará em Belém de 27 de janeiro a 01 de fevereiro de 2009.

Esperamos um momento de profunda reflexão e trocas de experiências sobre o papel da Teologia da Libertação no século XXI. A temática indica-nos que o evento terá como eixo norteador a questão ecológica e as perspectivas de outro mundo possível, sustentável e que afirme a soberania dos povos. A água e a terra se tornam lugares teológicos de reflexão e de construção de alternativas que venham superar a lógica desenvolvimentista irracional com seu mito do progresso que se encontra a serviço do deus capital. Portanto, nestes dias, mais de 400 pessoas do mundo todo estarão reunidas em torno de um único objetivo: fazer a utopia necessária de outro mundo que possibilite o respeito com a vida ameaçada no planeta devido à ganância da humanidade que aprendeu a destruir em nome do crescimento econômico irresponsável.

Com seu caráter interdisciplinar, muitas atividades estão programadas, a saber: conferências, plenárias, oficinas, comunicações, rituais matutinos, celebrações e confraternizações, visitas a projetos de desenvolvimento e pastorais em contexto de vulnerabilidade, café teológico e o painel de encerramento. Todas essas atividades estarão sendo realizadas com o intuito de promover a interação dos participantes em diversos espaços de construção desse mundo, tendo como eixo teológico: a água e a terra. Dentre os rituais matutinos, ter-se-á três momentos: o ritual da água, o ritual da terra e o ritual do corpo.

Serão três conferências que terão como função apresentar teologicamente o tema geral sob vários ângulos de análise, considerando os aspectos regionais da Amazônia como lugar socioespacial de importância planetária para o futuro do planeta. São elas: a primeira, com o teólogo Leonardo Boff (Brasil) que irá abordar o tema “Água, Terra, Teologia: rumo a um paradigma ecológico”; a segunda, com Emilie Townes (Estados Unidos) e Steve DeGruchy (África do Sul) que abordarão o tema “Espiritualidade e Ética na Agenda da Sustentabilidade”; a terceira, com Chung Hyun Kyung (Estados Unidos), Mary Hunt (Estados Unidos) e Michel Dubois (França) com o tema “Dimensão Eco-Teológica da corporalidade”. Além dessas três conferências, uma quarta merece especial atenção. Trata-se da Conferência com a Senadora Marina Silva que abordará o tema “A vida no Planeta desde a Amazônia” e como debatedor o teólogo Leonardo Boff. Por fim, uma quinta conferência chamada pelos organizadores de pública que será com Patrick Viveret (França) com o tema “Futuro da Terra”.

Outros dois momentos importantes dar-se-á com a realização das Oficinas e com as Comunicações que estão organizadas a partir de 11 eixos temáticos, a saber: 1) Religiões, ecumenismo e diálogo inter-religioso; 2) Culturas, etnias e teologia; 3) Política, economia e teologia; 4) Direitos Humanos, democracia e teologia; 5) Paz, alternativa à violência e teologia; 6) Textos sagrados e teologia; 7) Ecologia, corporeidade e teologia; 8) Gênero, feminismos e teologia; 9) Opção pelos pobres e teologia; 10) Arte, comunicação e teologia; 11) Novas Tecnologias e Teologia. Tanto oficinas como as comunicações possuem os mesmos eixos temáticos.

Algumas temáticas que serão abordadas nas oficinas nos chamam a atenção. Destaco em primeiro lugar, a oficina que será coordenada por Daniela Cordovil (UEPA) sobre “Pluralismo religioso na Amazônia: diálogos entre cultos de origem africana, pajelança, catolicismo e pentecostalismo” (Eixo 1). A questão da crise financeira também será abordada com profundidade por Vitor Galdino Feller e Klaus da Silva Raupp, ambos do ITESC, sobre “Verdades e mitos sobre o deus capital: reflexões a partir da crise financeira de 2008” (Eixo 3). Chamou-nos a atenção também a oficina que será desenvolvida por Lucí Faria Pinheiro (UFF) sobre as “Estratégias dos movimentos sociais em face à conjuntura neoliberal. O MST e o Cristianismo da Libertação” (Eixo 7) que também apresentará o mesmo tema na sessão de comunicações.

As comunicações será um momento importante também para que se conheçam os estudos teológicos e interdisciplinares que estão sendo produzidos na academia ou fora dela, até mesmo, nos próprios movimentos sociais. No primeiro momento, chamou-me a atenção o trabalho que será abordado por Antonio Carlos Teles da Silva com o tema: “Uma Teologia das Águas Amazônicas”, bem como “Identidade Quilombola e Território” que será apresentado por Maria Albenize Farias Malcher, ambos os trabalhos inseridos no Eixo 2. No eixo 3, destaco o trabalho de Geraldo Antônio da Rosa sobre “Contestado: movimento social e seu desdobramento na atual situação educacional da região”, um resgate histórico importante do ponto de vista da educação que poderá nos ajudar a compreender melhor este importante movimento messiânico do campo. Mayra Cristina Faro e Francisca Glena Barbosa irão abordar a seguinte temática “Natureza Sagrada: a ecoespiritualidade na sociedade atual” (Eixo 7). E a mesma Mayra Cristina Faro abordará um tema novo e que me causa muita expectativa, agora no eixo 8 com o seguinte tema: “Mistérios de Patu-Anu: um estudo sobre a pajelança e as mulheres pajés em Soure (Ilha do Marajó)”. No eixo 9, Jairo Cardoso da Costa nos brindará com uma temática pedagogicamente sempre atual, com o tema: “A Pedagogia do Oprimido e a Teologia da Libertação: as contribuições de Paulo Freire e Leonardo Boff” e no eixo 10 abordará “O conceito de Pedagogia e Teologia em Comenius”; Também no mesmo eixo, Leonízia Izabel da Silva abordará sobre as “CEBs, teimosia e resistência no contexto eclesial e social”.

Irei abordar uma comunicação no eixo 9 com o seguinte tema: “Emancipação e Libertação: a opção pelos pobres em tempos de pós-neoliberalismo” onde buscamos Queremos refletir acerca da dialética emancipação-libertação em tempos de pós-neoliberalismo. Emancipar para libertar e libertar para emancipar à luz da opção preferencial pelos pobres hoje é tema de ecologia. A teologia da libertação se torna a fundamentação epistemológica para militantes dos movimentos sociais organizados. Neste sentido, como emancipar e libertar na perspectiva de outro mundo possível? Como pensar a irrupção dos pobres hoje diante da lógica do capital em crise? As experiências são locais e globais. Por isso, queremos possibilitar uma reflexão sócio-educativa de três segmentos da sociedade civil, a saber: trabalhadores rurais, quilombolas e indígenas localizados no Estado do Tocantins que ousam em continuar a teimosia evangélica de libertação e emancipação.

Apontamos de forma subjetiva algumas temáticas de oficinas e comunicações, mas outras serão abordadas com suas importâncias e riquezas. Além disso, o espaço do café teológico, as celebrações e confraternizações possibilitarão o encontros dos sujeitos participantes que buscam também momentos de mística para que possamos nos animar na caminhada dura e árdua em defesa da Água, da Terra e da construção desse mundo possível a todos e todas.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Um Socialismo no século XXI

François Houtart *

Fonte: ADITAL

Introdução

O socialismo é um projeto, antes de ser um conceito. Por essa razão, é necessário abordar o conteúdo como passo preliminar para a utilização da palavra. De fato, o que é o socialismo hoje? Trata-se do stalinismo, do maoísmo, de Pol Pot, da social-democracia, da terceira via? Estamos ante a plena ambigüidade, o que exige um novo quadro de reflexão.

No entanto, há uma grande urgência frente à destruição social e ambiental provocada pelo modelo econômico contemporâneo. A hegemonia global do capitalismo, em sua forma neoliberal, não somente foi edificada sobre novas bases materiais (as tecnologias da informação e da comunicação), mas também permitiu universalizar a subordinação do trabalho al capital ("subsunção", segundo Carlos Marx). Atualmente, não somente se trata de uma subordinação real, isto é, dentro do processo mesmo de produção, a través do salário, mas também formal, ou seja, por meios financeiros (preços das matérias primas e dos produtos agrícolas, dívida externa, paraísos fiscais, fiscalização interna que promove a riqueza individual) ew por meios jurídicos (normas das organizações internacionais, como o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial e a Organização Mundial do Comércio).

Este último tipo de subordinação afeta a todos os grupos humanos tanto pela destruição ambiental como pela submissão à lei do valor. Hoje em dia, os povos indígenas estão afetados em sua possibilidade de sobrevivência pela exploração dos bosques ou pela destruição da biodiversidade; os pequenos camponeses são as primeiras vítimas da privatização da saúde, da água, da eletricidade; os pequenos camponeses são deslocados pelas empresas transnacionais do agronegócio. De fato, a vida da humanidade em seu conjunto está sendo agredida. As conseqüências para a sociedade são profundas porque esse processo agudiza as contradições dentro de todas as relações entre indivíduos, não somente pela desigualdade econômica e social crescente, mas pelo aumento dos conflitos de gênero, de raças ou de castas.

Por essas razões, o projeto deve começar por uma deslegitimação clara e radical do capitalismo, em sua lógica mesma e em seus aspectos concretos em cada sociedade. A consciência de que não se pode humanizar o capitalismo constitui a base de um novo projeto concreto. A esse propósito, podemos propor níveis de reflexão: o nível da utopia (que sociedade queremos?), os meios e, finalmente, as estratégias. Trataremos de aplicar esses três níveis aos vários componentes da realidade humana: ecológicos, econômicos, políticos e culturais e de propor, de maneira muito sintética, uma série de hipóteses como base de discussão.

1. Os objetivos ou a utopia

Que sociedade queremos? Essa pergunta pode parecer muito geral, um conjunto de idéias abstratas, um sonho. Porém, não seríamos seres humanos se suprimíssemos a capacidade de sonhar. Queremos viver em uma sociedade humana de cooperação e de paz. Isso significa que não queremos viver em um mundo de pura competitividade e de agressão. Desde seu início, tal perspectiva introduz uma contradição com a sociedade neoliberal. Para definir de maneira mais concreta o que podemos chamar a utopia, pode-se distinguir quatro objetivos ou princípios, segundo as já citadas dimensões ecológica, econômica, política e cultural.

1) Prioridade de uma utilização renovável dos recursos naturaisExiste uma simbiose entre a natureza e o ser humano. A natureza é fonte é fonte de vida (a pachamama, terra-mãe, como dizem os povos indígenas da América do Sul). Não se pode agredi-la, nem destruí-la sem atentar contra a vida humana. A natureza não pode ser explorada em função de uma racionalidade puramente instrumental, característica do tipo de modernidade vinculada econômica e culturalmente com o capitalismo. Isso resultaria na destruição progressiva da natureza. O "grito da terra", como escreve Leonardo Boff, chama-se desertificação, deterioro do clima, gripe aviar, AIDS...Esse princípio da prioridade da utilização renovável significa o rechaço a modos de produção e de atividades que destroem de maneira irreversível o ambiente natural. O uso de recursos não renováveis será o objetivo de uma gestão coletiva, assegurando sua racionalidade. No entanto, esse princípio é somente uma parte da realidade e deve entrar em...

2) Predomínio do valor de uso sobre o valor de trocaEssa distinção, feita por Carlos Marx, é útil para pensar o futuro. O valor de uso é o que contribui para a qualidade da vida humana em todas suas dimensões. O valor de troca é o mercado, que tem uma função subordinada ao valor de uso. No entanto, na lógica do capitalismo, o mercado domina hoje não somente a atividade econômica, mas também toda a organização coletiva da vida humana. Para o capitalismo, não existe valor econômico se o trabalho, os bens e os serviços não se transformam em mercadorias. É o que se chama a imposição da lei do valor que, segundo Franz Hinkelammert, significa o fim do sujeito. Os seres humanos estão submetidos a essa lei que invadiu a realidade social submetendo a humanidade em sua totalidade à lógica do capitalismo. É por isso que Karl Polanyi, economista estadunidense historiador do capitalismo, conclui que é necessário reinserir a economia na sociedade.

3) Participação democrática em todos os setores da vida coletivaA participação democrática, isto é, o poder de decisão do sujeito humano, pode ser limitado ao setor político. Nesse sentido, pode-se dizer que toda a realidade é política, começando pela economia. O princípio da participação democrática tem que ser aplicado a todos os níveis da vida humana coletiva, do local ao global.

4) Interculturalidade: Todas as culturas participam na vida cultural e espiritual da humanidade. Nenhuma delas pode ser eliminada ou marginalizada. Isso inclui todas as expressões culturais, o direito, a ciência, as religiões e as espiritualidades. As transformações que derivam de intercâmbios, de enriquecimento mutuo são bem-vindas porque a cultura não é estática.Sobre a base dos quatro princípios expostos propõe-se o problema dos meios.
2. Os meios

Não basta afirmar princípios. Construir outra sociedade significa aplicar meios para que eles possam tornar-se realidade.

1) A relação com a natureza
Para levar a cabo o primeiro princípio de predomínio de uma utilização renovável podemos propor três meios principais. O primeiro é a apropriação pública dos recursos naturais essenciais para a vida, como a água, as sementes, o ar. Esses recursos constituem o "patrimônio da humanidade" e devem escapar da lei do valor, tal como está definida pelo sistema econômico capitalista.

A revalorização da agricultura camponesa é outro meio necessário. Trata-se de lutar contra a concretização produtivista da terra ou dos produtos agrícolas em mãos de empresas transnacionais que destroem a natureza, sem falar dos desastres sociais e de promover uma agricultura orgânica. Em terceiro lugar, a tarefa fundamental de regeneração da atmosfera, dos solos, das águas e, finalmente, do clima.

2) O predomínio do valor de uso sobre o valor de troca
Existem vários meios para esse predomínio em específico. Somente queremos assinalar alguns deles:

- Promover a produção orientada à maioria das populações com a utilização de instrumentos públicos, o que se opõe ao modelo de desenvolvimento atual, que favorece um crescimento econômico espetacular de somente 20% da população. Isso é a conseqüência da lógica do capitalismo, que necessita gerar fortes poderes de compra de uma minoria para absorver uma produção sofisticada, contribuindo para a acumulação do capital.
- A introdução de elementos qualitativos no cálculo econômico, como o bem-estar (a qualidade de vida), o entorno ecológico, a segurança alimentar. As decisões serão muito diferentes se forem considerados esses elementos nos cálculos dos custos de produção e de intercâmbio.
- Limitar a influência do capital financeiro mediante um imposto sobre os fluxos internacionais, a abolição dos paraísos fiscais e do segredo bancário e a supressão da dívida externa dos povos do Sul.
- Abolição das patentes em sua forma atual e adaptação do direito de autor para evitar o monopólio das transnacionais.
- Revalorização da empresa como lugar de trabalho comum com fins sociais e não como fonte de riqueza para os acionistas.
- Reconhecimento e valorização dos empregos não reconhecidos (mulheres no lar) ou desvalorizados (serviço social, serviço de saúde) e criação de empregos para setores qualitativos de interesse coletivo (melhoramento da qualidade de vida, serviços pessoais etc).
- Constituição de um seguro social generalizado sob controle público.- Revalorização do serviço público como serviço à coletividade e não como atenção a "clientes".

3) O princípio da democracia
A democracia não é somente um fim, mas também um meio. Nesse sentido, deve-se estender a democracia representativa a todos os níveis da atividade coletiva, incluindo oi setor econômico. No entanto, necessita-se também a promoção da democracia participativa ou direta como incremento do controle popular nos mesmos setores. Não se trata da dimensão territorial (povoados, bairros, aldeias), mas também das empresas e das administrações.

4) O princípio da interculturalidade
Os meios nesse setor são também diversos, com prioridade ao seguinte:

-Afirmar e concretizar o direito dos povos frente ao direito dos negócios, o que significa uma mudança fundamental da filosofia dos organismos internacionais, financeiros e comerciais.
- Proteção das culturas por medidas adequadas nos diversos setores de suas expressões.
- Socialização dos resultados da ciência, sem monopólio industrial ou particular.
- Afirmação da laicidade do Estado, como base do diálogo filosófico e espiritual e do ecumenismo.

3. As estratégias

Para poder aplicar os meios suscetíveis de concretizar os princípios, há vários níveis de estratégias.

- Deslegitimar o capitalismo como expressão de uma modernidade desumanizante, o que significa a utilização de todos os espaços possíveis para o desenvolvimento de um pensamento crítico nos setores da economia, da ecologia, da política e da cultura. Nesse sentido, os fóruns sociais têm cumprido um papel importante: o desenvolvimento progressivo de uma consciência coletiva.
- Acelerar a criação de atores coletivos em nível global através de redes de resistência (um exemplo é a Via Campesina).
- Renovar o campo político da esquerda, com a convergência de várias organizações políticas (não se pode pensar em um partido único detentor de toda a verdade) e a centralidade da ética nas práticas políticas.
- Promover a emergência de um novo sujeito histórico, que não estará somente construído pelos trabalhadores assalariados, mas por todos os grupos atingidos em sua vida pelo sistema capitalista: pequenos camponeses, mulheres, povos autóctones etc.
- Buscar a centralidade da ética como atitude coletiva e individual, em coerência com a utopia, o que implica uma institucionalização dos processos sociais e políticos como base dos comportamentos individuais e uma redefinição permanente dos aspectos concretos da ética, com a contribuição de todos.

Podemos concluir que se isso é o que chamamos de socialismo, trata-se de um projeto profético e construtor, capaz de contradizer a "barbaridade" e de traduzir em um projeto pós-capitalista a defesa da dignidade humana e do amor ao próximo.

[Colombia Plural/Inestco.Tradução: ADITAL]

* Sociólogo e teólogo. Tem mais de quarenta livros publicados, entre eles: Sociología da religião e Mercado e religião.

sábado, 17 de janeiro de 2009

Era uma vez um carpinteiro apaixonado...



Maria Clara Lucchetti Bingemer

Era uma vez um jovem israelita bom, justo e temente a Deus. Era carpinteiro, tinha seu ofício e ganhava a vida honestamente. Como todo jovem de sua época e de seu povo, sonhava casar-se e ter muitos filhos, família numerosa que desse continuidade a sua casa e seu nome. Chamava-se José e vivia em Nazaré.
Vendo passar a jovem Maria, o coração de José disparou. Ali estava aquela que era osso de seus ossos e carne de sua carne. A jovem israelita bela e fiel chamou sua atenção desde o primeiro minuto. Seus pais apressaram-se a procurar os pais da jovem e o compromisso realizou-se. Maria de Nazaré passou a ser prometida em casamento ao jovem José.
José trabalhava e sonhava enquanto esperava o dia em que poderia casar-se com Maria, viver com ela toda a sua vida e gerar filhos que seriam frutos concretos do amor de ambos. Porém um dia seu coração enamorado recebeu um rude golpe. Maria estava grávida. E ele não era o pai da criança.
A Escritura não nos narra detalhes, mas podemos bem imaginar os abismos de dor e ciúme por onde andou o coração de José, ao imaginar-se traído pela mulher de sua vida, aquela em quem tinha depositado todas as suas esperanças de felicidade. Noites em claro deve haver passado o jovem carpinteiro apaixonado, não podendo acreditar no que via e ouvia. Maria grávida? De outro homem? Como? Quem? Não podia ser. Ele não podia ter se enganado a esse ponto. Muito deve haver interpelado a Deus o pobre José, ferido em sua dignidade de homem e seu amor terno e doce por aquela jovem.
Tanto amava Maria que após o choque do primeiro momento, começou a pensar em como faria para separar-se dela sem colocar sua vida em risco. Sim, porque a lei de Moisés era clara: uma mulher prometida em casamento já era considerada casada. Se fosse surpreendida em adultério – e a gravidez é um fruto claro da traição – o marido teria obrigação de repudiá-la e ela seria apedrejada.
José, o bom, o justo, o apaixonado não queria isso. Maria não podia passar por aquela punição tão dura e perder a vida. Decidiu então repudiá-la em segredo, sem que ninguém soubesse, para não “desvendá-la” diante de todos e não expor sua vergonha. Mergulhado na tristeza dessa decisão que o separava para sempre de sua amada, sua fé recebeu uma visita divina.
José sonhou – e o sonho na Bíblia é importante momento onde os seres humanos recebem a revelação divina – e acreditou no sonho. O mensageiro do Senhor lhe dizia que não temesse tomar Maria como sua esposa. Ela não o havia traído. O que nela estava sendo gerado era fruto do Espírito Santo. José, o justo, o carpinteiro apaixonado ouviu a mensagem e nela acreditou. Nada mais o separaria da mulher amada nem da criança gerada em seu ventre que ele assumiria como sua.
E assim aconteceu a Encarnação. Primeiramente pelo desejo divino de aproximar-se definitivamente de sua criatura, tomando sua carne frágil e mortal, a fim de redimir tudo que era humano. Depois pelo sim confiante e radiante de Maria, que não teve medo nem reparo em comprometer todo o seu futuro para aderir de coração inteiro à proposta divina de ser mãe do Salvador. Mas finalmente, também, e muito, pela fé de José, que não temeu crer que o mistério que crescia no ventre de sua amada era obra de Deus e Seu Espírito.
Neste Advento, enquanto preparamos o Natal do Senhor, contemplemos a figura de José, esse homem bom e justo, esse carpinteiro apaixonado para quem o amor era algo real e profundo, muito maior que as aparências. Esse homem de fé, que acreditava que todo ser humano é imagem de Deus e, portanto tem dignidade infinita e, portanto mesmo no sofrimento de acreditar ter sido traído respeita a liberdade da mulher que escolheu e não quer expo-la diante do mundo.
Que a figura amorosa e paternal de José de Nazaré nos ensine a, em uma época de relacionamentos descartáveis e sensações seduzidas, acreditarmos no amor que vem nascido de mulher, nascido sob a Lei, sobrevivente de uma gravidez de risco, menino frágil envolto em faixas e deitado em uma manjedoura.

Fonte:
http://amaivos.uol.com.br/templates/amaivos/amaivos07/noticia/noticia.asp?cod_noticia=11297&cod_canal=44

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

A história de como dormi petista e acordei sem partido


Texto escrito em 2005.

No dia do depoimento do ex-ministro da casa civil José Dirceu à Comissão de Ética da Câmara fui dormir certo de que o discurso da esquerda petista ainda fazia algum sentido para mim. Afinal, aquele ser calmo, equilibrado e generoso, disposto a colocar sua honra acima de tudo, não poderia ser o malicioso Rasputin do governo Lula. Ele que havia começado seu depoimento dizendo que não usaria do estratagema eleitoral de renunciar ao seu mandato de deputado federal para salvar sua elegibilidade futura, pois, se o assim fizesse, não conseguiria mais olhar fundo nos olhos da militância petista e dos membros das famílias de seus companheiros e companheiras que caíram combatendo a ditadura militar. Há coisa mais bela e digna do que o auto-sacríficio?
Diante de nós, nas telas de televisão, estava um homem corajoso, disposto a enfrentar as feras e lutar até o fim. Aos meus olhos, Dirceu parecia naquele momento a própria encarnação do herói revolucionário, disposto a morrer por uma causa nobre nas trincheiras da luta social. O seu discurso de defesa foi pontuado por referências heróicas, por exemplo, de que enfrentaria a luta política sozinho, e referências autobiográficas. Lembrou o seu passado de exilado em Cuba, de clandestino em Cruzeiro do Oeste, tudo para, aparentemente, mostrar que durante todo o período em que lutou com seus companheiros contra a ditadura militar, em momento algum teria infringido a ordem pública comum (sic). Como clandestino na cidade de Cruzeiro do Oeste nunca foi acusado de nenhum crime, não fez nenhum inimigo na pacata cidade do interior do Paraná. Como dirigente partidário, jamais aceitou cargo público sem concurso, ao contrário, prestou concurso de datilografia para ser funcionário público de São Paulo. Dá para não se comover diante desse discurso? Todo esse preâmbulo autobiográfico imolante servia para sustentar a tese de que ele, enquanto foi ministro do governo Lula, nada sabia do que se passava no seu partido. Não havia sido informado nem pelo tesoureiro de seu partido, nem pelo presidente de seu partido, seja da armação dos empréstimos do Banco Rural e BMG ao PT, seja da armação do financiamento da campanha dos partidos da base aliada (PP, PL, PTB, PMDB).
Uma vez afirmada sua inocência, restava fundamentar a tese de que os dirigentes do partido tomavam decisões sem lhe consultar. Como fazer isso? Mostrando quanto era diminuta sua importância dentro do partido e no governo. Como ministro do Estado, estava afastado das decisões partidárias e, como ministro da casa civil, limitava-se a cumprir as funções de sua pasta, sem nunca ferir hierarquias ou extrapolar suas obrigações.
No dia seguinte...
Acordei no dia seguinte sem mais pensar na crise política. Seguia minhas tarefas cotidianas quando, de repente, sem que menos esperasse por isso um pensamento apoderou-se de mim e a ficha caiu.
Espera lá... Na verdade me comovi com o depoimento do José Dirceu porque ele manipulou meus sentimentos com sua retórica conciliadora e apaziguadora dos ânimos. Uma vez tendo reconhecido isso, fui analisar mais uma vez sua fala e cheguei à conclusão de que ele, na verdade, fez uso do mais sórdido artifício jurídico de defesa. Como o advogado de um assassino tenta convencer seu júri de que o criminoso não é o autor do crime? Mostrando que o acusado era um cidadão pacato, querido pelas velhinhas da vizinhança porque sempre lhes ajudava a carregar as sacolas de compra, que, além disso, estava sempre em dia com suas contas, não contraia dívidas, não bebia, não fumava (apesar de ser pessoalmente um fumante) etc. Como, pergunta o advogado de defesa aos membros do júri, um ser tão inocente e puro poderia ser o autor de um crime tão bárbaro? Essa foi a estratégia de defesa do ex-ministro José Dirceu para convencer a militância petista e os telespectadores de que era inocente e não sabia de nada do que foi tramado pelos dirigentes de seu partido – tese dificílima de se acreditar dado seu perfil psicológico; sujeito centralizador e arrogante, segundo os que conviveram com ele enquanto estava no poder –, fez uso sórdido da sua biografia limpa e honesta como servidor da causa da esquerda brasileira. Para convencer os militantes de que a luta não havia sido em vão, que os erros eram do partido e não do governo, foi subliminarmente construindo a tese de que a esquerda é fundamentalmente boa, e o resto, inclusive Jefferson e Cia., não prestam, mas que a governabilidade na República dependia, infelizmente, da aliança com aqueles sujeitos sórdidos, como Jefferson, que nunca lutaram contra a ditadura.
Para mim, ficou claro a partir desse dia que o PT é um partido fundamentalista e moralista, cujos dirigentes acreditam serem os únicos a defender a causa social, os únicos a terem lutado contra a ditadura, a terem seus membros mortos na luta armada etc., e que, por isso, para eles a velha máxima de que os fins justificam os meios é a única verdade a ser obedecida.
A estrela do PT está sumindo do céu do meu horizonte político. O que colocarei no seu lugar? Ainda não sei. Talvez o SOL comece a despontar no horizonte...

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Silvia Ribeiro: O consumo excessivo e injusto é intrínseco à lógica capitalista



Por: Graziela Wolfart

Na opinião da pesquisadora Silvia Ribeiro, desde trinta anos atrás, as empresas Monsanto, Dupont, Syngenta, Basf, Bayer, Dow, Cargill, Bunge, Louis Dreyfus e ADM “conseguiram que se fizessem políticas nacionais e internacionais em seu favor para expandir a agricultura industrial e química, somente para obter lucros controlando o mercado de sementes, insumos e distribuição, criando dependência e pobreza”. E continua: “São causadoras de um percentual muito alto das crises ambientais, climáticas e alimentares. Porém, todas tiveram lucros recordes graças às crises (de 40% a 110% a mais do que em anos anteriores). Ganham em todos os cenários, porque podem manipular os preços e a oferta de grãos, seja para a alimentação ou para os agrocombustíveis”. Na entrevista exclusiva que aceitou conceder por e-mail para a IHU On-Line, Silvia afirma que, “na maioria dos casos, os agrocombustíveis têm uma equação energética negativa: usam mais combustíveis fósseis para sua produção e processamento do que os que dizem que vão substituir. Ou seja, pioraram o aquecimento global. Além disso, em todos os casos competem com a produção alimentar, seja pelo próprio cultivo, ou pela disputa por água e por terra”. No entanto, para ela, a solução “não virá nunca a partir de cima, mas somente será possível pela organização e a luta a partir das bases da sociedade”.
Silvia Ribeiro é pesquisadora e coordenadora de programas do Grupo ETC, com sede no México, grupo de pesquisa sobre novas tecnologias e comunidades rurais. Ela tem ampla bagagem como jornalista e ativista ambiental no Uruguai, Brasil e Suécia. Silvia também produziu uma série de artigos sobre transgênicos, novas tecnologias, concentração empresarial, propriedade intelectual, indígenas e direitos dos agricultores, que têm sido publicados em países latino-americanos, europeus e norte-americanos, em revistas e jornais, bem como vários capítulos de livros. Ela é membro da comissão editorial da Revista Latino-Americana Biodiversidad, sustento y culturas, e do jornal espanhol Ecología Política, entre outros.

IHU On-Line - Como a produção de transgênicos contribui para a crise ambiental e também para o caos econômico? Existe alguma relação nesse sentido?

Silvia Ribeiro - O cultivo de transgênicos é um dos maiores mitos da indústria agrícola: desde o início de seu desenvolvimento na década de 1980, prometiam que terminariam com a fome no mundo e seriam benéficos para o meio ambiente ao usar menos produtos químicos, porém nada disso se cumpre na realidade. Começaram a ser comercializados em 1996, nos Estados Unidos. Porém, há mais de uma década, as próprias estatísticas do Departamento de Agricultura daquele país e estudos recentes das universidades de Kansas e Nebraska mostram que o rendimento é menor ou igual ao das sementes híbridas, porém a semente é mais cara, motivo pelo qual o produtor tem uma margem de lucro menor. Também usam um volume muito maior de agrotóxicos, em parte pelo fato de que mais de 80% dos transgênicos são manipulados para resistir a herbicidas e em parte porque o resto, os chamados cultivos Bt, são manipulados para serem cultivos inseticidas. No entanto, geram resistência nas pragas que querem combater e, em pouco tempo, necessitam mais agrotóxicos, cada vez mais fortes. Isso tem fortes impactos sobre os cursos d’água, provoca a degradação dos solos (ao eliminar microorganismos e cobertura vegetal que lhe dão fertilidade naturalmente), a biodiversidade etc.

Concentração corporativa
Além disso, a produção de transgênicos agrícolas é o paradigma de concentração corporativa mais extremo da história da agricultura. Somente seis empresas controlam todo o mercado mundial e uma só, a Monsanto, retém 88% do mercado mundial. As três maiores empresas de transgênicos – Monsanto, Syngenta, Dupont - são também as que têm a maior porcentagem do mercado de sementes comerciais em geral (não só transgênicas): juntas, controlam quase a metade (47%) do mercado mundial de sementes sob propriedade intelectual. As mesmas empresas, proprietárias da maior parte das sementes híbridas (que têm maior rendimento do que os transgênicos), só querem vender transgênicos porque estão patenteados. Isso lhes permite um aumento de controle sobre os produtores, por converter num delito o direito dos agricultores a guardarem parte de sua própria colheita para usá-la como semente na próxima semeadura. Complementarmente, a contaminação transgênica, inevitável ao estar em campo aberto – principalmente em cultivos de polinização aberta como o milho – significa, para eles, que as vítimas da contaminação devam pagar-lhes por “uso indevido” de seus genes patenteados. No caso dos híbridos, embora alguns estejam patenteados, não podem rastrear a “contaminação” porque os genes existem naturalmente nas plantas, diferente dos transgênicos, que contaminam com genes de outras espécies.

Transgênicos: um golpe à soberania alimentar
Em suma: os transgênicos significam maior contaminação ambiental e um aumento da agricultura industrial das transnacionais, que avançam às custas do deslocamento de outras formas de agricultura (camponesa, familiar) e/ou sobre áreas de grande biodiversidade. São um golpe à soberania alimentar e avançam na destruição de formas de agricultura que são a resposta real às crises alimentares e climáticas. Monsanto, Dupont, Syngenta, Basf, Bayer, Dow, que são as multinacionais que controlam os transgênicos e os agrotóxicos no mundo, estão ligadas ao oligopólio dos que controlam a compra e distribuição de cereais: Cargill, Bunge, Louis Dreyfus, ADM. Todas estas empresas, que, desde trinta anos atrás, conseguiram que se fizessem políticas nacionais e internacionais em seu favor para expandir a agricultura industrial e química, somente para obter lucros controlando o mercado de sementes, insumos e distribuição, criando dependência e pobreza, são causadoras de um percentual muito alto das crises ambientais, climáticas e alimentares. Porém, todas tiveram lucros recordes graças às crises (de 40% a 110% a mais do que em anos anteriores). Ganham em todos os cenários, porque podem manipular os preços e a oferta de grãos, seja para a alimentação ou para os agrocombustíveis.

IHU On-Line - Como podemos entender que as novas tecnologias focalizam em novas formas de prejudicar o meio ambiente e de produzir cada vez mais riqueza para os mais ricos?

Silvia Ribeiro - O principal objetivo é o segundo. A destruição ambiental é uma “externalidade” que eles transferem a toda a sociedade, mas através da qual também pretendem obter novos lucros. A inovação tecnológica sempre foi um motor básico do capitalismo para obter ganhos extraordinários diante dos competidores. Nesta lógica, não se trata de inovar para beneficiar a sociedade, mas para aumentar os lucros dos inversores. No caso dos transgênicos, como quase todas as empresas de sementes foram compradas por empresas fabricantes de produtos químicos nas últimas décadas, a “inovação” focou no aumento da dependência com os agroquímicos e na eliminação das possibilidades de os agricultores terem suas próprias sementes. Embora as sementes sejam um mercado pequeno no contexto geral das indústrias alimentares, elas são a chave de toda a rede alimentar e, ademais, ninguém pode viver sem comer e assim isso é um elemento-chave para obter o controle.

IHU On-Line - Os agrocombustíveis são uma solução ambiental amigável?

Silvia Ribeiro - A nova onda de agrocombustíveis industriais é uma das piores ameaças ao ambiente e aos camponeses ou pequenos agricultores. Segundo o informe Stern, do governo do Reino Unido, sobre a alteração climática, a agricultura industrial é responsável em 14% pelas emissões de gases de efeito estufa e em 18% pela mudança do uso do solo (pela ampliação da fronteira agrícola e pelo desmatamento, entre outros fatores). Os combustíveis agroindustriais promovem o aumento destes fatores, grandes causadores da alteração climática. Como demonstraram numerosos estudos (inclusive de instituições como o Banco Mundial e a Organisation for Economic Co-operation and Development-OECD), na maioria dos casos, os agrocombustíveis têm uma equação energética negativa: usam mais combustíveis fósseis para sua produção e processamento do que os que dizem que vão substituir. Ou seja, pioraram o aquecimento global. Além disso, em todos os casos competem com a produção alimentar, seja pelo próprio cultivo, ou pela disputa por água e por terra. Em outros casos, avançam sobre áreas naturais de grande diversidade, as quais também são fatores de grande importância para frear a alteração climática. E, como supostamente não são visados para uso alimentar, usam uma quantidade muito maior de agrotóxicos. Recebem, além disso, enormes subsídios econômicos dos governos do Norte, e enormes subsídios em mão-de-obra barata ou semi-escrava no Sul.

IHU On-Line - Qual a influência dos agrocombustíveis no preço dos alimentos e na crise financeira internacional? Qual sua opinião sobre o forte investimento dos fundos financeiros especulativos na produção de agrocombustíveis?

Silvia Ribeiro - Segundo um informe do Banco Mundial, elaborado em abril de 2008 (que era secreto, mas foi revelado pelo jornal The Guardian em 04-07-2008), a produção dos agrocombustíveis é responsável em até 75% pelo aumento do preço dos alimentos. Segundo este informe, houve três fatores primários que, em efeito dominó, provocaram essa elevação de preços e a mantêm. Primeiro: os grãos para a produção de combustíveis foram desviados da produção alimentar. Um terço da produção de milho nos Estados Unidos é usado para o etanol em lugar dos alimentos. A Europa está utilizando a metade dos óleos vegetais que produz ou importa para produzir biodiesel. Segundo: o estímulo aos agricultores para que dediquem mais terra aos agrocombustíveis, às custas da terra dedicada a produzir alimentos. Terceiro: a produção dos agrocombustíveis abriu um excelente terreno para o forte investimento dos fundos financeiros especulativos, causando mais aumento de preços. Os fundos especulativos (hedge funds) saíram do setor imobiliário em crise nos Estados Unidos e entraram agressivamente na compra de estoques presentes e futuros de grãos, puxando a elevação dos preços como parte das apostas financeiras. Mais de 60% das reservas e da produção futura de milho, trigo e soja foram comprados por este tipo de fundos, com a intenção de vendê-los, seja para combustíveis ou para alimentos, segundo o preço mais alto do mercado. Mesmo agora, na débâcle da crise financeira, conservam um papel importante nestes setores, embora tenham começado a vender parte de suas inversões. Porém, o anúncio de Barack Obama de que vai apoiar todas as fontes de energia que signifiquem menor dependência do petróleo lhes assegura que poderão continuar lucrando com este setor. Ao invés de inverter em capital produtivo, a função dos fundos especulativos afiançados durante o apogeu do neoliberalismo é fazer mais dinheiro a partir de dinheiro. Neste sentido, são fundos perversos em si mesmos, são diretamente criminosos ao apoderar-se do setor agrícola e alimentar, do qual todos dependemos.

IHU On-Line - Que relação a senhora estabelece entre os agrocombustíveis e as mudanças climáticas? Quais os principais riscos ao meio ambiente provocados pela produção de combustíveis?

Silvia Ribeiro - Como expliquei, os combustíveis agroindustriais pioraram a alteração climática, além de promover muitos outros efeitos negativos sobre a soberania alimentar, a biodiversidade, a contaminação de solos e água, o desmatamento de florestas e outros ecossistemas naturais. Segundo os dados do informe Stern, a agricultura industrial e a mudança do uso dos solos são fatores muito maiores de mudança climática do que o transporte, que causa uns 14%. Os combustíveis agroindustriais propõem aumentar todos estes fatores, dizendo que serão uma “solução”. Estabelecem, além disso, novos riscos ambientais e econômicos a partir das chamadas segundas e terceiras gerações de agrocombustíveis. As empresas estão tratando de tirar vantagem de seus competidores a partir do uso de novas tecnologias para a produção de agrocombustíveis, teoricamente para torná-los mais eficientes e menos dependentes do petróleo. Para isso, impulsionam agressivamente novos transgênicos que tolerem ainda mais aditivos químicos ou os tornam mais fáceis de serem processados para etanol e biodiesel.

Alguns exemplos
Cargill e Monsanto formaram a empresa Renessen para produzir soja e milho transgênicos para agrocombustíveis, e Monsanto e Basf investiram 1500 milhões de dólares para desenvolver novos transgênicos em soja, milho, canola e algodão, fundamentalmente para agrocombustíveis. Syngenta trabalha com institutos de investigação e com grandes produtores brasileiros para desenvolver cana-de-açúcar e beterraba transgênicas. Monsanto e Dow anunciaram uma variedade de milho resistente a oito herbicidas mais o gene Bt. Também se pretende acelerar a produção de combustíveis a partir de celulose, o que até agora não é possível devido à sua baixíssima eficiência energética. Para isso, a proposta é usar micróbios manipulados a partir da biologia sintética, isto é, com genes artificiais construídos em laboratório, ou inclusive microorganismos vivos totalmente artificiais que acelerem o processamento de combustíveis. Isto se soma aos impactos dos transgênicos os novos riscos de formas de vida artificiais, das quais não se pode prever que impacto terão se chegarem a liberar-se intencional ou acidentalmente na natureza.

Biologia sintética e vida artificial
Há toda uma série de novas empresas de biologia sintética (por exemplo, Amyris Biotechnology, Athenix, Codexis, LS9, Mascoma, Metabolix, Verenium, Synthetic Genomics), que, associadas a grandes petrolíferas (Shell, BP, Marathon Oil, Chevron) e a ADM, Cargill, Bunge, Louis Dreyfuss, Monsanto, Syngenta, Dupont, Dow, Basf, entre outras, tentam criar uma nova plataforma econômica e tecnológica usando vida artificial construída em laboratório. Amyris Biotechnology firmou contratos com Crystalsev e com Votorantim para este tipo de desenvolvimentos a partir de cana-de-açúcar e outros cultivos, inclusive árvores. A maioria destes investimentos dirige-se à criação de agrocombustíveis, criando toda uma série de novos impactos ambientais. A demanda de terras para estes novos desenvolvimentos (extensões ainda maiores de monoculturas de soja, milho, cana-de-açúcar, mamona, eucalipto) compete diretamente com a produção alimentar e de pequena escala e promove maior especulação com a terra.

IHU On-Line - O que fazer para acabar com o apoio às próximas gerações de agrocombustíveis e combater essa cultura em nossa sociedade?

Silvia Ribeiro - Outro efeito perverso dos combustíveis agroindustriais é que não combatem as causas dos problemas; antes as pioram. Não questionam a matriz do uso da energia, porém pretendem manter o atual consumo e aumentá-lo. Para começar, é preciso questionar radicalmente a matriz do uso energético em todos os seus aspectos, a qual é profundamente injusta do ponto de vista social. Esta crítica implica, por exemplo, questionar e mudar o uso de combustíveis fósseis e derivados na agricultura e nos transportes, questionar o crescimento urbano selvagem, e eliminar os transportes usados para centralizar a produção agrícola.

IHU On-Line - Que combustível alternativo a senhora sugere como ideal?

Silvia Ribeiro - Há muitas alternativas energéticas baseadas no uso de fontes renováveis, mas, quando são aplicadas em escala massiva e com altas tecnologias, também favorecem fundamentalmente as transnacionais e mantêm a injustiça social. Por isso, devem ser alternativas locais, descentralizadas e em mãos de comunidades, e necessariamente serão muito diferentes segundo as condições de cada localidade e região. A alternativa em agricultura e alimentação é a soberania alimentar, baseada na produção agrícola local e de pequena escala, camponesa, diversa e descentralizada. Isto, por si, implica uma mudança radical no uso de energia, eliminando o uso de derivados do petróleo, transportes desnecessários e a necessidade de produzir mais diversidade e de não ameaçar, mas trabalhar em harmonia com os ecossistemas naturais. Esta é uma solução fundamental para atender a alteração climática, além de se basear na justiça social. Tudo isto não virá nunca a partir de cima, mas somente será possível pela organização e a luta a partir das bases da sociedade.

IHU On-Line - Como a senhora avalia a América Latina nesse cenário? Ela não poderia investir mais nos recursos naturais e renováveis de que dispõe e se unir enquanto bloco, nesse sentido, para ter mais poder nas negociações internacionais econômicas e políticas?

Silvia Ribeiro - A América Latina, considerando o fato de sofrer séculos de despojamento e exploração, tem recursos naturais e povos camponeses, indígenas, movimentos sociais urbanos e rurais que têm o conhecimento e a sabedoria para reconstruir sociedades justas e ecologicamente sustentáveis. Alguns governos do continente estão desenvolvendo políticas diferentes das dominantes, porém somente a luta e pressão das organizações sociais a partir das bases podem conduzir às mudanças profundas de que necessitamos.

IHU On-Line - Como entender a lógica perversa da sociedade de consumo atual que justifica a falta de preocupação ambiental?

Silvia Ribeiro - A lógica de consumo excessivo e, ao mesmo tempo injusto (a terça parte da América Latina está sob a linha de pobreza e outro tanto consome apenas o necessário), é intrínseca à lógica capitalista. A devastação do meio ambiente, embora seja uma “externalidade” do sistema, também se inclui perfeitamente nessa lógica. O capitalismo necessita destruir permanentemente para criar escassez e, desta forma, manter os preços e abrir novas oportunidades de negócios.

IHU On-Line - Qual o papel dos movimentos sociais para a transformação cultural tão necessária para a salvação do planeta?

Silvia Ribeiro - Os movimentos sociais que questionam o sistema, junto às organizações de povos indígenas, afrodescendentes, comunidades camponesas, de pescadores artesanais e outras, são muito mais do que importantes: são fundamentais para realizar as mudanças radicais econômicas, sociais, políticas e ecológicas que são necessárias para “salvar o planeta”. Qualquer outra forma de reformismo ecológico, capitalismo verde etc., no melhor dos casos, se constitui em pequenos atos paliativos que não levam às causas profundas das crises planetárias.

IHU On-Line - A senhora imagina uma total substituição do petróleo pelos agrocombustíveis, com o predomínio de fontes de energia limpas/renováveis?

Silvia Ribeiro - Segundo informes da Agência Internacional de Energia, para 2030, todos os investimentos em agrocombustíveis e outras formas de energia industrial não baseadas em petróleo apenas cobririam 9% da demanda energética global (com enormes impactos sociais e ambientais adicionais). Estes informes não levam em conta os investimentos em biologia sintética e a chamada nova economia pós-petrolífera do açúcar, que lamentavelmente continua progredindo, as quais poderiam modificar em algo esta porcentagem, porém não atingiriam “o grosso” da dependência dos combustíveis fósseis. Isso significa que o único caminho realmente viável é o questionamento radical da matriz de uso de energia e, portanto, do capitalismo que a criou e sustenta. Em nenhum cenário a base de energia em nível global devem ser os agrocombustíveis, porque implicariam um uso desmedido da terra, da água etc. Creio que se trata de pensar e construir (ou reconstruir e afirmar) o controle e a decisão comunitária, local e diversa de uso dos recursos, incluindo as fontes de energia, que necessariamente devem ser distintas, de acordo com as diversas condições geoclimáticas, culturais etc.

Fonte:
http://amaivos.uol.com.br/templates/amaivos/amaivos07/noticia/noticia.asp?cod_noticia=11301&cod_canal=49