sexta-feira, 29 de maio de 2009

A Bíblia na vida, hoje! A partir do Assentamento Pastorinhas e da Ocupação Dandara



Delze dos Santos Laureano[1]


1) Para início de conversa

Nada sei da Bíblia além do que aprendi nas interpretações em celebrações eucarísticas na Igreja do Carmo, em Belo Horizonte, ou nas leituras meditativas que faço sozinha, ou em pequenos grupos nos momentos de oração. O que me leva a uma busca incansável da compreensão do sentido dos textos bíblicos é a paixão pela interpretação mesma e a mania de filosofar, talvez a melhor herança que recebi do meu pai, um homem do campo com nome de profeta, Joel. É certo que mesmo sabendo, conforme disse Manoel de Barros, que “compreendo sempre o que faço, depois que já fiz”, acompanha-me o desejo de buscar algo para além da experiência concreta e imediata dos fatos. Cultivo em mim uma sede de transcendência, a certeza da presença de Deus/amor na nossa vida, o que nos torna capazes de sermos mais do que a aparente fragilidade humana. E isso, percebo, se dá exatamente quando as pessoas agem coletivamente de forma organizada a partir de uma fé libertadora. Essa a minha experiência com a leitura da Bíblia.
Como advogada de movimentos sociais por diversas vezes tive a sensação de estar vivendo a experiência já vivida e contada nos textos bíblicos. Esta percepção me ajuda a descobrir novos modos para a conquista de direitos sociais e a esperança de dias melhores para a nossa sociedade com os marginalizados na nossa sociedade e a partir deles.

2) Um dia o sol não se pôs no Município de Brumadinho

A primeira experiência que tive do texto vivo da Bíblia foi no Assentamento Pastorinhas, em Brumadinho, na região metropolitana de Belo Horizonte, MG. A área está hoje destinada ao assentamento de trabalhadoras/res da reforma agrária pelo INCRA. Conhecendo a história daquelas famílias e a sua luta obstinada por um pedaço de terra descobri o sentido de certa passagem do livro de Josué (Capítulo 10,12-14)
[2]. Após várias tentativas infrutíferas de conseguir, via burocrática, uma área para o assentamento, mais de 100 famílias de trabalhadores rurais sem-terra resolveram ocupar propriedades rurais abandonadas na região. Todavia, as famílias eram sempre retiradas da terra ocupada, após o pedido de reintegração de posse na justiça. Às vezes, antes mesmo de entrar na área eram impedidas pela polícia que, de alguma forma, tomava conhecimento das suas intenções. Aprendendo com essas experiências, as lideranças descobriram que era preciso manter sigilo absoluto acerca da gleba a ser ocupada, até mesmo de algumas pessoas que estavam acampadas com elas na beira da rodovia. Era também primordial escolher bem o dia da ocupação, de modo a retardar ao máximo a chegada da decisão judicial de reintegração de posse.
E foi dessa forma, “sendo simples como as pombas, mas espertos como as serpentes”, com muita ousadia e organização que os trabalhadores conseguiram enfim ocupar na madrugada de véspera do feriado de Carnaval de 2001 uma fazenda de 158 hectares, há muito abandonada pelo antigo proprietário. A primeira parte do plano já tinha um bom resultado: a polícia não teve conhecimento prévio da ocupação. A segunda parte era dar efetividade à ocupação da terra antes que o proprietário pudesse obter na justiça a liminar de reintegração de posse. Deste modo, na mesma madrugada, as famílias, após acomodarem as crianças nos carros velhos que conseguiram para fazer o trajeto até a ocupação, empenharam-se, todas, no trabalho de aração e de semeadura dos 14 hectares de terra que encontraram apenas com monocultura do capim. Em apenas três dias, trabalhando dia e noite, conseguiram arar e plantar os 14 hectares de terra com verduras e legumes.
[3] Foi deste modo que o milagre aconteceu. Após o feriado, quando o juiz da Vara Agrária visitou o local para verificar a situação do imóvel ficou emocionado com o que viu. Verduras e legumes já estavam brotando por todos os lados. A terra já estava cultivada e o imóvel cumprindo a sua função social. A decisão do juiz culminou com a compra da área pelo INCRA.
Tudo ocorreu conforme o livro de Josué, só que desta vez em Brumadinho, no Estado de Minas Gerais. “O sol se deteve e a lua ficou parada, até que o povo se vingou dos seus inimigos.” Vingaram mesmo foram as plantas, semeadas ligeiras por aquelas/es trabalhador/res. Vingar para as plantas não significa matar, fazer o mal, significa viver, sobreviver, superar as forças da morte. Vingar dos seus inimigos para aquelas/es trabalhadoras/res Sem Terra significou fazer da terra o que o antigo proprietário não foi capaz ou não quis fazer. E como prossegue o texto do livro de Josué, “nem antes, nem depois, houve um dia como esse, quando Javé obedeceu a voz de um homem.” Naquele dia, o Deus da vida ouviu foi o clamor das mulheres, as lideranças do Assentamento Pastorinhas, que cansadas de ver faltar o alimento na mesa, mandaram o sol se deter no céu para que a noite (que seria a expulsão daquela terra que não cumpria sua função social) não viesse antes de ser toda a terra plantada. Com a luz do dia, e sendo luz de Deus, as pastorinhas, em mutirão, prepararam a terra e semearam não apenas sementes de verduras, mas sementes de uma vida com mais luz, dignidade. Assim, impediram que a noite da opressão anterior se repetisse. Enquanto milhares buscavam alegria e luz no Carnaval, 22 famílias, na luta, plantaram na terra sementes que tem lhes dado dignidade, alegria e luz para todos.

3) Haverá um novo céu e uma nova terra de Dandara

Dandara, a mulher, ontem foi uma guerreira companheira do líder Zumbi dos Palmares. Como Zumbi preferiu a morte à escravidão. Vivendo livre em uma terra com os seus irmãos ex-escravos não se submeteu aos interesses dos grandes proprietários de terra, que dos negros só queriam a força de trabalho, o suor e o sangue. Desapareceu deste mundo quando desapareceu Palmares, a república negra da Serra da Barriga em Alagoas, nas terras Brasil.
A Dandara de hoje, uma comunidade, é a ocupação de famílias de trabalhadores urbanos e rurais ocorrida neste ano de 2009, na Quinta-feira Santa, no bairro Céu Azul,região da Pampulha, em Belo Horizonte. No primeiro momento, aqueles trabalhadores, cansados de serem enxotados que nem cão vadio, de um lado para outro, só tendo a moradia de favor ou de aluguel em barracos de favelas e áreas de risco, entenderam que somente se organizando seriam capazes de conquistar o direito à moradia e o direito a uma vida digna.
Naquela madrugada, aproximadamente 130 famílias de sem-casa e Sem Terra cortaram a cerca e entraram em um imóvel de 400.000 metros quadrados – 40 hectares -, completamente abandonado há mais de 3 décadas. Uma área de terreno já urbanizada na região metropolitana de Belo Horizonte. Pensavam estar entrando em uma área pública, reconhecidamente devoluta, e que, portanto, nos termos da lei, pertenceria ao Estado de Minas Gerais. Somente após raiar o sol ficaram sabendo que a área é reivindicada pela Construtora Modelo, que quer fazer no local mais um grande empreendimento imobiliário na capital mineira.
Mas o equívoco, em nada atrapalhou o intento daquelas famílias de trabalhadores marginalizados. A disposição de luta e a legitimidade de suas reivindicações mobilizaram diversas forças sociais de apoio e abrigou centenas de novas famílias que, atualmente, já somam mais de mil acampadas e mais 500 famílias em uma lista de espera. Todas essas pessoas descobriram uma unidade de luta que os identifica. E foi a partir desses acontecimentos que percebi a riqueza de outro texto bíblico: o livro do profeta Isaías (Capítulo 65,17-25), que narra a construção de um novo céu e de uma nova terra. O autor deste texto nos apresenta a realização do projeto de Deus: vida em abundância para todos e tudo, um mundo de paz, harmonia e alegria. Quem esteve lá e não sentiu esse projeto de Deus na Ocupação Dandara?
Aquelas famílias com coragem e disposição para a luta e para o trabalho mostraram na prática que é possível criar esse novo céu e essa nova terra. Já na Quinta-feira Santa, dezenas de lideranças das Brigadas Populares, do MST
[4] e do Fórum de Moradia do Barreiro “lavaram” os pés de centenas de famílias crucificadas na falta de reformas agrária e urbana. Partilharam o pão do sonho da casa própria conquistada na luta. Beberam o vinho amargo de resistir à truculência da tropa de choque que aterrorizou todos no acampamento, enquanto mundo afora nas igrejas cristãs celebrava-se a missa do lava-pés. Antes da Sexta-feira Santa, na comunidade Dandara, Jesus já havia ressuscitado. Ali brilhava, como no Natal, a estrela que guiou os magos para o encontro com Jesus de Nazaré.
O projeto revolucionário de Jesus não morreu na cruz. Ele está vivo em cada um/a dos que acreditam ser possível viver melhor. E viver melhor é caminhar junto nesta vida, com coragem e determinação, conspirando a construção de “outra terra e de outro céu’. Conforme já anunciou a irmã Rosário: estão todos ali caminhando seguindo bons pastores e boas pastoras.
E realmente, a Ocupação Dandara é o mais novo sinal de que Deus está criando ali pelas mãos e organização dos trabalhadores um novo céu e uma nova terra. Nada está pronto, mas está tudo em construção. “As coisas antigas nunca mais serão lembradas, nunca mais voltarão ao pensamento.” Por isso já estão todos alegres. Não haverá mais choro ou clamor. Lá, no Dandara, correm por todo lado as crianças, que não estão condenadas a morrer precocemente, de fome ou vítimas do tráfico de drogas. Tudo porque naquela terra serão plantados alimentos, serão construídas casas onde não haverá espaço para drogas e violência. A ordem ali é que crianças estudem e brinquem. Criança que brinca e estuda é projeto de cidadania. Famílias que vivem em comunidades são famílias de esperança.
Ali no Dandara, de forma organizada, trabalhadores e pessoas que têm compromisso com a vida, como no livro de Isaias, “construirão casas e nelas habitarão, plantarão vinhas e comerão seus frutos. Ninguém construirá para outro morar, ninguém plantará para outro comer”, como sempre aconteceu no mundo em que viviam: pedreiros sem casa que sempre fazem casas luxuosas para outros morar. Ali, “a vida do povo será longa como as árvores.” Ninguém trabalhará inutilmente, ninguém gerará filhos para morrerem antes do tempo, porque todos serão a descendência dos abençoados de Javé.”
É bom que os lobos e os leões conheçam o que está no texto do profeta Isaías e venham aprender a se alimentar de todas essas belezas com o povo do Dandara, porque está escrito no texto sagrado que “ninguém causará danos ou estragos ali.” Olhem por toda parte naquela ocupação e ajoelhem-se diante do milagre de que são capazes os pobres. Vejam como podem construir com os restos dos ricos. As 1084 barracas são todas de pedaços descartados de construções, madeiras velhas, carpetes usados, plásticos e panos emendados. A partir do lixo de uns estão construindo um novo céu e uma nova terra. São capazes de plantar ao redor das barracas jardins - na terra dura ainda sem adubo -, porque a vida nasce em todos os lugares. São capazes de colocar dons e talentos a serviço de quem precisa. Quem já foi vigilante e prestou serviço militar, com muita alegria e dignidade, ajuda na segurança do acampamento. Quem é carpinteiro, além de construir o seu abrigo ajuda outras famílias a fazer as suas barracas. Unidos fizeram-se fortes para resistir à truculência da tropa de choque para esperar o milagre da suspensão da ordem de reintegração de posse pelo Tribunal de Justiça.
Tudo isso confirma o que temos anunciado há muito tempo: um mundo novo está sendo construído, com a graça de Deus e pelos pobres que irradiam a luz e a força divinas no mundo.
Quem tiver olhos para ver, veja lá e aqui:
www.ocupacaodandara.blogspot.com.

Belo Horizonte, 12 de maio de 2009.
[1] Advogada, professora de Direito Agrário na Escola Superior Dom Hélder Câmara, em Belo Horizonte, MG; Mestre em Direito Constitucional pela UFMG; Doutoranda em Direito Internacional Público pela PUC MINAS; Integrante da RENAP – Rede Nacional de Advogados Populares; E-mail: delzesantos@hotmail.com
[2] “Foi então que Josué falou a Iahweh, no dia em que Iahweh entregou os Amorreus aos israelitas. Disse Josué na presença de Israel: “Sol, detém-te em Gabaon, e tu, lua, no vale de Aialon!” E o sol se deteve e a lua ficou imóvel até que o povo se vingou dos seus inimigos. Não está isso escrito no livro do Justo? O sol ficou imóvel no meio do céu e atrasou o seu ocaso de quase um dia inteiro. Nunca houve dia semelhante, nem antes, nem depois, quando Iahweh obedeceu à voz de um homem. É que Iahweh combatia por Israel.”
[3] Optaram por plantar verduras e legumes, porque as crianças estavam desnutridas. Precisavam garantir o mais rápido possível alimentos de qualidade para salvar as crianças. Adubaram de forma orgânica, porque Valéria, uma das Pastorinhas, tinha se formado em Técnica Agrícola na Fundação Helena Antipoff, onde agroecologia é uma prioridade absoluta.
[4] Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra; www.mst.org.br

quarta-feira, 27 de maio de 2009

A quantas anda a violência contra a mulher?



Maria Clara Lucchetti Bingemer

O mês de maio, de Maria, das noivas e das mães, é sem dúvida e sempre identificado com a mulher. Mês das flores, do tempo belo e fresco, dos dias azuis e de sol acariciante, como não ligá-lo com essa que é a mais delicada obra do Criador, diante da qual Adão recém criado exclamou apaixonado: “Essa sim é osso de meus ossos e carne da minha carne”.
Infelizmente não andam muito favoráveis as estatísticas sobre a mulher. Cada dia abrimos o jornal e encontramos notícias tristíssimas: mulheres agredidas, verbal, física e psicologicamente, muitas vezes até a morte. Mães, esposas, namoradas, noivas, filhas, netas... não há limites para a violência que parece desencadear-se cada vez com mais fúria sobre a mulher.
Atualmente, o problema da violência contra a mulher é tão sério que é comparável com o problema da AIDS. Vai a dois, a quatro milhões de mulheres anualmente que são agredidas por seu companheiro, marido, noivo, ou amante. Entre 15 e 25 % dessas mulheres estão grávidas; o qual faz mais sério ainda o problema. As mulheres maltratadas constituem 20 % das mulheres que vão aos serviços de emergência com feridas.
Trata-se, porém de um tipo de violência não sempre fácil de definir ou reconhecer. Em termos gerais poderíamos designá-la como o uso deliberado da força para controlar ou manipular outro ser humano, mais frágil e indefeso. Trata-se do abuso psicológico, sexual ou físico habitual. Acontece entre pessoas muitas vezes relacionadas afetivamente, como são marido e mulher ou adultos contra os menores que vivem em uma mesma casa.
A violência não é somente o abuso físico, os golpes, ou as feridas. São ainda mais terríveis a violência psicológica e a sexual pelo trauma que causam, mais que a violência física, que deixa sinais que todo mundo pode ver. Há violência quando se ataca a integridade emocional ou espiritual de uma pessoa. Mas sempre a violência física, a mais evidente, é precedida por abuso psicológico, que é usado sistematicamente para degradar à vítima, para erodir e esmagar a auto-estima da mulher.
A violência psicológica se detecta com maior dificuldade. Quem sofreu violência física tem rastros visíveis e pode obter ajuda mais facilmente. Entretanto, à vítima que leva cicatrizes no psiquismo ou na alma tem muito mais dificuldade em obter compaixão e ajuda. À violência física precede, às vezes, anos de violência psicológica. A violência psicológica é desprezar a mulher, insultar a de tal maneira, que chega um momento em que essa mulher maltratada psicologicamente, já acredita que merece esses golpes os.
Há mulheres que se envergonham pelo que lhes acontece e que até se acreditam merecedoras dos abusos. Por isso preferem mantê-los em segredo e assim essa situação pode prolongar-se durante anos. A intimidação é também um abuso. "Se disser algo lhe Mato." Muitas mulheres não se atrevem a falar, pelas ameaças que seus maridos ou seus companheiros lançam contra elas.As ameaças através dos filhos, as ameaças de que lhe vão tirar ao filho, todos estes são abusos psicológicos que precedem o abuso físico. Todos estes abusos impedem que a mulher deixe o lar, esse lar violento. É que essa surra psicológica a que estão submetidas muitas mulheres, é mais horrorosa que o abuso físico. Os golpes doem e machucam, mas os abusos psicológicos, os insultos, os desprezos ficam cravados no coração.
Pudesse o mês de maio servir de tempo de reflexão e exame de consciência. De que adianta celebrar a beleza da mulher, cantar as curvas da garota de Ipanema se no segredo do lar, da alcova, ela padece insultos, abusos, violência de todo tipo? Mulher é gente. É diferente do homem. E há que amar essa diferença. É assim que se construirá verdadeiramente a humanidade.

Fonte:
http://amaivos.uol.com.br/amaivos09/noticia/noticia.asp?cod_noticia=12342&cod_canal=47

segunda-feira, 25 de maio de 2009

Crise ambiental e relação do homem com a natureza


O Rio São Francisco: acqua mater

Dom frei Luiz Flávio Cappio
[1]

Antes de viajar para a Alemanha para receber o Título de Cidadão do Mundo[2], dia 5 de maio de 2009, na PUC Minas, em Belo Horizonte, MG, na abertura do III Simpósio Internacional de Teologia e Ciências da Religião, Dom Cappio, o bispo que já fez duas greves de fome contra a Transposição de águas do Rio São Francisco e pela defesa do Rio São Francisco e do seu Povo, nosso querido frei Luz proferiu a seguinte conferência:
Que mundo deixaremos para nossos filhos, netos? Que planeta estamos preparando para as futuras gerações?
É uma questão elementar de justiça. O sagrado direito que cada um de nós possui de poder viver em um ambiente sadio, digno de seres humanos, propício à vida com qualidade para cidadãos e cidadãs deste planeta, corresponde ao igual dever que nos compete de propiciar estes mesmos direitos às futuras gerações. Herdamos um mundo, um planeta que nos foi legado por aqueles que vieram antes de nós, que prepararam a casa onde hoje moramos, onde vivemos, onde realizamos nossa existência.
Cabe-nos fazer o mesmo para aqueles e aquelas que virão depois de nós, que herdarão o planeta que tivermos preparado para eles. Isso e uma questão de justiça.

Amanha, quando o sol nascer de novo com seu calor e vida;
As flores nos acolherem com suas variadas cores e perfumes;
Ouvirmos o canto dos pássaros e a brisa fresca beijando nosso peito;
Nossos lábios sorverem as águas puras da fonte enquanto contemplamos as verdes altas montanhas e o azul profundo dos oceanos;
Poderemos ouvir dos que virão depois de nós: "Obrigado pelo mundo que vocês prepararam para nós. Obrigado pelo planeta, qual jardim, que vocês nos legaram. Obrigado pelas sementes de vida que vocês plantaram para que pudéssemos colher seus abundantes frutos. Obrigado, muito obrigado."
Ou, depois de amanha, quando não mais houver amanhecer, mas apenas uma claridade enfumaçada, coberta por nuvens ácidas;
Quando nossa visão enfraquecida e nossos corpos se esvair em feridas purulentas provocadas pela radiação tóxica causada pelo enfraquecimento da camada de ozônio;
Quando, em vez de água, tivermos que beber um suco pastoso de coliformes fecais temperado com ingredientes químicos das mais nocivas origens;
Quando a paisagem se tornar um imenso deserto sem vida, sem a canção dos pássaros, sem a melodia de vozes humanas, porque ninguém mais terá ânimo para cantar e sim para gritar desesperadamente pelas dores lancinantes de ossos e músculos em decomposição;
E as mães, por amor, tiverem que abortar os filhos para que não sejam mais sofredores condenados a esse vale de lágrimas;
Ouviremos nossos filhos e netos, com dedo em riste apontando para nós, olhos esbugalhados, roendo palavras desconexas de ódio e rancor, gritarem: "Malditos, demônios, filhos das trevas e do mal, olhem para esse inferno para o qual fomos condenados. Vocês são os responsáveis pela desgraça que nos envolve, fazendo-nos desgraçados com elas."
Que mundo, que planeta legaremos para nossos filhos e netos? Isso é uma questão de justiça. Poderemos ser justos cumprindo nosso sagrado dever de zelar e cuidar dessa riqueza infinita que nos foi confiada, ou podemos ser profundamente injustos assumindo a postura irresponsável e inconsequente dos que apenas exploram e usufruem do tesouro de incomensurável valor que é a natureza, mãe da vida.
“Deus perdoa sempre, os seres humanos, de vez em quando, a natureza não perdoa nunca”. Se nós a agredirmos, mais cedo ou mais tarde ela dará sua resposta. A vida que hoje vivemos herdamos de nossos ancestrais. Nós estamos construindo o Planeta em que os que virão depois de nós nele viverão. A vida não se improvisa. Em cinco minutos colocamos no chão uma árvore centenária. Serão necessários mais cem anos para que tenhamos outra semelhante. Isso se tivermos o cuidado de plantar outra e cuidar, cuidar e cuidar.
É questão de consciência, de pertença. É questão de possuirmos ou não um sagrado senso de justiça. De ter a sensibilidade de saber compreender o direito que possuímos de viver em um mundo habitável com dignidade, e o dever de co-responsabilidade de preservá-lo para que outros também usufruam do mesmo bem. De saber que este planeta é nosso lar. Fazemos parte dele. Foi-nos entregue para nele viver, usufruir de seus bens e riquezas. Cuidar para que os bens nele presentes possam se perpetuar e para que as gerações futuras, como nós, também possam tê-lo cheio de vida. Como dizia nosso querido mestre Leonardo Boff: “cuidar é outro nome para o amor e a melhor forma de amar.” “Quem ama, cuida”. E justo que cuidemos do que é de todos. É justo que, no trato das coisas de todos, tenhamos o mesmo zelo como tratamos as nossas em particular.
O mesmo cuidado que a natureza tem para conosco, no sentido de prover, garantir e zelar pela nossa vida, assim também nós recebemos do Pai do Céu a missão de cuidar, prover e garantir a perpetuação dos bens e maravilhas criadas que fazem parte do nosso planeta, o Jardim do Éden. Ou, pela nossa decúria, transformá-lo no inferno de Dante, impossível de nele viver. Isso seria uma grande injustiça de nossa parte.
No último dia da criação, depois que tudo estava pronto, e o Senhor viu que “tudo era bom”, criou o homem e a mulher e lhes outorgou a missão de cuidado para com a obra criada. Fez-nos guardiões da natureza. Este é o sentido bíblico do “dominai a face da terra”. O termo “dominai” vem de latim “dominus” que significa “senhor”. Daí a palavra domingo, que significa “dia consagrado ao Senhor”. O dia do descanso. Como o pai cuida dos filhos, como a mãe é capaz de dar a própria vida pela vida dos filhos, assim também fomos constituídos senhores no sentido da paternidade de quem cuida, na maternidade de quem vela. Mas esta passagem belíssima do Gênesis foi entendida por nós dentro da ótica masculina do ser dono, do explorar, na violência do destruir, na ganância do lucrar, na vaidade do usufruir sem limites. Deturpamos o pensamento original do Criador e impusemos nossa visão dominadora, destruidora, violenta e desrespeitadora. Enquanto o Senhor tudo realizou dentro de um plano perfeito e harmônico, respeitoso e amoroso, e nisso manifestou a Justiça Divina, nós manifestamos a injustiça humana no entendimento e prática deturpada do pensamento do Senhor.
Chamamos para nós os atributos do Criador. Não somos os donos da criação. Somos apenas os seus zeladores e cuidadores.
O livro do Eclesiástico nos ensina: “Da terra Deus criou o ser humano e o formou à sua imagem. E à terra o faz voltar novamente, embora o tenha revestido de poder, semelhante ao seu. Concedeu-lhe dias contados e tempo determinado, dando-lhe autoridade sobre tudo o que há sobre a terra. Em todo ser vivo incutiu o medo do ser humano, fazendo-o dominar sobre as feras e os pássaros. Concedeu aos humanos discernimento, língua, olhos, ouvidos e um coração para pensar; encheu-os de inteligência e instrução. Deu-lhes ainda o conhecimento do espírito, encheu o seu coração de bom senso e mostrou-lhes o bem e o mal. Infundiu o seu temor em seus corações, mostrando-lhes as grandezas de suas obras. Concedeu-lhes que se gloriassem de suas maravilhas, louvassem o seu santo Nome e proclamassem as grandezas de suas obras. Concedeu-lhes ainda a instrução e entregou-lhes por herança a Lei da vida. Firmou com eles uma aliança eterna e mostrou-lhes sua justiça e seus julgamentos. Seus olhos viram as grandezas de sua glória e seus ouvidos ouviram a glória de sua voz. Ele lhes disse: Guardai-vos de tudo o que é injusto! E a cada um deu mandamentos em relação a seu próximo”.
O autor do quarto evangelho nos ensina, no capítulo dez de seu Evangelho, que o Senhor é o Bom Pastor. A justiça do Bom Pastor se manifesta no seu imenso amor e cuidado. O Bom Pastor é aquele que ama suas ovelhas, cuida de seu rebanho. Leva-o para as pastagens verdejantes e para os regatos de águas cristalinas. O Bom Pastor defende o rebanho dos inimigos, do lobo cruel e voraz. Está sempre atento para que nada de mal aconteça a nenhuma de suas ovelhas. Esse é o Bom Pastor. É capaz até, se preciso for, de dar a vida por suas ovelhas. Sacrificar-se por elas. Ser crucificado para “que tenham vida e a tenham em abundância”.
Essa é a herança espiritual daqueles e daquelas que assumem a missão de pastorear, de caminhar junto, mas na linha de frente do rebanho. Os seguidores do Bom Pastor recebem a mesma tarefa, a mesma ordenança, a mesma missão. A de serem justos como o Bom Pastor. Isso nos faz discípulos e missionários do Deus da Vida e da Justiça. Semeadores do bem e da paz. Testemunhas da justiça maior. Chamados a viver em uma ordem justa e fraterna. Fazer com que o leite e o mel continue escorrendo pelos favos da existência humana. Garantindo que todos, todos sem exceção, tenham o direito de uma vida saudável, ética, digna de ser vivida. Enfim, uma vida baseada na justiça. Essa é a vocação do pastor. Para isso ele foi chamado. E é isso que dá sentido e razão de ser para sua existência. A plenitude da realização do pastor é, à imagem do Bom Pastor, poder doar a própria vida pela vida de cada ovelha, de todo o rebanho. Para o pastor iluminado pelo Bom Pastor, o gastar-se é tornar-se mais rico, o doar-se é plenificação, o morrer é viver com abundância.
Mercenários existem muitos e muitas. Homens e mulheres injustas que se travestem de pastores, mas cujas intenções são maléficas. São lobos perigosos e vorazes que se aproveitam da simplicidade e carência do rebanho para fazer acontecer suas intenções sórdidas. Devagar o rebanho vai discernindo e sabendo diferenciar o bom pastor do mercenário. O justo do injusto. “Pelos frutos se conhece a árvore”. O tempo se encarrega de mostrar a verdade dos fatos e das reais intenções. “Não há nada oculto que não venha a ser revelado, não há nada escondido que mais cedo ou mais tarde não apareça”. As questões sociais nos permitem conhecer e distinguir o pastor do mercenário. Aqueles que realmente são justos e estão a serviço do rebanho e aqueles que são injustos e se aproveitam do rebanho para satisfazer seus próprios interesses.
É no entendimento e na consciência de nossa missão de pastores que se funda a capacidade de doarmos a vida. E isso se faz com a máxima alegria e generosidade. É no entendimento e na consciência do verdadeiro sentido da justiça que nos tornamos construtores do Reino de Deus.
O Rio São Francisco é o Pai e a Mãe de todo um povo. É o que garante a água que milhões de seres humanos bebem, comem do seu peixe e se alimentam dos frutos das terras banhadas por suas águas. O Rio São Francisco é o gerador de vida para uma imensidade de outras vidas. O “Velho Chico” não pode morrer. Da vida do “Velho Chico” depende a vida de milhões de outros seres.
Existem no Brasil rios ainda bem maiores que o São Francisco. Mas o que faz a diferença é o fato de percorrer o semi-árido brasileiro. Região de muita carência de chuvas. Águas temos com certa abundância, mas concentradas em alguns rios e na imensa rede de açudes existentes. Necessitamos urgentemente distribuir esta água concentrada para as populações difusas de todo o semi-árido. E isso é uma questão de justiça ambiental, pois a democratização da água é uma tarefa essencial para a manutenção da vida, pois ninguém pode ficar sem ela.
Se o Projeto de Transposição de Águas do Rio São Francisco tivesse como objetivo e meta a distribuição da água para as populações difusas, praticar a justiça ambiental e evangélica de “dar de beber a quem tem sede”, nós seríamos os primeiros a ser de acordo com o projeto. Apoiá-lo-íamos incondicionalmente. Mas a prioridade do Projeto de Transposição é a segurança hídrica em função dos grandes projetos agro­industriais. O uso econômico da água, antes de cumprir sua função essencial que é o dessedentamento humano e animal, faz o projeto tornar-se anti-ético e, portanto injusto, pois inverte as prioridades no uso da água.
O Rio São Francisco imita o santo de seu nome. O santo São Francisco nasceu de família abastada. Quando conheceu o sofrimento dos pobres de seu tempo, deixou toda a riqueza da família e foi para o meio dos pobres e dos pobres mais pobres que eram os leprosos. Dedicou toda a sua vida a eles. Encarnou o verdadeiro sentido e espírito da justiça humana. O Rio São Francisco nasce na Serra da Canastra, no sudoeste do estado de Minas Gerais, uma das regiões mais ricas do Brasil. Poderia tomar a direção do leste ou do sul, regiões igualmente ricas. Mas não, faz uma curva e se dirige para o nordeste. Coloca toda a sua potencialidade a serviço dos pobres do sertão brasileiro. É o rio que imita o santo de seu nome. O rio testemunha a justiça do seu santo padroeiro. Por isso dizemos, o Rio São Francisco é o pai e mãe de um povo. Aquele que supre suas necessidades essenciais, vitais.
Rio vivo — povo vivo.
Rio doente — povo doente.
Rio morto — morte de um povo.

Ser pastor nas barrancas do São Francisco é garantir vida e vida abundante aos barranqueiros. Vida abundante aos barranqueiros significa vida abundante ao “Velho Chico”. Diante das inúmeras agressões causadas ao nosso rio, agressões essas geradoras de doença e morte, o pastor não pode manter-se calado. E sua missão, é seu dever praticar a justiça, ser testemunha da justiça maior, erguer a voz, colocar suas forças no sentido de garantir vida ao rio, pois na vida do rio, a vida do povo. É por isso que, diante de todas as ameaças de morte causadas ao rio e ao povo, o pastor se levanta, grita bem alto, qual João Batista no deserto, arrisca a própria vida, pois “onde a razão se extingue, a loucura é o caminho”. Para salvar o Velho Chico, salvar a biodiversidade, salvar os povos ribeirinhos, salvar os seres humanos, salvar o planeta, salvar a vida, vale a pena doar a própria vida. Vale a pena morrer para que tenham vida e vida em abundância. E assim se cumpre toda a justiça.

[1] Bispo da Diocese de Barra, no Sertão da Bahia. www.umavidapelavida.com.brdcappio@yahoo.com.br
[2] Após o recebimento do prêmio Pax Christi, em outubro de 2008, o bispo da Diocese da Barra, D. Luiz Cappio, será homenageado mais uma vez. No dia 9 de maio de 2009, D. Cappio receberá na cidade de Freiburg, na Alemanha, o Prêmio Kant de Cidadão do Mundo, dado pela Fundação Kant. Essa é a terceira edição do prêmio que homenageia personalidades que se destacam pelo engajamento corajoso na defesa de grupos sociais marginalizados politicamente e socialmente, a favor dos direitos humanos e em defesa das bases sociais, naturais e culturais da vida. Idéias inspiradas na filosofia moral de Immanuel Kant.

sábado, 23 de maio de 2009

Dom Cappio receberá Prêmio Kant de Cidadão do Mundo



Após o recebimento do prêmio Pax Christi, em outubro de 2008, o bispo da Diocese da Barra, D. Luiz Cappio, será homenageado mais uma vez. No dia 9 de maio, D. Cappio receberá na cidade de Freiburg, na Alemanha, o Prêmio Kant de Cidadão do Mundo, dado pela Fundação Kant.
Essa é a terceira edição do prêmio que homenageia personalidades que se destacam pelo engajamento corajoso na defesa de grupos sociais marginalizados politicamente e socialmente, a favor dos direitos humanos e em defesa das bases sociais, naturais e culturais da vida. Idéias inspiradas na filosofia moral de Immanuel Kant.
O evento homenageará também Jeff Halper, Professor de Antropologia e ativista de direitos humanos, que protestou contra a destruição de casas de palestinos na Faixa de Gaza e terá a presença de Richard Falk, relator especial das Nações Unidas para os Direitos Humanos.

Agenda política

Além do prêmio, a viagem de D. Cappio a Europa inclui uma agenda extensa de visitas e encontros que terão como principal objetivo retomar o debate sobre a transposição do rio São Francisco na Europa e o apoio solidário à luta em defesa do rio São Francisco e do Semi-árido brasileiro.
A programação inclui encontros com políticos, tomadores de decisão, representantes religiosos e a sociedade civil organizada, que na ocasião do jejum de D. Luiz Cappio, em 2007, apoiou maciçamente o bispo através do envio de cartas e emails. Na época foram mais de 20.000 manifestações eletrônicas de apoio encaminhadas ao gabinete do Presidente da República do Brasil e ao Ministério da Integração Nacional, órgão do governo responsável pela obra da transposição do rio. Estão programadas visitas às cidades alemãs de Frankfurt, Berlim, Bonn, Bremen e à cidade austríaca de Graz, juntamente com uma visita ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, na cidade francesa de Strassbourg.
A agenda inclui também a participação, no dia 21 de maio, no 32º Kirchentag, o mais importante evento religioso em solo alemão. Promovido pela Igreja Luterana, o encontro ecumênico é conhecido por ser um movimento livre de pessoas cristãs que, a partir de uma visão crítica, estão engajados na construção do futuro da Igreja e do mundo. Na sua última edição, em 2008, mais de 200.000 pessoas participaram.
"Os compromissos atenderão a diversos interesses, todos relacionados à questão ambiental vinculada à questão social, no Brasil e no mundo. O pano de fundo é a crise ecológica, manifestada pelas mudanças climáticas, que preocupa à Europa e ao mundo. É certo que questionaremos os agrocombustíveis, como o nosso etanol de cana, falsa solução para um problema muito mais sério e profundo que é o esgotamento do modelo de produção e de consumo, de desenvolvimento, de civilização", relata o agente da CPT - Comissão Pastoral da Terra, coordenador de um projeto de apoio à articulação popular em defesa do rio São Francisco e assessor de D. Cappio, Ruben Siqueira.
Ele acredita que a repercussão da greve de fome está ainda se refletindo nas premiações que D. Cappio tem recebido. "O recurso da greve de fome nesses dois momentos demonstrou a crise de representação social e política que dificultou a expressão da sociedade civil", reflete. Ruben acredita que a viagem de D. Cappio é o momento ideal para retomar essas discussões e a luta por outro tipo de desenvolvimento no São Francisco e no Semi-árido, o qual não comporta mega-obras hídricas.
Pensando nisso, o total desrespeito do governo aos povos indígenas será denunciado, já que alguns dos trechos da transposição afetam terras de nove tribos da região, como os Truká, os Tumbalalá, os Pipipã, entre outros. A idéia é lançar na ocasião uma campanha para pressionar o Judiciário brasileiro a julgar favoravelmente as Ações Diretas de Inconstitucionalidade que estão tramitando no Supremo Tribunal Federal contra a transposição e em defesa dos indígenas, e chamar a atenção das instâncias internacionais para essa questão.
A viagem será viabilizada pela colaboração entre Missão Central dos Franciscanos, Fundação Kant, Misereor, Adveniat, KOBRA entre outras organizações.

Para mais informações:

Assessoria de Comunicação do Projeto São Francisco
Tel.: 3329-5750
sfvivo@gmail.com

Visite também a página web (em alemão) sobre a viagem de D. Luiz Cappio
http://www.saofrancisco-2009.net

Fonte:
http://www.cebi.org.br/noticia.php?secaoId=1&noticiaId=1099

terça-feira, 19 de maio de 2009

Por uma educação amorosa


Marcelo Barros+

Nos últimos dias, alguns jornais de TV têm divulgado estudos de pesquisadores da USP (Universidade de São Paulo) sobre a evasão de jovens de salas de aula. A pesquisa aponta que a incidência de jovens que abandonam a escola ainda é muito alta. 43% destes jovens declaram que fazem isso por não ter motivação para estudar. Evidentemente, os fatores que levam a isso são diversos, mas uma constatação inevitável é a de que a escola ainda se mantém um tanto rígida e separada do cotidiano da vida, além de presa a conteúdos nocionais e métodos superados em um mundo no qual a juventude está envolvida em internet, orkut e jogos eletrônicos.
A realidade da educação tem mudado em toda a América Latina. Agora, além de Cuba, mais dois países foram reconhecidos pela UNESCO como territórios livres do analfabetismo: Venezuela e Bolívia. Outros estão no caminho. No nosso país, o programa "Brasil Alfabetizado" visa universalizar a alfabetização dos maiores de 15 anos. Já conseguiu alfabetizar mais de nove mil adultos. Apesar disso, ainda temos uma taxa de 16% de analfabetos. E o mais doloroso é que as pesquisas mostram: a maior parte das pessoas analfabetas no Brasil já passou por alguma escola e saíram sem aprender a ler, ou como dizia Paulo Freire, a reinterpretar o mundo.
Não se pode negar que a atual gestão do Ministério da Educação esteja fazendo, em todos os níveis, um trabalho positivo pela transformação das estruturas da educação. Está havendo um aprimoramento das estruturas da educação infantil, integrando creche e escola e formando pedagogicamente as professoras encarregadas da primeira educação. Os exames que comprovam o rendimento educacional de cada classe e de cada escola expõem a competência e opção das professoras. Uma escola de periferia recebe uma avaliação positiva, enquanto outra, no mesmo bairro, com as mesmas condições e lidando com crianças da mesma classe social, recebe avaliação negativa. Isso revela que as condições sociais não explicam tudo e as professoras precisam sempre rever sua dedicação e cuidado. De fato, a criança dos primeiros anos aprende, não por alguma opção intelectual ou ambição pessoal, mas para agradar e receber aprovação e amor da pessoa adulta que a acompanha. Também no nível da escola média e universidade, vários programas cuidam de melhorar a universidade. A "escola aberta" e "a conexão de saberes" aprofundam a relação da escola e da universidade com movimentos e comunidades populares.
Todos sonhamos com uma escola que parta da realidade da juventude, se construa de amor e ofereça a uma juventude muitas vezes sem perspectivas e sem rumos na vida, motivos não só para viver, mas para ser pessoas boas e solidárias.
Gandhi dizia: "A verdadeira educação consiste em pôr a descoberto ou fazer com que desabroche o melhor de uma pessoa". Toda educação deveria levar a pessoa a assumir a consciência de sua dignidade humana e do seu papel de sujeito e não de objeto na construção da sociedade. É certo que vivemos em um mundo no qual os governos são incapazes de acabar com a fome e a miséria de multidões, mas empregam milhões do dinheiro público para salvar bancos falidos e grandes empresas, vítimas de esquemas desonestos. Entretanto, apesar de tudo, as políticas públicas existem e são fundamentais. Elas têm sido aprimoradas, mas não bastam. A escola precisa ser assumida por todos os cidadãos, como algo que pertence a todos e não somente ao governo ou ao/à diretor/a do estabelecimento. Este processo de apropriação da escola por parte de toda a comunidade local é essencial para a educação da juventude, integrando-a na realidade. É este processo que possibilita a escola assumir e até promover a educação a partir de uma verdadeira diversidade cultural. As tantas escolas que, por todo o Brasil, são bilíngües (ensinam em português e na língua indígena da comunidade), assim como as que se inserem nas culturas afro-descendentes e ensinam a história da África e das comunidades negras no Brasil mostram a riqueza a que se pode chegar. Mais dificilmente, a evasão escolar se dá nestes estabelecimentos.
Para quem tem fé e vive uma busca espiritual, o compromisso com a educação faz parte da missão de testemunhar o amor de Deus por todos os seus filhos e filhas. Assim como o de colaborar para que todos, jovens e adultos, participem da ação criadora de Deus, ao transformar este mundo em uma sociedade mais justa e em comunhão de respeito e amor com todo o universo.

Fonte:
http://www.cebi.org.br/noticia.php?secaoId=15&noticiaId=1104

+ Monge beneditino e escritor

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Desmatamento Zero



Roberto Malvezzi, Gogó*

Foi com relutância - até que fiquem mais claras todas as conseqüências - que a Comissão Pastoral da Terra (CPT) assumiu, em sua XXI Assembléia, a bandeira do "Desmatamento Zero". O receio de que ela venha de grandes ONGs, que limite a reforma agrária, que seja uma generalização para pequenos e grandes, foi a base dos argumentos levantados. De fato, é preciso reconhecer que o desmatamento zero trás consigo inúmeras implicações ainda não totalmente investigadas. É provável que contribua para uma reinvenção da reforma agrária, já que a posta atualmente tem mostrado muitos ângulos de inviabilidade, inclusive ambiental.

Ainda dependendo de uma investigação mais profunda, o certo que é que só dão certos os assentamentos que respeitam as leis de cada bioma. Por exemplo, só dão certo no semi-árido os assentamentos que vêm na lógica da convivência com o semi-árido, captando a água de chuva para beber e produzir, garantindo áreas de pastagens coletivas, mantendo a caatinga em pé para a criação de pequenos animais e para a apicultura. Nesse bioma, os assentamentos que desmataram para plantar grãos, faliram. Por conseqüência, o povo migra. As CPTs da Amazônia, também para exemplificar, já decidiram que reforma agrária na floresta só faz sentido "para mantê-la em pé"

O "Desmatamento Zero" deveria fazer parte da agenda de todos os movimentos sociais, inclusive dos que lutam pela terra e reforma agrária. Justificar o desmatamento como necessidade da reforma agrária é contribuir com o latifúndio e o agronegócio. Esses sim, só podem sobreviver pelo desmatamento e pelo descomunal subsídio governamental que recebem.

O Brasil já está excessivamente desmatado para comportar mais derrubadas e queimadas. A reforma agrária tem que acontecer em áreas já desmatadas, ocupadas pelo agronegócio, onde as terras ainda são férteis. Fazer a reforma em áreas degradadas só se for como apoio explícito aos pequenos agricultores para zelarem do meio ambiente, restaurando a natureza degrada, não para sobreviverem da agricultura naquele espaço.

O Ministério Público do Acre acaba de entrar com uma ação para que qualquer derrubada ou queimada de floresta seja proibido a partir de 2011. Ótima medida, mas longe demais. A bandeira do "Desmatamento Zero" tem que ser erguida já.

A razão é simples: o Brasil é o quarto maior contribuinte mundial para o aquecimento global. Não são nossos carros que poluem o mundo. Nesse item somos insignificantes. É a queima e a derrubada de nossas florestas que nos põem nesse patamar, contribuindo com 75% de todas as nossas emissões. Portanto, além de defendermos o patrimônio natural que nos resta, rompendo com uma inércia civilizatória que vem do primeiro dia da história do Brasil, daremos uma contribuição monumental para evitar a hecatombe do aquecimento global, além de preservarmos nossa biodiversidade e clima. É preciso ainda considerar que a Terra também precisa de sua cota de vegetação para respirar e continuar viva. Do contrário, se vinga.

Todos ao desmatamento zero. Agarremos essa chance antes que cheguemos ao ponto sem volta.

Fonte:
http://www.cebi.org.br/noticia.php?secaoId=11&noticiaId=1103

* Agente Pastoral da Comissão Pastoral da Terra

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Coisas da Política - A gripe dos porcos e a mentira dos homens



Mauro Santayana

O governo do México e a agroindústria procuram desmentir o óbvio: a gripe que assusta o mundo se iniciou em La Glória, distrito de Perote, a 10 quilômetros da criação de porcos das Granjas Carroll, subsidiária de poderosa multinacional do ramo, a Smithfield Foods. La Glória é uma das mais pobres povoações do país. O primeiro a contrair a enfermidade (o paciente zero, de acordo com a linguagem médica) foi o menino Edgar Hernández, de 4 anos, que conseguiu sobreviver depois de medicado. Provavelmente seu organismo tenha servido de plataforma para a combinação genética que tornaria o vírus mais poderoso. Uma gripe estranha já havia sido constatada em La Glória, em dezembro do ano passado e, em março, passou a disseminar-se rapidamente.

Os moradores de La Glória – alguns deles trabalhadores da Carroll – não têm dúvida: a fonte da enfermidade é o criatório de porcos, que produz quase 1 milhão de animais por ano. Segundo as informações, as fezes e a urina dos porcos são depositadas em tanques de oxidação, a céu aberto, sobre cuja superfície densas nuvens de moscas se reproduzem. A indústria tornou infernal a vida dos moradores de La Glória, que, situados em nível inferior na encosta da serra, recebem as águas poluídas nos riachos e lençóis freáticos. A contaminação do subsolo pelos tanques já foi denunciada às autoridades, por uma agente municipal de saúde, Bertha Crisóstomo, ainda em fevereiro, quando começaram a surgir casos de gripe e diarreia na comunidade, mas de nada adiantou. Segundo o deputado Atanásio Duran, as Granjas Carroll haviam sido expulsas da Virgínia e da Carolina do Norte por danos ambientais. Dentro das normas do Nafta, puderam transferir-se, em 1994, para Perote, com o apoio do governo mexicano. Pelo tratado, a empresa norte-americana não está sujeita ao controle das autoridades do país. É o drama dos países dominados pelo neoliberalismo: sempre aceitam a podridão que mata.

O episódio conduz a algumas reflexões sobre o sistema agroindustrial moderno. Como a finalidade das empresas é o lucro, todas as suas operações, incluídas as de natureza política, se subordinam a essa razão. A concentração da indústria de alimentos, com a criação e o abate de animais em grande escala, mesmo quando acompanhada de todos os cuidados, é ameaça permanente aos trabalhadores e aos vizinhos. A criação em pequena escala – no nível da exploração familiar – tem, entre outras vantagens, a de limitar os possíveis casos de enfermidade, com a eliminação imediata do foco.

Os animais são alimentados com rações que levam 17% de farinha de peixe, conforme a Organic Consumers Association, dos Estados Unidos, embora os porcos não comam peixe na natureza. De acordo com outras fontes, os animais são vacinados, tratados preventivamente com antibióticos e antivirais, submetidos a hormônios e mutações genéticas, o que também explica sua resistência a alguns agentes infecciosos. Assim sendo, tornam-se hospedeiros que podem transmitir os vírus aos seres humanos, como ocorreu no México, segundo supõem as autoridades sanitárias.

As Granjas Carroll – como ocorre em outras latitudes e com empresas de todos os tipos – mantêm uma fundação social na região, em que aplicam parcela ínfima de seus lucros. É o imposto da hipocrisia. Assim, esses capitalistas engambelam a opinião pública e neutralizam a oposição da comunidade. A ação social deve ser do Estado, custeada com os recursos tributários justos. O que tem ocorrido é o contrário disso: os estados subsidiam grandes empresas, e estas atribuem migalhas à mal chamada "ação social". Quando acusadas de violar as leis, as empresas se justificam – como ocorre, no Brasil, com a Daslu – argumentando que custeiam os estudos de uma dezena de crianças, distribuem uma centena de cestas básicas e mantêm uma quadra de vôlei nas vizinhanças.

O governo mexicano pressionou, e a Organização Mundial de Saúde concordou em mudar o nome da gripe suína para Gripe-A. Ao retirar o adjetivo que identificava sua etiologia, ocultou a informação a que os povos têm direito. A doença foi diagnosticada em um menino de La Glória, ao lado das águas infectadas pelas Granjas Carroll, empresa norte-americana criadora de porcos, e no exame se encontrou a cepa da gripe suína. O resto, pelo que se sabe até agora, é o conluio entre o governo conservador do México e as Granjas Carroll – com a cumplicidade da OMS.

Sexta-feira, 01 de Maio de 2009 - 00:00

sábado, 9 de maio de 2009

O século dos direitos da Mãe Terra



Leonardo Boff, Teólogo

A afirmação mais impactante do discurso do presidente da Bolívia Evo Morales Ayma no dia 22 de Abril de 2009 na Assembleia Geral da ONU ao se proclamar este dia como o Dia Internacional da Mãe Terra talvez tenha sido a seguinte: “Se o século XX é reconhecido como o século dos direitos humanos, individuais, sociais, econômicos, políticos e culturais, o século XXI será reconhecido como o século dos direitos da Mãe Terra, dos animais, das plantas, de todas as criaturas vivas e de todos os seres, cujos direitos também devem ser respeitados e protegidos”.

Aqui já nos defrontamos com o novo paradigma, centrado na Terra e na vida. Não estamos mais dentro do antropocentrismo que desconhecia o valor intrínseco de cada ser, independentemente, do uso que fizermos dele. Cresce mais e mais a clara consciência de que tudo o que existe merece existir e tudo o que vive merece viver.

Consequentemente, devemos enriquecer nosso conceito de democracia no sentido de uma biocracia ou democracia sócio-cósmica porque todos os elementos da natureza, em seus próprios níveis, entram a compor a sociabilidade humana. Nossas cidades seriam ainda humanas sem as plantas, os animais, os pássaros, os rios e o ar puro?

Hoje sabemos pela nova cosmologia que todos os seres possuem não apenas massa e energia. São portadores também de informação, possuem história, se complexificam e criam ordens que comportam certo nível de subjetividade. É a base científica que justifica a ampliação da personalidade jurídica a todos os seres, especialmente aos vivos.

Michel Serres, filósofo francês das ciências, afirmou com propriedade: “A Declaração dos Direitos do Homem teve o mérito de dizer ‘todos os homens têm direitos’ mas o defeito de pensar ‘só os homens têm direitos’”. Custou muita luta o reconhecimento pleno dos direitos dos indígenas, dos afrodescendentes e das mulheres, como agora está exigindo muito esforço o reconhecimento dos direitos da natureza, dos ecossistemas e da Mãe Terra.

Como inventamos a cidadania, o governo do Acre de Jorge Viana cunhou a expressão florestania, quer dizer, a forma de convivência na qual os direitos da floresta e de todos os que vivem dela e nela são afirmados e garantidos.

O Presidente Evo Morales solicitou à ONU a elaboração de uma Carta dos direitos da Mãe Terra cujos tópicos principais seriam: o direito à vida de todos os seres vivos; o direito à regeneração da biocapacidade do Planeta; o direito a uma vida pura, pois a Mãe Terra tem o direito de viver livre da contaminação e da poluição; o direito à harmonia e ao equilíbrio com e entre todas as coisas. E nós acrescentaríamos, o direito de conexão com o Todo do qual somos parte.

Esta visão nos mostra quão longe estamos da concepção capitalista, da qual ficamos reféns durante séculos, segundo a qual a Terra é vista como um mero instrumento de produção, sem propósito, um reservatório de recursos que podemos explorar ao nosso bel prazer. Faltou-nos a percepção de que a Terra é verdadeiramente nossa Mãe. E Mãe deve ser respeitada, venerada e amada.

Foi o que asseverou o Presidente da Assembléia Miguel d’Escoto Brockmann ao encerrar a sessão: “É justíssimo que nós, irmãos e irmãs, cuidemos da Mãe Terra pois é ela que, ao fim e cabo, nos alimenta e sustenta”. Por isso, apelava a todos que escutássemos atentamente os povos originários, pois, a despeito de todas as pressões contrárias, mantém viva a conexão com a natureza e com a Mãe Terra e produzem em consonância com seus ritmos e com o suporte possível de cada ecossistema, contrapondo-se à rapinagem das agroindústrias que atuam por sobre toda a Terra.

A decisão de acolher a celebração do Dia Internacional da Mãe Terra da Terra é mais que um símbolo. É uma viragem no nosso relacionamento para com a Terra, escapando do padrão dominante que nos poderá levar, se não fizermos transformações profundas, à nossa autodestruição.

quarta-feira, 6 de maio de 2009

Entrevista com Ricardo Antunes



Em 1980, o cineasta mineiro João Batista Andrade filmou O homem que virou suco para contar as agruras de um imigrante nordestino confundido com um assassino de um manager de uma empresa multinacional. A imagem antecede ao conceito, usado pelo sociólogo Ricardo Antunes, de “liofilização” organizacional - tomado de empréstimo da química para explicar o processo de transformar substância líquida em pó (como acontece com o leite em pó ou com o veneno).
Para Antunes, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e especialista em temas do mercado de trabalho, as empresas, antes da crise atual, passaram por processos de “liofilização” e enxugaram suas “substâncias vivas”, os trabalhadores, por meio da modernização tecnológica e da reestruturação produtiva. O resultado disso foi o crescimento do chamado desemprego estrutural, que poderá aumentar em muito com a crise econômica mundial de hoje.
Ele avaliou que o trabalho está sob enorme ameaça e o dia 1º de maio deste ano será “digno do século XIX”. Nesse contexto, são abandonadas as teses sociológicas que enxergavam o fim do trabalho ou do trabalhador como categoria de análise e voltam a circular críticas ao capitalismo e idéias de uma sociedade assentada em novas relações de produção. Ele afirmou que a crise mundial atual poderá ser mais intensa do que a de 1929, nos Estados Unidos.
A entrevista é de Gilberto Costa, da Agência Brasil.

Eis a entrevista.

Que ameaças a crise econômica mundial trouxe ao trabalho?
Não é mais ameaça. A crise econômica já tem um resultado devastador para a classe trabalhadora. A OIT (Organização Internacional do Trabalho) fez a previsão de novos 50 milhões de desempregados em 2009, o que eleva o número de desempregados para até 340 milhões de pessoas no mundo. Este número é uma estimativa moderada. Só a China anunciou que 26 milhões de ex-trabalhadores rurais, que estavam ocupados nas cidades, perderam o emprego. A tragédia que se abateu entre os trabalhadores é monumental, a começar pelos imigrantes à cata de trabalho nos países do norte do mundo, mas também a classe trabalhadora em geral, que estava empregada na indústria metal-mecânica, têxtil, no setor alimentício. A primeira providência que o empresariado toma na eminência de uma crise é o corte nos postos de trabalho. É emblemático que os Estados Unidos, a Inglaterra e o Japão vivem a maior taxa de desemprego das últimas décadas.

Qual a versão brasileira dessa situação?
O governo tentou nos vender a idéia, completamente falsa, de que estávamos imunes à crise. A verdade, no entanto, é que nós, no final do ano, tivemos 640 mil novos desempregados. De lá para cá, os dados melhoraram, porque o governo tomou medidas, como a redução do IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) dos automóveis, para impedir que a recessão fosse mais dura. Mas essas medidas têm folego curto. A economia brasileira é muito globalizada. O Brasil depende muito do mercado externo por causa das commodities. O desfecho da crise brasileira está bastante atado ao desfecho da crise internacional. Não podemos ter uma ilusão de que o país é uma ilha rósea em um mar turbulento.

Antes da crise essa “ilha” tinha metade dos seus trabalhadores sem os direitos reconhecidos, não?
Chegamos a quase 60% da nossa População Economicamente Ativa, em meados dos anos 2000, na informalidade, o que é expressão da tragédia social. Imaginar que o Brasil vai ficar no século 21 fornecendo, por exemplo, cana-de-açúcar com trabalho semi-escravo e pessoas cortando até 17 toneladas de cana por dia, sob um regime de mensuração do trabalho que subtrai os valores de remuneração. Essa não pode ser a alternativa brasileira. O Brasil não é o pior cenário no contexto internacional, mas pensar que estamos imune a ele é um completo equívoco.

O trabalho no Brasil chegou ao século XXI?
Estamos vivendo uma situação bastante contraditória. Embora o mundo produtivo às vezes atinja um patamar do século XXI, as condições de trabalho estão regredindo às condições verificadas nos séculos XVIII e XIX. O trabalho escravo, semi-escravo e infantil, que nós imaginávamos fazer parte do início da Revolução Industrial, estão hoje esparramados em vários setores, e não é só no Brasil. Na Europa e nos Estados Unidos, também existe trabalho infantil, e o trabalho sujo do imigrante, que é tratado como um cidadão de quarta categoria. Tudo isso nos joga a querer ser uma economia do século XXI com condições pretéritas de trabalho, o que faz com que a luta do 1º de maio de 2009 seja semelhante à luta do 1º maio de 1886, ano da Revolta de Haymarket, em Chicado, nos Estados Unidos.

O senhor disse que políticas como a isenção do IPI têm fôlego curto. Por que os governos optam por medidas para a indústria automobilística, a despeito dos problemas ambientais e dos problemas de saúde? Não há outros setores com maior empregabilidade?
O Brasil é uma triste repetição de governos que representam os interesses dominantes. Por quê que a indústria automobilística joga pesado? Porque seu lobby é decisivamente forte, assim como os bancos também o são. Os governos olham para o capital, para o setor produtivo e financeiro, de um modo muito diferente de como olham para o trabalho. Os trabalhadores só conseguem alguma medida em seu favor quando lutam de forma consciente. Como muitas centrais sindicais, hoje, estão prisioneiras de política oficiais, trabalhadores e sindicatos de base perderam força. Muitas das centrais oscilam em defender a política do governo e defender os trabalhadores. Mas sabemos que as conseqüências para o desemprego, quando a indústria automobilística entra em recessão, são graves. Se reduz o emprego nessa indústria aumenta o nível geral de desemprego porque a cadeia produtiva atinge o fornecedor, toda a rede de autopeças, que existe em função da montagem do sistema automotivo.

E quanto à sustentabilidade?
Se voltarmos a produzir, recuperaremos o emprego da indústria automobilística e de sua cadeia produtiva, mas aumentam os níveis de destruição ambiental e de poluição global. Se tivermos a retração do emprego, o desemprego aumenta a barbárie social. Atividades que são profundamente positivas na medida em que preserva a sociedade, pela via reciclável, daquela tendência do capitalismo de destruir as mercadorias para produzir outras, são subvalorizadas e não recebem incentivos. Isso nos faz ter que pensar um novo modo de vida e de produção para o século XXI. Vamos querer viver eternamente nesse sistema que exclusão, precarização, informalidade, desemprego e barbárie social são o predominante?

As características desse sistema é que constituem a atual morfologia do trabalho, tratada em um dos novos artigos de seu livro Adeus Trabalho?, relançado agora?
O meu livro foi, desde sua primeira edição (em 1995), uma resposta à tese do fim do trabalho e de que a classe trabalhadora não tinha mais sentido. O que venho mostrando desde então é que é preciso compreender quem é a classe trabalhadora de hoje. Temos trabalhadores no telemarketing que não existiam antigamente, de hipermercados, motoboys. Temos uma nova morfologia, um novo desenho. Não é que acabou o trabalho, e muito menos as possibilidades da revolução do trabalho. A nova morfologia é para não ter uma visão restrita da classe trabalhadora como apenas os operários metalúrgicos.

Essas idéias do fim do trabalho foram apropriadas pelas correntes de ciência social aplicada que defendiam a chamada qualidade total, a eficiência e o aumento da produtividade. Essas melhorias não foram benéficas à sociedade?
Esse conjunto de medidas nasceram no Japão e depois se ocidentalizaram. Esses processos tiveram como resultado o aumento da produtividade e dos ganhos do capital, maiores lucros das empresas e crescimento do desemprego. Com esse processo de liofilização, digo utilizando um termo cunhado pelo sociólogo espanhol Juan Jose Castillo, as empresas passaram a produzir dez vezes mais com cinco vezes menos trabalhadores. Quem perdeu foi o pedaço da humanidade que depende do trabalho. Foi aí que o desemprego estrutural, em escala planetária, aumentou. O problema é que as pessoas afetadas hoje estão no desemprego, informalidade, precarização, narcotráfico, economia do crime.

O que o senhor acha da proposta de banco de horas para evitar o desemprego atual, visando uma extensão de jornada no futuro?
É ruim, descalibra a vida dos trabalhadores. Fiz uma pesquisa há alguns anos analisando essa situação e havia trabalhadores que não teriam férias nos três anos seguintes. Significa que o trabalhador nunca vai poder ter férias programadas, vai estar sempre devendo. Por que os trabalhadores têm que pagar o ônus de uma crise sobre a qual não têm nenhuma responsabilidade?

Em um dos artigos da última edição de Adeus Trabalho?, o senhor afirma que “a crise penetra no centro dos países capitalistas, numa intensidade nunca vista anteriormente”. A atual crise é pior que de 1929?
A crise atual é diferente, e seu espectro é de mais intensidade. A crise de 1929 ainda foi herança de um período cíclico: ciclo de expansão e ciclo de crise. Há pensadores muito qualificados que dizem que desde o fim dos anos 1960 entramos em uma crise estrutural de longa duração, na qual não teremos mais aqueles ciclos. É uma longa fase depressiva, onde não há mais como equacionar dentro da lógica do capital a destruição ambiental e não tem como atender toda a humanidade que precisa trabalhar para sobreviver. Estamos em um buraco de proporções razoáveis. Isso não quer dizer, no entanto, que estamos no fim do capitalismo.

O senhor diz que o socialismo não morreu. Que projeto a classe trabalhadora pode ter neste cenário?
Se há um pensador que ressurge das cinzas com vigor explosivo neste momento é o Karl Marx. Nenhum pensador chegou perto de análise crítica do (livro) O Capital (de 1867). Um texto escrito há 150 anos se mostra atual, ainda que o capitalismo tenha mudado bastante. No Manifesto Comunista (de Karl Marx e Frederich Engels, de 1848) já estava escrito que o capitalismo precisa de um mercado global. Assim como não há capitalismo em um só país não há socialismo em um só país. As revoluções socialistas do século XX foram derrotadas, mas àqueles que disseram que o socialismo acabou eu provocaria dizendo que o socialismo não pôde começar. O século XXI é um laboratório em ebulição.

Fonte: UNISINOS;
http://amaivos.uol.com.br/amaivos09/noticia/noticia.asp?cod_canal=41&cod_noticia=12285