sexta-feira, 30 de abril de 2010

Elementos conjunturais sobre a ameaça de construção de barragens na Amazônia e a luta contra Belo Monte.


Na atual fase do capitalismo, a apropriação privada de setores estratégicos para acumulação de riquezas e geração de lucros extraordinários, além da dominação desses, para favorecimento do grande capital internacional, tem-se tornado cada vez mais forte. Ou seja, bens naturais como a terra, água, energia, biodiversidade entre outras, tem sido alvo constante do grande capital.

No caso da energia, essa tem servido para ser usada para movimentar as industrias eletrointensivas (alumínio, celulose, industria automobilística...) com tarifas reduzidas, movimenta a indústria em torno da construção dessas obras, e movimenta os interesses em torno da venda da energia, a um preço caro ao povo brasileiro.

A região amazônica é uma das regiões mais ricas do mundo, com enorme diversidade, concentra minérios, biodiversidade, água, terras, petróleo, gás, etc. Por ter essa diversidade de riquezas e recursos naturais, e por ser um dos últimos territórios com grandes quantidades de bases naturais ainda a serem explorados, está no centro de todo e qualquer projeto das grandes multinacionais, que no discurso apontam para a necessidade de integrar e desenvolver essa região.

Do ponto de vista da geração de eletricidade, a Amazônia possui um potencial explorado de 8,9%, ou seja, mais de 90% do potencial hidroelétrico ainda para ser explorado, por isso, nos planos do capital até 2030, estão planejadas a construção de 1.443 novos projetos de barragens, destas mais de 700 hidrelétricas somente na Amazônia, e 62 projetos apenas no estado do Pará.

Os motivos que levam a essa investida, sobretudo, dos projetos hidrelétricos na Amazônia podem ser enumerados:

I) Grande disponibilidade de rios na região com abundância em água e até agora pouco explorados para este fim;

II) A possibilidade de barrar o mesmo rio diversas vezes, formando uma escada, se apropriando não somente do rio, mas da bacia hidrográfica e assim se tornar um negócio altamente lucrativo;

III) Apropriação dos bens naturais por grupos privados multinacionais, (água, minérios, biodiversidade, energia) tendo o controle direto e assim torná-los uma mercadoria;

IV) A geração elétrica tem como destino abastecer os grandes consumidores de energia elétrica, principalmente a chamada indústria eletrointensiva (celulose, alumínio, ferro, aço, entre outras) e os grandes supermercados (shoppings), oferecendo a estes energia subsidiada. Atualmente, existem 665 grandes consumidores de energia e sozinhos consomem aproximadamente 30% de toda energia elétrica brasileira, além disso, recebem energia ao preço de custo real, entre 3 a 5 centavos o KW/h.

V) Vender energia de base hidráulica, de custos mais baixos, equivalente ao preço da produção de petróleo, ou seja, ao preço internacional. O povo brasileiro paga a 5ª tarifa de energia do mundo, pagamos até 60 centavos KW/H de energia, ou seja, 10 vezes mais que as empresas.

VI) Transformar os rios em grandes corredores, em hidrovias, para transporte dos bens naturais e agropecuários, visto que, geograficamente a Amazônia está mais próxima dos centros consumidores internacionais;

VII) Na Amazônia, a grande parte das pessoas do campo (ribeirinhos, pescadores, quebradeiras de coco, camponeses, posseiros) não possuem titularidade da terra, possuem uma relação diferenciada com a terra e com os bens naturais disponíveis, o que facilita ainda mais, a negação dos direitos as famílias atingidas por estes projetos. Além disso, o rio é o meio de vida das populações tanto na alimentação como no transporte.

Sobre Belo Monte

- Neste contexto, a Usina Hidrelétrica de Belo Monte, no Estado do Pará, que teria uma potência instalada de 11.182 MW, gerando 4.796 MW médios firmes, ou seja, 39% da sua capacidade de energia, com um investimento previsto do BNDES (dinheiro nosso) de 19 bilhões, poderá ao final de 30 anos, gerar um receita de mais de 95 bilhões de reais, somente na geração de energia. Aqui não estão calculados os lucros na transmissão e distribuição de energia. Um empreendimento dessa magnitude tem uma dimensão econômica e política extraordinária na atual conjuntura, fato que leva as empresas para ser a dona dessa fantástica mina de ganhar dinheiro.

- Historicamente o povo do Xingu, fez e continua fazendo resistência a construção desta obra, que desde a década de 80 ela está sendo pautada pelos planos do capital. Por isso, Belo Monte tem este significado histórico de resistência.

- Serão atingidos aproximadamente 24 aldeias dos povos indígenas na região do Xingu, e no entanto, eles não foram consultados em nenhum momento.

- Entre as empresas multinacionais interessadas na construção deste mega- empreendimento estão as empresas mineradoras Vale, as construtoras Andrade Gutierrez, Odebrecht, Camargo Correa, Votorantin, empresas de energia, a Suez a Neoenergia, e empresas do Agronegócio que tem investido na construção de barragens e na apropriação do território amazônico.

- Há impactos ambientais não previstos nos estudos, como o secamento do rio abaixo da obra, na chamada Volta Grande do Xingu, que vai afetar mais de 100 km de extensão do rio, onde residem indígenas, ribeirinhos e pescadores, sendo que estes não são considerados como atingidos no estudo de impacto ambiental.

- Além disso, vão construir 2 canais de 500 metros de largura e 40 km de comprimento, prevendo escavações superiores as do Canal do Panamá. Nesta região existem mais de 5 mil pessoas que vivem nessa região.

- Esta obra vai atingir mais de 40 mil pessoas na região entre os municípios de Altamira, Vitória do Xingu, Anapú, Senador Jose Porfilio, Brasil Novo, Gurupá, sendo estes: ribeirinhos, pescadores, camponeses, indígenas e vários trabalhadores da cidade, oleiros,comerciantes , barqueiros.

- Promete-se a geração de emprego para a população da região, todavia, quando as empresas chegam ao local já trazem de outras regiões parte de sua mão de obra já treinada, então não interessa empregar as pessoas do local. A experiência no Rio Madeira tem mostrado que dos 17 mil trabalhadores, 12 mil são de fora, o que revela a mentira dos empregos.

- A energia não vai ficar para o povo, parte dela vai atender as indústrias locais, principalmente de mineração, que tem previsto suas fábricas de extração de minérios na região, e outra parte será colocada no Sistema Interligado Nacional (SIN) permite transmitir energia de uma região para outra, onde há grande consumo de energia.

- Promete-se as indenizações fartas. No entanto, experiência tem mostrado que de cada 100 pessoas atingidas 70 não receberam a indenização prometida.

- Por tudo isso é que somos contra a construção do projeto de Belo Monte.

Linhas gerais para as mobilizações:

1- Belo Monte faz parte do contexto de entrega da água e da energia para o grande capital internacional e faz parte dessa lógica do modelo energético implantado no país. Fazer ações contra Belo Monte é fazer ações contra esse modelo e a favor da soberania do povo brasileiro.

2- É uma luta de cunho também ambiental, pois está localizada na região Amazônica e tem um significado no âmbito nacional e internacional.

3- A luta contra Belo Monte não é uma luta somente de quem vai sofrer os impactos diretos na região, é um problema de toda sociedade brasileira. Por isso, este debate da energia e de Belo Monte deve ser debatido por toda a sociedade.

4- Devemos buscar juntar o máximo de entidades, pois há campo para essas articulações com essa temática, com momentos conjuntos a nível nacional, no caso, o dia 20 de abril, data prevista para o leilão dessa obra.

5- Como é do interesse do grande capital essa obra, as empresas – VALE, ODEBRECH, CAMARGO CORREIA, VOTORANTIM, SUEZ, TRACTEBEL, ANDRADE GUTIERRES, NEOENERGIA estão pressionando para que a obra saia do papel. Todavia, o Estado é responsável por garantir toda a infra-estrutura, as licenças e os recursos para que a obra aconteça. Portanto, nosso inimigo principal não é somente o Estado mas as empresas privadas do setor energético.

Sugestão do que fazer:

Dia 15 a 20 de abril

1- Mapear os locais e se articular com os movimentos da Via Campesina para fazer atos em conjunto nas capitais (RS, PR, SC, SP, BH, PA, CE, PB, RO e em Brasília);

2- Se articular com ONGs, associações do campo e da cidade, movimentos sociais, igrejas, sindicatos, para fazer panfletagem nas capitais discutindo com a população porque somos contra Belo Monte;

3-Fazer debates nas universidades, escolas, programas de radio, televisão, discutindo porque a sociedade deve se posicionar contra a construção de Belo Monte;

4- Construir um panfleto- base com informações sobre de Belo Monte.

No dia 20 de abril. Dia do Leilão de Belo Monte:

1- Se articular com os movimentos para fazer atos de repudio/protestos contra o leilão de Belo Monte nas principais locais nos estados que estão ligados a esta questão da energia.

2- Fazer marchas, vigilhas, atos em frente a prédios públicos que traga a simbologia/ mística que a construção dessa obra é a entrega da Amazônia.

Água e Energia não são Mercadorias.

quarta-feira, 28 de abril de 2010

Então sou Esquerda


Emir Sader

Diante de alguns argumentos que ainda subsistem sobre o suposto fim da divisão entre direita e esquerda, aqui vão algumas diferenças. Acrescentem outras, se acharem que a diferença ainda faz sentido.

DIREITA: A desigualdade sempre existiu e sempre existirá. Ela é produto da maior capacidade e disposição de uns e da menor capacidade e menor disposição de outros. Como se diz nos EUA, "não há pobres, há fracassados" .
ESQUERDA: A desigualdade é um produto social de economias - como a de mercado - em que as condições de competição são absolutamente desiguais.

DIREITA: É preferível a injustiça, do que a desordem.
ESQUERDA: A luta contra as injustiças é a luta mais importante, nem que sejas preciso construir uma ordem diferente da atual.

DIREITA: É melhor ser aliado secundário dos ricos do mundo, do que ser aliado dos pobres.
ESQUERDA: Temos um destino comum com os países do Sul do mundo, vitimas do colonialismo e do imperialismo, temos que lutar com eles por uma ordem mundial distinta.

DIREITA: O Brasil não deve ser mais do que sempre foi.
ESQUERDA: O Brasil pode ser um país com presença no Sul do mundo e um agente de paz em conflitos mundiais em outras regiões do mundo.

DIREITA: O Estado deve ser mínimo. Os bancos públicos devem ser privatizados, assim como as outras empresas estatais. O crescimento econômico é incompatível com controle da inflação. A economia não pode crescer mais do que 3% a ano, para não se correr o risco de inflação.
ESQUERDA: O Estado tem responsabilidades essenciais, na indução do crescimento econômico, nas políticas de direitos sociais, em investimentos estratégicos como infra-estrutura, estradas, habitação, saneamento básico, entre outros. Os bancos públicos têm um papel essencial nesses projetos.

DIREITA: Os gastos com pobres não têm retorno, são inúteis socialmente, ineficientes economicamente.
ESQUERDA: Os gastos com políticas sociais dirigidas aos mais pobres afirmam direitos essenciais de cidadania para todos.

DIREITA: O Bolsa Família e outras políticas desse tipo são "assistencialismo" , que acostumam as pessoas a depender do Estado, a não ser auto suficientes.
ESQUERDA: O Bolsa Família e outras políticas desse tipo são essenciais, para construir uma sociedade de integração de todos aos direitos essenciais.

DIREITA: A reforma tributária deve ser feita para desonerar aos setores empresariais e facilitar a produção e a exportação.
ESQUERDA: A reforma tributária deve obedecer o principio segundo o qual "quem tem mais, paga mais", para redistribuir renda, com o Estado atuando mediante políticas sociais para diminuir as desigualdades produzidas pelo mercado.

DIREITA: Quanto menos impostos as pessoas pagarem, melhor. O Estado expropria recursos dos indivíduos e das empresas, que estariam melhor nas mãos destes. O Estado sustenta a burocratas ineficientes com esses recursos.
ESQUERDA: A tributação serve para afirmar direitos fundamentais das pessoas - como educação e saúde publica, habitação popular, saneamento básico, infra-estrutura, direitos culturais, transporte publico, estradas, etc. A grande maioria dos servidores públicos são professores, pessoal médico e outros, que atendem diretamente às pessoas que necessitam dos serviços públicos.

DIREITA: A liberdade de imprensa é essencial, ela consiste no direito dos órgãos de imprensa de publicar informações e opiniões, conforme seu livre arbítrio. Qualquer controle viola uma liberdade essencial da democracia.
ESQUERDA: A imprensa deve servir para formar democraticamente a opinião pública, em que todos tenham direitos iguais de expressar seus pontos de vista. Uma imprensa fundada em empresas privadas, financiadas pela publicidade das grandes empresas privadas, atende aos interesses delas, ainda mais se são empresas baseadas na propriedade de algumas famílias.

DIREITA: A Lei Pelé trouxe profissionalismo ao futebol e libertou os jogadores do poder dos clubes.
ESQUERDA: A Lei Pelé mercantilizou definitivamente o futebol, que agora está nas mãos dos grandes empresários privados, enquanto os clubes, que podem formar jogadores, que tem suas diretorias eleitas pelos sócios, estão quebrados financeiramente. A Lei Pelé representa o neoliberalismo no esporte.

DIREITA: O capitalismo é o sistema mais avançado que a humanidade construiu, todos os outros são retrocessos, estamos destinados a viver no capitalismo.
ESQUERDA: O capitalismo, como todo tipo de sociedade, é um sistema histórico, que teve começo e pode ter fim, como todos os outros. Está baseado na apropriação do trabalho alheio, promove o enriquecimento de uns às custas dos outros, tende à concentração de riqueza por um lado, à exclusão social por outro, e deve ser substituído por um tipo de sociedade que atenda às necessidades de todos.

DIREITA: Os blogs são irresponsáveis, a internet deve ser controlada, para garantir o monopólio da empresas de mídia já existentes. As chamadas rádios comunitárias são rádios piratas, que ferem as leis vigentes.
ESQUERDA: A democracia requer que se incentivo aos mais diferentes tipos de espaço de expressão da diversidade cultural e de opinião de todos, rompendo com os monopólios privados, que impedem a democratização da sociedade.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

O discurso do mercado e o mercado dos discursos

Imagine que você é um(a) jovem de dezoito anos, da periferia, que acabou o Ensino Médio em uma escola pública. Faça uma pergunta para ele: e aí, o que você quer fazer da vida?

Podemos pensar em duas respostas: a primeira é aquela que a gente ouve todos os dias, que está em todos os canais de tv, rádio, internet, no papo dos pais e dos amigos. Em suma, ela diz que se você "quer ser alguém na vida", se você quer "crescer profissionalmente", que você precisa se "qualificar para o mercado de trabalho".

Se você concorda com essa visão e não quiser se chatear, pode parar de ler aqui... Esse é um discurso já muito difundido, que alimenta e gera renda para uma infinidade de profissionais de RH, de escritores, consultores, analistas, artistas, empresários, isto é, um mundaréu de oportunistas do mundo corporativo, que nunca são capazes de enxergar o Mundo do Trabalho de um modo menos economicista e mais humano.

A segunda resposta é a que pode estar sendo construída por uma segunda via, por grupos de terceiro setor, por raros empresários com "responsabilidade social" genuína, por educadores e movimentos sociais que se cansaram de ouvir a mesma ladainha.

Essa resposta diz ao jovem mais ou menos como falam os Racionais: "Falo pro mano que não morra, e também não mate", ou seja, o jovem precisa sim se preparar, valorizar os estudos como forma de ascender economicamente, ter humildade para aprender nos primeiros empregos, etc. Mas o jovem não precisa virar mercadoria (que é, afinal, o que se vende mo mercado), e não precisa eternamente se reduzir a um mero mamulengo de seu patrão, só porque todos enfiam em sua cabeça que o importante é "trabalhar". Completemos a frase: “O importante é trabalhar e refletir sobre os passos que damos em nossa vida profissional".

O jovem deve ter a capacidade de elaborar sua própria estratégia de formação profissional. Por que um jovem que quer se dedicar, por exemplo, à Eletrônica, precisa ter mil certificados, falar não sei quantas línguas, ler tantos manuais de "como se comportar em uma entrevista"? Ele precisa, antes de tudo, de uma formação técnica adequada ao seu desejo, e principalmente ter ferramentas pra saber aonde e como pode vivenciar essa formação. Enfim, precisa de informação e de orientação para se encontrar.

Por que uma menina que quer ser nutricionista precisa se matar várias horas por dia como atendente de telemarketing e dar conta de várias "metas"? A única resposta que tenho é: porque as empresas ganham explorando a necessidade dessa fatia da população, e se aproveitam da pressão que os jovens sofrem para ajudar na renda da casa, o que muitas vezes os força a abrir mão dos estudos.

Escolarização e trabalho, aliás, que são dois ingredientes desse mesmo bolo, mas que são sempre separados nesse discurso homogeneizado. Os filhos da classe média podem e tem tempo de estudar até certa idade sem se preocupar com as contas caseiras. Mas a juventude pobre mal tem acesso à uma escola defasada e é bombardeada por um monte de exigências do tal "Mercado", dentre elas a obsessão pelo diploma, oferecido aos cântaros em uma verdadeira feira árabe de certificados. A escolaridade está diretamente ligada à chance de obter emprego, mas cada vez menos garante à juventude uma formação decente para que possa seguir um caminho profissional autônomo, com um mínimo de estabilidade para executar seu projeto de vida.

Não é a toa que problemas como evasão e desinteresse pelos estudos, antes registrados no Ensino Médio, vem se repetindo no Ensino Superior. Há faculdades aos cântaros, mas a maioria delas não tem qualidade ou não demonstram condições para que o jovem aproveite minimamente o curso.

Mas tudo bem: os agenciadores de empregos e Cia. simplesmente ignoram essa realidade, e a cada ano surge um novo requisito que inclui/exclui uma massa de pessoas da felicidade do registro em carteira e de participar do processo de “desenvolvimento do país”. Quem manda sabe que o exército de reserva está sempre à vossa disposição.

Esses e outros discursos podem ser adquiridos “mais fácil que pão”, mas temos a chance de comprar ou contestar o valor de tais produtos. A entidade Mercado não é algo abstrato, incontrolável, que está acima de nós, mas é construída por nossas crenças, pelas fichas que apostamos ou não em cada receituário que nos é empurrado nessa feira maquiavélica.

Aí, patroa, vai um discursinho aí?

Raimundo Justino da Silva - Instituto Paulista de Juventude

quarta-feira, 14 de abril de 2010

A erosão do trabalho


RICARDO ANTUNES

"A RBEIT, LAVORO, travail, labour, trabajo." Não há nenhum canto do mundo que não esteja vendo o desmoronar do trabalho. A atividade que nasceu sob o signo da contradição foi, desde o primeiro momento, um ato vital, capaz de plasmar a própria produção e a reprodução da vida humana, de criar cada vez mais bens materiais e simbólicos socialmente vitais e necessários. Mas trouxe consigo, desde os primórdios, o fardo, a marca do sofrimento, o traço da servidão, os meandros da sujeição.

Se o trabalho é um ato poiético, o momento da potência e a potência da criação, ele também encontra suas origens no "tripalium", instrumento de punição e tortura.

Se, para Weber, o trabalho fora concebido como expressão de uma ética positiva em sintonia com o nascente mundo da mercadoria e o encanto dos negócios (negação do ócio), para Marx, ao contrário, o que principiara como uma atividade vital se converteu em um não valor gerador de outro valor, o de troca. Daí sua síntese cáustica: se pudessem, todos os trabalhadores fugiriam do trabalho como se foge de uma peste!

E a sociedade da mercadoria do século 20 se consolidou como a sociedade do trabalho. Desde o início, no microcosmo familiar, fomos educados para o labor. O sem-trabalho era expressão de pária social. Mas a mesma sociedade que se moldou pela formatação do trabalho se esgotou. Ele se reduz a cada dia -e de modo avassalador. Enquanto a população mundial cresce, ele mingua. Complexifica-se, é verdade, em vários setores, como nas tecnologias da informação e em outras áreas de ponta, e resta exangue em tantos outros.

Onde cresce avassaladoramente, como no telemarketing, produz um ser falante quase mudo, repetidor do trabalho prescrito, movido a pequenos "regalos" ao final de um dia extenuante, cujos minutos e segundos são contabilizados e controlados. Assim nos encontramos hoje: temos muito menos empregos para todos os que dele necessitam para sobreviver. Os que têm emprego trabalham muito, sob o sistema de "metas", "competências", "qualificações", "empregabilidades" etc. E, depois de cumprirem direitinho o receituário, vivem a cada dia o risco e a iminência do não trabalho.

E isso não só nos estratos de base, onde estão os assalariados no chão da produção. Foi-se o dia em que os gestores, depois do corte, iam para suas casas com a garantia do trabalho preservado. Eles sabem que o corte deles se gesta enquanto eles laboram o talhe dos outros. Se vivêssemos em outro modo de produção e de vida, o tempo de trabalho poderia ser muito menor e mais afinado com o tempo de vida fora do trabalho, ambos dotados de sentido e fora dos constrangimentos do capital.

Mas, ao contrário, esses tempos se complementam em outro diapasão, com a casa se tornando espaço de trabalho adicional, e o tempo de vida fora do trabalho se vê cada vez mais encolhido e reduzido à esfera do que fazer para não perder a guerra quando o labor recomeçar no dia seguinte. A resultante é áspera e se conta na casa dos bilhões: aqueles que têm emprego trabalham muito, muitos já não mais encontram trabalho e outros fazem qualquer trabalho para tentar sobreviver com o que sobra da arquitetura societal da destruição. Em plena crise estrutural e sistêmica do capital, da Ásia à América Latina, da Europa à África, há uma nota tristemente confluente: como os assalariados que só dispõem de seu labor poderão sobreviver neste mundo sem trabalho e sem salário?

Dos EUA à China, de Portugal ao Canadá, da Inglaterra ao Japão, passando pelos tristes trópicos, novos recordes de desemprego são batidos todos os dias. Um incomensurável processo de corrosão e erosão se efetiva. Tal como foi desenvolvido ao longo do curto século 20, o trabalho tayloriano-fordista sofreu forte retração a partir dos anos 1970. Mas, com a intensificação desse quadro crítico, adentramos um novo ciclo de demolição do trabalho em escala global.

As diversas formas de "empreendedorismo", "trabalho voluntário" e "trabalho atípico" oscilam frequentemente entre a intensificação do trabalho e sua autoexploração. Dormem sonhando com o novo "self-made man" e acordam com o pesadelo do desemprego. Empolgam-se pela falácia do empresário-de-si-mesmo, mas esbarram cada vez mais na ladeira da precarização.

Em volume assustador, uma massa de homens e mulheres torna-se supérflua, esparramando-se pelo mundo em busca de um labor que já não mais existe. Este 1º de Maio nos leva, então, a indagar: qual trabalho queremos para este tenso século 21 que mal está começando?


RICARDO LUIZ COLTRO ANTUNES, 56, é professor titular de sociologia do trabalho do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e autor, entre outros livros, de "Os Sentidos do Trabalho" e "Adeus ao Trabalho?".

domingo, 11 de abril de 2010

Ligas Camponesas

As Ligas Camponesas foram associações de trabalhadores rurais criadas inicialmente no estado de Pernambuco, posteriormente na Paraíba, no estado do Rio.de Janeiro, Goiás e em outras regiões do Brasil, que exerceram intensa atividade no período que se estendeu de 1955 até a queda de João Goulart em 1964.



Formação

As ligas assim conhecidas foram precedidas de alguns movimentos de natureza idêntica que, em virtude de seu isolamento, não tiveram a mesma repercussão social e política. Este seria o caso, por exemplo, do conflito de Porecatu, no norte do Paraná (1950-1951), e do movimento de Formoso (1953-1954), que, no entanto, influíram de maneira durável nas respectivas áreas de origem.

O movimento que se tornou nacionalmente conhecido como Ligas Camponesas iniciou-se, de fato, no engenho Galiléia, em Vitória de Santo Antão, nos limites da região do Agreste com a Zona da Mata de Pernambuco. A propriedade congregava 140 famílias de foreiros nos quinhentos hectares de terra do engenho que estava de "fogo morto". O movimento foi criado no dia 1º. de janeiro de 1955 e autodenominou-se Sociedade Agrícola e Pecuária de Plantadores de Pernambuco (SAPPP). Coube a setores conservadores, na imprensa e na Assembléia, batizar a sociedade de "liga", temerosos de que ela fosse a reedição de outras ligas que, em período recente (1945-1947), haviam proliferado abertamente na periferia do Recife e nas cidades satélites, sob a influencia do Partido Comunista Brasileiro, então Partido Comunista do Brasil (PCB). De fato, o movimento de Galiléia parece ter recebido influencia desses antigos núcleos, geograficamente próximos, sobretudo através de José dos Prazeres, dirigente da antiga Liga de Iputinga, nos arredores de Recife.

Existem muitas versões sobre a criação da Liga de Galiléia. A mais conhecida, e a mais lendária, atribui à entidade o objetivo de arrecadar recursos para enterrar os mortos, até então depositados em vala comum. Esta versão, divulgada por Antônio Calado em suas célebres reportagens no Correio da Manhã (setembro de 1959), tiveram enorme repercussão pública. Outra versão, mais completa, nos diz que a sociedade recém-criada tinha finalidades assistenciais mais amplas e que escolhera como presidente de honra o próprio dono do engenho, Oscar de Arruda Beltrão. O objetivo do grupo era gerar recursos comuns para a assistência educacional e de saúde, e para comprar adubos, com a finalidade de melhorar a produção.

A criação da Liga de Galiléia provocou a reação do filho do proprietário do engenho, temeroso, como era natural, de que a consolidação de um núcleo de produção camponesa pudesse sustar a utilização mais rentável da pecuária nas terras esgotadas do engenho. Nesta e em outras propriedades, para deslocar a mão-de-obra já sem utilidade imediata, e para tornar a terra mais lucrativa, lançou-se mão então do aumento generalizado no preço do foro, o que teve como conseqüência imediata a luta comum contra o aumento da renda da terra e contra as ameaças mais diretas de expulsão.

Para defendê-los na Justiça, os representantes da SAPPP procuraram Francisco Julião Arruda de Paula, advogado em Recife, que se havia notabilizado por uma original declaração de princípios em defesa dos trabalhadores rurais, a "Carta aos foreiros de Pernambuco", de 1945. Julião aceitou defendê-los, assim como a muitos outros. A pendência se prolongou até 1959, quando foi aprovada a proposta de desapropriação do engenho, encaminhada à Assembléia Legislativa pelo governador Cid Sampaio com base num antigo projeto de Julião. A questão deu notoriedade aos camponeses de Galiléia e, ainda mais, transformou o primeiro núcleo das Ligas Camponesas no símbolo da reforma agrária que os trabalhadores rurais almejavam. Essa vitória localizada do movimento teve porém conseqüências contraditórias, pois se, por um lado, ela conseguiu apaziguar os ânimos e alimentar a esperança de acomodação através de soluções legais, por outro, estimulou as lideranças a prosseguirem na mobilização em favor de uma reforma agrária radical que atendesse às reivindicações camponesas em seu conjunto.

Nesse mesmo período, numerosos núcleos das Ligas foram criados em Pernambuco. Até 1961, 25 núcleos foram instalados no estado, com predominância visível da Zona da Mata e do Agreste sobre o Sertão. Dentre esses núcleos destacavam-se os de Pau d'Alho, São Lourenço da Mata, Escada, Goiana e Vitória de Santo Antão.

A partir de 1959 as Ligas Camponesas se expandiram também rapidamente em outros estados, como a Paraíba, estado do Rio (Campos) e Paraná, aumentando o impacto político do movimento. Dentre esses núcleos, o mais importante foi o de Sapé, na Paraíba, o mais expressivo e o maior de todos. A expansão da Liga de Sapé se acelerou a partir de 1962, quando foi assassinado seu principal líder, João Pedro Teixeira, a mando do proprietário local. Pouco depois esse núcleo congregaria cerca de dez mil membros, enquanto outros núcleos iriam se espalhar pelos municípios limítrofes.

Entre 1960 e 1961, as Ligas organizaram comitês regionais em cerca de dez estados da Federação. Em 1962 criou-se o jornal A Liga, porta-voz do movimento, que pretendia ter uma difusão nacional, mas que na realidade permaneceu ligado a um número reduzido de leitores, que eram os próprios militantes do movimento. Também nesse ano fez-se uma tentativa de constituir um partido político que se chamou Movimento Revolucionário Tiradentes. O que ocorreu, no entanto, é que enquanto as reivindicações camponesas pela terra, advogadas pelas Ligas, ganhavam corpo, as pretensões políticas da cúpula do movimento se esvaziavam diante de um movimento sindical organizado e mais ligado à Igreja e ao Estado.

Atuação

De um modo geral, as associações criadas tinham caráter civil, voluntário, e por isso mesmo dependiam de um estatuto e de seu registro em cartório. Para constituir legalmente uma liga, bastava aprovar um estatuto, registrá-lo na cidade mais próxima e lá instalar a sua sede. Como disse um jornalista da Paraíba, "a liga começa na feira, vai para o tabelião e ganha o mundo".

As finalidades das Ligas eram prioritariamente assistenciais, sobretudo jurídicas e médicas, e ainda de autodefesa, nos casos graves de ameaças a quaisquer de seus membros. As mais comuns eram aquelas que, contrariando o Código Civil, obrigavam à expulsão sem indenização pelas benfeitorias realizadas, e nesse sentido específico a ação das Ligas parece ter sido bastante eficaz. As lideranças pretendiam também, a médio e longo prazos, fortalecer .a consciência dos direitos comuns, que compreendiam a recusa em aceitar contratos lesivos, tais como o cumprimento do "cambão" (dia de trabalho gratuito para aqueles que cultivavam a terra alheia) e outras prestações de tipo "feudal".

A expansão e o crescimento de associações voluntárias como as Ligas ou associações do tipo da União de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil (ULTAB) se explica em função das dificuldades político-burocráticas que durante muitos anos impediram a criação e o reconhecimento oficial dos sindicatos rurais. De fato, embora o Decreto-Lei nº. 7.038, promulgado por Getúlio Vargas em novembro de 1944 como extensão da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), previsse a sindicalização rural, só a partir de 1962 é que os sindicatos começariam a ser efetivamente reconhecidos, como proposta alternativa (e mais institucionalizada) às Ligas Camponesas, identificadas com a liderança de Francisco Julião.

As Ligas falavam em nome de uma ampla e diversificada categoria de trabalhadores que incluía foreiros, meeiros, arrendatários e pequenos proprietários, que produziam uma cultura de subsistência e comercializavam os excedentes produzidos em terra própria ou em terra alheia. Nesse sentido, convém lembrar que a utilização do termo "camponês" parece ter sido fator de auto-identificação e de unidade para designar categoria tão ampla em oposição a um adversário comum, politicamente denominado pelas lideranças como "o latifúndio improdutivo e decadente". Sendo as camadas representadas basicamente dependentes da produção direta em terra cedida, alugada ou própria (minifúndios), podemos compreender porque se aglutinaram em torno de reivindicações ligadas à posse e ao usufruto imediato da terra. O processo de politização global ocorrido nesse período, sobretudo a partir de 1960, facilmente converteu demandas individuais ou localizadas pela posse da terra, tais como o Código Civil o previa, em reivindicações mais abrangentes, estimuladas pelas lideranças, de reforma agrária radical.

A mudança parece ter ocorrido, de fato, a partir do I Congresso de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil, realizado em Belo Horizonte em novembro de 1961, onde o grupo de Julião e das Ligas Camponesas se confrontou com outro, mais moderado, sob influência comunista, e sob liderança da ULTAB. Nessa ocasião, Julião recusou alianças e entendimentos mais duradouros com João Goulart, então presidente da República, que havia comparecido ao congresso. O resultado desse confronto foi a vitória formal de Julião e de seus seguidores, que advogavam então uma "reforma agrária na lei ou na marra". Essa vitória, porém, foi politicamente enganosa, pois a partir daí o Estado reforçaria a ação sindical em detrimento da liderança das Ligas.

Podemos, por isso mesmo, definir as Ligas como um movimento autônomo, avesso à colaboração com o Estado. Esta posição, assumida em Belo Horizonte, confirmou-se por ocasião do plebiscito que restituiu plenos poderes ao presidente João Goulart (janeiro de 1963), e diante do qual, em posição extremamente minoritária, as Ligas pregaram - ou melhor, Julião pregou - a abstenção. O mesmo ocorreria durante o governo de Miguel Arrais em Pernambuco (1963-1964) - abertamente aliado das populações camponesas -, diante do qual algumas facções mais radicais das Ligas - já fora do controle das próprias lideranças - não hesitaram em criar confrontos radicais, de difícil solução, que levaram inclusive à prisão de alguns membros.

A recusa a colaborar com o Estado teve, portanto, conseqüências imediatas, concedendo às organizações sindicais mais oficializadas maior poder de controle sobre o movimento camponês do período. A partir daí, redefiniu-se o papel das Ligas, que passaram muitas vezes a expressar os interesses mais autônomos da base camponesa que representavam, em detrimento de uma liderança populista ligada a camadas e interesses políticos externos ao campesinato enquanto classe: estudantes, intelectuais, jornalistas, militantes de partidos políticos de origem urbana etc. Enquanto isso, a liderança intermediária, e de origem camponesa, manifestou muitas vezes sinais mais evidentes de autonomia. Nesses casos, ora coexistiam, ora eram absorvidas pelas organizações sindicais, mas, ao serem incorporadas, induziam os sindicatos a adotar - sob pena de perder o controle sobre seus próprios associados - as reivindicações básicas de luta pela terra às quais esses mesmos sindicatos eram inicialmente pouco sensíveis.

Por outro lado, os sindicatos - organizações substancialmente mais poderosas - diversificaram a plataforma das Ligas, acentuando a necessidade de estender ao trabalhador rural os benefícios sociais já usufruídos pelos trabalhadores urbanos e de fazer aplicar o recém-aprovado Estatuto do Trabalhador Rural (1963) ao campo.

Cabe destacar no movimento a importância das lideranças intermediárias, que constituíram o seu cerne. Em Galiléia, Zezé da Galiléia, João Virgínio e José Francisco; em Sapé, João Pedro Teixeira, Pedro Fazendeiro, Elizabeth Teixeira e João Severino Gomes foram alguns dos mártires do movimento e os que alimentaram a sua mística. Tinham em geral um nível educacional mínimo, eram pequenos proprietários ou exerciam, intermitentemente ou não, atividades artesanais, o que lhes permitia a autonomia de ação indispensável ao exercício da própria liderança.

No plano nacional o maior destaque coube à liderança de Francisco Julião, que aglutinou o movimento em torno de seu nome e de sua figura, reunindo estudantes, idealistas, visionários, alguns intelectuais, além de nomes como os de Clodomir de Morais, advogado, deputado, ex-militante comunista e um dos organizadores de um malogrado movimento de guerrilha sediado em Dianópolis, em Goiás (1963).

Julião foi eleito deputado federal por Pernambuco, após ter sido deputado estadual naquele mesmo estado. Foi nesse momento que as Ligas Camponesas chegaram ao ápice de seu prestígio político. A partir de 1962 essa influência decaiu, embora Francisco Julião mantivesse o prestígio do movimento. Essa notoriedade se deveu em grande parte às repercussões internacionais das Ligas. De fato, a Revolução Cubana alertou os políticos e a opinião pública dos EUA para os perigos de outros focos revolucionários semelhantes, e o temor recaiu sobre o Nordeste brasileiro, a mais extensa e povoada zona de pobreza do mundo ocidental.

As Ligas Camponesas foram como que um grito de alerta e de protesto que atraiu para Pernambuco a atenção do mundo e para seus núcleos mais expressivos visitas ilustres, como Robert Kennedy, Arthur Schlesinger Jr., Sargent Shriver, Jean-Paul Sartre e Iuri Gagarin, entre outros. A televisão e a imprensa, em diversos países do mundo, transformaram Julião e as Ligas em símbolo do Terceiro Mundo emergente. Nessa época, as aproximações de Julião com Cuba foram notórias, especialmente após viagem que realizou àquele país em 1960, acompanhando Jânio Quadros, e em 1961, seguido por uma centena de militantes.

Criadas em uma conjuntura favorável de liberalização política, que coincidiu com o governo Kubitschek, as Ligas seriam marcadas pelo período de ascensão do populismo. De fato, a existência mesma do movimento parece estar ligada às ideologias desenvolvimentistas, de integração nacional e de expansão da cidadania. Nesse sentido, as reivindicações camponesas ecoavam como parte de um único e amplo projeto.

A desagregação do movimento, em 1964, eliminou as organizações mas não desarticulou suas reivindicações básicas, que seriam incorporadas pelos sindicatos rurais no período seguinte (1965-1983). Convém notar que esses sindicatos rurais têm sido particularmente ativos nas antigas zonas de influência das Ligas.

Aspásia Camargo
Colaboração Especial

domingo, 4 de abril de 2010

Os mortos no Oriente Médio valem mais que os outros?


Marcos Guterman

Um valioso levantamento, publicado no site Open Democracy, mostra que o conflito entre israelenses e palestinos recebe atenção desproporcional da mídia em relação a outros confrontos, muito mais sangrentos e devastadores, sobretudo na África.

O texto, de Noah Bernstein, começa com um exemplo eloquente. Em dois dias de dezembro de 2008, o Exército de Resistência do Senhor (cristão fundamentalista) matou e mutilou 200 civis congoleses. O grupo “estuprou mulheres e meninas, quebrou o pescoço de bebês e cortou lábios e orelhas daqueles que não matou”. Nos mesmos dois dias, o cessar-fogo entre Israel e Hamas estava por um fio. De acordo com o World Press Tracker, que mensura a cobertura da imprensa mundial sobre conflitos e emergência humanitárias, as 48 horas do impasse israelo-palestino foram noticiadas 40 vezes; já o massacre no Congo não foi sequer mencionado. Nas três semanas seguintes, a invasão israelense de Gaza deixou 926 palestinos e três israelenses mortos, notícia reportada 2.896 vezes pela mídia. Enquanto isso, no mesmo período, o Exército de Resistência do Senhor matou 865 civis e seqüestrou 160 crianças – e esses acontecimentos apareceram apenas 20 vezes na imprensa.

“O fascínio da mídia ocidental com o conflito israelo-palestino ofusca a morte e a opressão em outras partes do mundo. Gilad Shalit (soldado israelense seqüestrado pelo Hamas) e os foguetes Qassam são familiares para muita gente; a morte de 5,9 milhões de pessoas na Segunda Guerra do Congo não”, escreve Bernstein, que constata: muitos questionam a cobertura enviesada no Oriente Médio, ora a favor de israelenses, ora a favor de palestinos, mas pouca gente critica a primazia dada ao conflito no Oriente Médio na cobertura jornalística das guerras.

Os argumentos para justificar a atenção excessiva dada ao Oriente Médio variam. O primeiro deles é que o Ocidente se considera moralmente responsável pelo que acontece na região, já que ajudou a fundar um país para abrigar uma minoria perseguida (os judeus) e acabou criando outra minoria perseguida (os palestinos). Mas, como explica Bernstein, a questão da Caxemira, problema igualmente “criado” pela ONU, na descolonização de Índia e Paquistão, matou dez vezes mais gente que o conflito israelo-palestino e merece atenção muito menor. O mesmo se dá com disputas territoriais na África significativamente mais sangrentas, também como resultado do desmonte do mundo colonial ocidental, e que não freqüentam os jornais.

Outro argumento usado é o tamanho do sofrimento dos palestinos, que teria caráter excepcional e é geralmente qualificado de “genocídio” pelos críticos do Ocidente. Mas uma olhada no mapa da África e da Ásia mostra uma situação desesperadora de milhões de refugiados que, no entanto, mal aparecem no noticiário. Como mostra Bernstein, só o conflito no Sri Lanka matou 50 vezes mais civis que o israelo-palestino desde 1980; no já citado Congo, o número é 5.000 vezes maior. Além disso, a qualidade de vida dos palestinos é bem melhor do que a média desses outros povos oprimidos – a expectativa de vida é de 73,3 anos, o índice de alfabetizados chega a 93,8%, e a desnutrição infantil atinge apenas 3%, números melhores que os do Brasil e que estão no nível dos países que têm “alto desenvolvimento humano” em medição da ONU. Nada disso parece traduzir um “genocídio”.

A justiça da luta nacional palestina, após quatro décadas de ocupação israelense, é outro ponto que ajuda a catapultar o Oriente Médio às manchetes. No entanto, o mundo está cheio de lutas nacionais, ignoradas ou negligenciadas pela mídia. Há os casos óbvios do Tibete, com mais de 1 milhão de mortos desde 1959, e o da Tchetchênia, com 60 mil civis mortos desde 1994, que só aparecem de vez em quando no noticiário. E há casos absurdos como o do Saara Ocidental, ex-colônia espanhola invadida pelo Marrocos, cujo Exército reprime o movimento independentista local. Há até um muro de separação, tal como na Cisjordânia. No entanto, o Saara Ocidental apareceu três vezes na mídia ocidental ao longo de 2009, e isso porque havia um ativista em greve de fome num aeroporto.

A intensidade da atenção dada ao que ocorre no Oriente Médio tem efeitos perversos – e o principal deles é que tanto Israel quanto os palestinos recebem ajuda desproporcional às suas necessidades e mesmo em relação ao resto do mundo. Em 2006, mostra Bernstein, 12% de toda a ajuda externa dos EUA foi para Israel. Isso equivale à ajuda americana dada a todo o continente africano, fora o Egito. Já os refugiados palestinos receberam da ONU (vale dizer, dos EUA, seu principal financiador) US$ 72 per capita, enquanto refugiados do resto do mundo receberam US$ 53 per capita. E há uma agravante: os palestinos são o único grupo de refugiados do mundo a ter uma agência da ONU só para eles, a UNRWA, coisa difícil de justificar. Por outro lado, fica fácil saber por que certos líderes palestinos e israelenses não querem que o conflito acabe: ele dá dinheiro.

Para Bernstein, a explicação mais evidente de toda essa distorção é o escopo do conflito israelo-palestino: ao contrário do que dão a entender os discursos e a retórica inflamada, a importância que se dá à crise do Oriente Médio tem a ver muito menos com questões humanitárias e muito mais com ideologia e geopolítica.

Diferentemente das guerras na Ásia ou na África, uma eventual guerra no Oriente Médio tem o potencial de escalar para uma conflagração mundial. O mais importante, porém, é que se trata da materialização do confronto do “imperialismo ocidental” contra os “atrasados e opressores árabes”, dependendo de onde se olha. E isso faz a delícia da mídia e de seus consumidores.

Escrito por: Marcos Guterman - http://blogs.estadao.com.br/marcos-guterman
Publicado no site em: 22/03/2010