sábado, 30 de janeiro de 2010

A história do Haiti é a história do racismo


Eduardo Galeano

A democracia haitiana nasceu há um instante. No seu breve tempo de vida, esta criatura faminta e doentia não recebeu senão bofetadas. Era uma recém-nascida, nos dias de festa de 1991, quando foi assassinada pela quartelada do general Raoul Cedras. Três anos mais tarde, ressuscitou. Depois de haver posto e retirado tantos ditadores militares, os Estados Unidos retiraram e puseram o presidente Jean-Bertrand Aristide, que havia sido o primeiro governante eleito por voto popular em toda a história do Haiti e que tivera a louca ideia de querer um país menos injusto.

O voto e o veto

Para apagar as pegadas da participação estadunidense na ditadura sangrenta do general Cedras, os fuzileiros navais levaram 160 mil páginas dos arquivos secretos. Aristide regressou acorrentado. Deram-lhe permissão para recuperar o governo, mas proibiram-lhe o poder. O seu sucessor, René Préval, obteve quase 90 por cento dos votos, mas mais poder do que Préval tem qualquer chefete de quarta categoria do Fundo Monetário ou do Banco Mundial, ainda que o povo haitiano não o tenha eleito nem sequer com um voto.

Mais do que o voto, pode o veto. Veto às reformas: cada vez que Préval, ou algum dos seus ministros, pede créditos internacionais para dar pão aos famintos, letras aos analfabetos ou terra aos camponeses, não recebe resposta, ou respondem ordenando-lhe:

– Recite a lição. E como o governo haitiano não acaba de aprender que é preciso desmantelar os poucos serviços públicos que restam, últimos pobres amparos para um dos povos mais desamparados do mundo, os professores dão o exame por perdido.

O álibi demográfico

Em fins do ano passado, quatro deputados alemães visitaram o Haiti. Mal chegaram, a miséria do povo feriu-lhes os olhos. Então o embaixador da Alemanha explicou-lhe, em Porto Príncipe, qual é o problema:

– Este é um país superpovoado, disse ele. A mulher haitiana sempre quer e o homem haitiano sempre pode.

E riu. Os deputados calaram-se. Nessa noite, um deles, Winfried Wolf, consultou os números. E comprovou que o Haiti é, com El Salvador, o país mais superpovoado das Américas, mas está tão superpovoado quanto a Alemanha: tem quase a mesma quantidade de habitantes por quilômetro quadrado.

Durante os seus dias no Haiti, o deputado Wolf não só foi golpeado pela miséria como também foi deslumbrado pela capacidade de beleza dos pintores populares. E chegou à conclusão de que o Haiti está superpovoado... de artistas.

Na realidade, o álibi demográfico é mais ou menos recente. Até há alguns anos, as potências ocidentais falavam mais claro.

A tradição racista

Os Estados Unidos invadiram o Haiti em 1915 e governaram o país até 1934. Retiraram-se quando conseguiram os seus dois objetivos: cobrar as dívidas do Citybank e abolir o artigo constitucional que proibia vender as plantations aos estrangeiros. Então Robert Lansing, secretário de Estado, justificou a longa e feroz ocupação militar explicando que a raça negra é incapaz de governar-se a si própria, que tem "uma tendência inerente à vida selvagem e uma incapacidade física de civilização". Um dos responsáveis pela invasão, William Philips, havia incubado tempos antes a ideia sagaz: "Este é um povo inferior, incapaz de conservar a civilização que haviam deixado os franceses".

O Haiti fora a pérola da coroa, a colônia mais rica da França: uma grande plantação de açúcar, com mão-de-obra escrava. No Espírito das leis, Montesquieu havia explicado sem papas na língua: "O açúcar seria demasiado caro se os escravos não trabalhassem na sua produção. Os referidos escravos são negros desde os pés até à cabeça e têm o nariz tão achatado que é quase impossível deles ter pena. Torna-se impensável que Deus, que é um ser muito sábio, tenha posto uma alma, e sobretudo uma alma boa, num corpo inteiramente negro".

Em contrapartida, Deus havia posto um açoite na mão do capataz. Os escravos não se distinguiam pela sua vontade de trabalhar. Os negros eram escravos por natureza e vagos também por natureza, e a natureza, cúmplice da ordem social, era obra de Deus: o escravo devia servir o amo e o amo devia castigar o escravo, que não mostrava o menor entusiasmo na hora de cumprir com o desígnio divino. Karl von Linneo, contemporâneo de Montesquieu, havia retratado o negro com precisão científica: "Vagabundo, preguiçoso, negligente, indolente e de costumes dissolutos". Mais generosamente, outro contemporâneo, David Hume, havia comprovado que o negro "pode desenvolver certas habilidades humanas, tal como o papagaio que fala algumas palavras".

A humilhação imperdoável

Em 1803 os negros do Haiti deram uma tremenda sova nas tropas de Napoleão Bonaparte e a Europa jamais perdoou esta humilhação infligida à raça branca. O Haiti foi o primeiro país livre das Américas. Os Estados Unidos haviam conquistado antes a sua independência, mas tinha meio milhão de escravos a trabalhar nas plantações de algodão e de tabaco. Jefferson, que era dono de escravos, dizia que todos os homens são iguais, mas também dizia que os negros foram, são e serão inferiores.

A bandeira dos homens livres levantou-se sobre as ruínas. A terra haitiana fora devastada pela monocultura do açúcar e arrasada pelas calamidades da guerra contra a França, e um terço da população havia caído no combate. Então começou o bloqueio. A nação recém nascida foi condenada à solidão. Ninguém lhe comprava, ninguém lhe vendia, ninguém a reconhecia.

O delito da dignidade

Nem sequer Simón Bolívar, que tão valente soube ser, teve a coragem de firmar o reconhecimento diplomático do país negro. Bolívar havia podido reiniciar a sua luta pela independência americana, quando a Espanha já o havia derrotado, graças ao apoio do Haiti. O governo haitiano havia-lhe entregue sete naves e muitas armas e soldados, com a única condição de que Bolívar libertasse os escravos, uma ideia que não havia ocorrido ao Libertador. Bolívar cumpriu com este compromisso, mas depois da sua vitória, quando já governava a Grande Colômbia, deu as costas ao país que o havia salvo. E quando convocou as nações americanas à reunião do Panamá, não convidou o Haiti mas convidou a Inglaterra.

Os Estados Unidos reconheceram o Haiti apenas sessenta anos depois do fim da guerra de independência, enquanto Etienne Serres, um gênio francês da anatomia, descobria em Paris que os negros são primitivos porque têm pouca distância entre o umbigo e o pênis. Por essa altura, o Haiti já estava em mãos de ditaduras militares carniceiras, que destinavam os famélicos recursos do país ao pagamento da dívida francesa. A Europa havia imposto ao Haiti a obrigação de pagar à França uma indenização gigantesca, a modo de perdão por haver cometido o delito da dignidade.

A história do assédio contra o Haiti, que nos nossos dias tem dimensões de tragédia, é também uma história do racismo na civilização ocidental.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

O legado profético de Zilda Arns



Leonardo Boff

Adital - Já se fizeram todos os elogios devidos à médica brasileira, Zilda Arns, irmã do Cardeal dos direitos humanos, Paulo Evaristo Arns, que sucumbiu sob as ruínas do terremoto no Haiti. Talvez a opinião pública mundial não se tenha dado conta da importância desta mulher que, em 2006, foi apontada como candidata ao prêmio Nobel da Paz. E bem que o merecia, pois dedicou toda sua vida à saúde das pessoas mais vulneráveis. Por 25 anos coordenou a Pastoral da Criança acompanhando mais um milhão e 800 mil menores de cinco anos e mais de um milhão e 400 famílias pobres. A partir de 2004, iniciou a Pastoral da Pessoa Idosa com mais de cem mil idosos envolvidos. Com meios simples, como o soro caseiro, o alimento à base da multimistura e outros recursos mínimos, salvou milhares de crianças que antes fatalmente morriam.

Seria longo historiar seu extraordinário trabalho difundido já em mais de 20 países pobres do mundo. O que pretendo é enfatizar os valores do capital espiritual que sustentaram a sua prática. Nisso ela ia contra o sistema dominante e serve de inspiração para hoje.

É convicção crescente que não sairemos da crise de civilização atual se continuarmos com os mesmos hábitos e os mesmos valores consumistas e individualistas que temos. Ela mostrou como pode ser diferente e melhor.

A Dr. Zilda honrou o cristianismo, vivendo uma mística de amor à humanidade sofredora, de esperança de que sempre se pode fazer alguma coisa para salvar vidas, de fé na força dos fracos que se organizam e na escuta de todos até das crianças que ainda não falam.

Ela tinha clara consciência de que a solução vem de baixo, da sociedade que se mobiliza, sem com isso dispensar o que o Estado deve fazer. Problemas sociais se resolvem a partir da sociedade. Para isso, ela suscitou a sensibilidade humanitária que se esconde em cada pessoa e inaugurou a política da boa vontade. Mais de 250 mil voluntários, sem nenhum ônus financeiro, se propuseram assumir os trabalhos junto com ela.

Uma idéia-geradora movia sua ação, copiada da prática de Jesus: multiplicar. Não apenas pães e peixes como Ele fez, mas, nas condições de hoje, multiplicar o saber, a solidariedade e os esforços.

Multiplicar o saber implica repassar às pessoas simples os rudimentos de higiene, o cuidado pela água, a medição do peso e a alimentação adequada às crianças. Esse saber reforça a auto-estima das pessoas e confere autonomia à sociedade civil.

Multiplicar a solidariedade que, para ser universal, deve partir dos últimos, buscando atingir as pessoas que vivem nos rincões onde ninguém vai, tentar salvar a criança mais desnutrida e quase agonizante. Essa solidariedade é a que menos existe no mundo atual.

Multiplicar esforços, envolvendo as políticas públicas, as ONGs, os grupos de base, as empresas em sua responsabilidade social, enfim, todos os que colocam a vida e o amor acima do lucro e da vantagem. Mas antes de tudo multiplicar a boa-vontade generosa.

Ora, são estes conteúdos do capital espiritual que devem estar na base da nova sociedade mundial que importa gestar. O século XXI será o século do cuidado pela vida e pela Terra ou será o século de nossa auto-destruição. Até agora globalizamos a economia e as comunicações. Temos que globalizar a consciência planetária e multiplicar o saber útil à vida, a solidariedade universal, os esforços que visam construir aquilo que ainda não foi ensaiado. Amor e solidariedade não entram nas estatísticas nem nos cálculos econômicos. Mas são eles que mais buscamos e que nos podem salvar.

A médica Zilda Arns, seguramente sem o saber, mas profeticamente, nos mostrou em miniatura que esse mundo não é só possível, mas é realizável já agora.


Teólogo, filósofo e escritor
[Autor de Saber cuidar: ética do humano, compaixão com a Terra, Vozes (2006)].

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Zilda Arns, a mãe do Brasil



Frei Betto

Adital - Pode-se repetir que ninguém é insubstituível, mas a dra. Zilda Arns, vítima do terremoto que arruinou o Haiti, era sim uma pessoa imprescindível. Nela mostrava-se imperceptível a distância entre intenções e ações. Formada em medicina e movida por profundo espírito evangélico - era irmã do cardeal Paulo Evaristo Arns, arcebispo emérito de São Paulo -, fundou a Pastoral da Criança, alarmada com o alto índice de mortalidade infantil no Brasil.

Em iniciativas de voluntariado se podem mapear dois tipos de pessoas: as que, primeiro, agem, põem o bloco na rua e depois buscam os recursos; e as que se enredam no cipoal das fontes financiadoras e jamais passam da utopia à topia.

Zilda Arns arregaçou as mangas e, inspirada na pedagogia de Paulo Freire, encontrou, primeiro, os recursos humanos capazes de mobilizar milhares de pessoas em prol da drástica redução da mortalidade infantil: mães e pais das crianças, de 0 a 6 anos, atendidas pela Pastoral, transformados em agentes multiplicadores.

Ela, sim, fez o milagre da multiplicação dos pães, ou seja, da vida. Aonde chega a Pastoral da Criança, o índice de mortalidade infantil cai, no primeiro ano, no mínimo 20%.

Seu método de atenção às gestantes pobres e às crianças desnutridas tornou-se paradigma mundial, adotado hoje em vários países da América Latina e da África. Por essa razão ela se encontrava no Haiti, onde pagou com a morte sua dedicação em salvar vidas.

Trabalhamos juntos no Fome Zero. No lançamento do programa, em 2003, ela discordou de se exigir dos beneficiários comprovantes de gastos em alimentos, de modo a garantir que o dinheiro não se destinasse a outras compras. Oded Grajew e eu a apoiamos, ressaltamos que apresentar comprovantes não era relevante, valia como forma de se verificar resultados. Haveria que confiar na palavra dos beneficiários.

Em março de 2004, no momento em que o governo trocava o Fome Zero pelo Bolsa Família, ela me convocou a Curitiba, sede da Pastoral da Criança. Em reunião com José Tubino, da FAO, e dom Aloysio Penna, arcebispo de Botucatu (SP), que representava a CNBB, debatemos as mudanças na área social do governo. Expus as tensões internas na área social, sobretudo a decisão de se acabar com os Comitês Gestores, pelos quais a sociedade civil atuava junto à gestão pública.

Zilda Arns temia que o Bolsa Família priorizasse a mera transferência de renda, submetendo-se à orientação que propõe tratar a pobreza com políticas compensatórias, sem tocar nas estruturas que promovem e asseguram a desigualdade social.

Acreditava que as políticas sociais do governo só teriam êxito consolidado se combinassem políticas de transferência de renda e mudanças estruturantes, ações emergenciais e educativas, como qualificação profissional.

Dias após a reunião, ela publicou, neste espaço da FOLHA, o artigo "Fôlego para o Fome Zero", no qual frisava que a política social "não deve estar sujeita à política econômica. É hora de mudar esse paradigma. É a política econômica que deve estar sujeita ao combate à fome e à miséria".

E alertava: "Erradicar os Comitês Gestores seria um grave erro, por destruir uma capilaridade popular que fortalece o empoderamento da sociedade civil; por reforçar o poder de prefeitos e vereadores que nem sempre primam pela ética e pela lisura no trato com os recursos públicos. O governo não deve temer a parceria da sociedade civil, representada pelos Comitês Gestores."

O apelo da mãe da Pastoral da Criança não foi ouvido. Os Comitês Gestores foram erradicados e, assim, a participação da sociedade civil nas políticas sociais do governo. Apesar de tudo, o ministro Patrus Ananias logrou aprimorar o Bolsa Família e o índice de redução da miséria absoluta no país, conforme dados recentes do Ipea. Falta encontrar a porta de saída aos beneficiários, de modo a produzirem a própria renda.

Zilda Arns nos deixa, de herança, o exemplo de que é possível mudar o perfil de uma sociedade com ações comunitárias, voluntárias, da sociedade civil, ainda que o poder público e a iniciativa privada permaneçam indiferentes ou adotem simulacros de responsabilidade social.

Se milhares de jovens e adultos brasileiros sobrevivem, hoje, às condições de pobreza em que nasceram, devem isso em especial à dra. Zilda Arns, que merece, sem exagero, o titulo perene de Mãe da Pátria.


• [Autor de "A mosca azul - reflexão sobre o poder" (Rocco), entre outros livros. Copyright 2010 - FREI BETTO - É proibida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato - MHPAL - Agência Literária (mhpal@terra.com.br)]. Escritor e assessor de movimentos sociais

domingo, 24 de janeiro de 2010

Haiti: removendo entulhos



Dom Demétrio Valentini

Adital – Passada uma semana do terremoto no Haiti, ainda continuam os esforços para socorrer vítimas, e salvar vidas que ainda se encontrem sob os escombros.

Em meio ao desmantelamento da infra-estrutura, os esforços se concentram agora no atendimento às necessidades básicas de água, comida e remédios para a sobrevivência de milhões de pessoas afetadas pela tragédia.

Ela despertou comovente solidariedade em todo o mundo. Como sempre, em momentos assim, o difícil é encontrar os caminhos para que a solidariedade chegue aos necessitados. Os governos estão se dando conta que há providências a serem tomadas por eles, sem delongas e da maneira a mais expedita possível.

A campanha lançada pela Cáritas Brasileira, a pedido da CNBB, oferece segurança a todos os que desejam colaborar, pela maneira como ela se realiza nas comunidades, pela garantia da destinação correta dos recursos arrecadados, e também pela estratégia de fazer chegar logo os recursos, para entregá-los a quem está no local, com a possibilidade de identificar as providências mais urgentes e adequadas.

A campanha da Cáritas Brasileira está articulada com a Cáritas Internacional, que já enviou representantes para o Haiti, para colaborar diretamente com a Cáritas local. Para facilitar o apoio às vítimas, a Cáritas reforçou sua ação a partir da República Dominicana, país vizinho ao Haiti, na mesma ilha.

A campanha deve prosseguir. Também para este final de semana, a CNBB recomenda que se façam coletas nas celebrações das comunidades. Pois na medida que a situação se estabilizar, vão emergindo com mais clareza as providências a serem tomadas para a reconstrução.

Neste sentido, cresce a consciência de que é preciso repensar mais em profundidade, à luz da história, as causas que trouxeram tanta pobreza para o povo haitiano. O terremoto está interpelando as consciências. Assim como é indispensável remover escombros, para que as vidas não fiquem sufocadas, é importante remover preconceitos históricos, que continuam abafando a dignidade do povo haitiano, e impedem que ele percorra o caminho da liberdade, da justiça, do desenvolvimento, da própria soberania, para que ele mesmo assuma com respeito e competência o seu destino, no convívio pacífico com as outras nações.

O Haiti foi o primeiro país latino americano a conseguir sua independência, ainda em 1804, com a inesperada "revolta dos escravos", que infligiram contundente derrota às forças da França. Portanto, a independência do Haiti brotou da consciência de liberdade do seu povo valoroso. Em seguida, foi capaz de ajudar a outros países latino americanos a também buscarem sua independência, colocando como condição que abolissem a escravidão, coisa que Bolívar esqueceu de fazer depois que conseguiu seus intentos políticos.

Esta postura altaneira do povo haitiano lhe custou um preço histórico muito caro. A França derrotada conseguiu impingir contra o país uma pesadíssima dívida, cujo pagamento foi comprometendo a economia do Haiti por longas décadas. O atrevimento do valente país em contrariar a ordem mundial estabelecida na base da supremacia da Europa e da raça branca, foi motivo para represálias em forma de boicote econômico, que foi arruinando sua incipiente economia. De 1915 a 1934 o Haiti foi dominado pelos Estados Unidos, que só se retiraram depois que conseguiram o pagamento das dívidas com o City Bank, e autorização para estrangeiros adquirirem propriedades no país.

Continuando a lembrar a triste sina deste pobre povo, não se pode esquecer os longos anos de ditadura sob títeres apoiados pelos Estados Unidos, com o falso pretexto de assim impedirem a penetração do comunismo.

O mundo não está inocente diante do Haiti. Há uma reparação a ser feita agora, em vista das injustiças praticadas contra um povo que teve a ousadia de ser livre e a coragem de pensar um mundo com dignidade e justiça.


Bispo de Jales (SP) e Presidente da Cáritas Brasileira

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Fé, política e opção pelos pobres




Tarcísio Bráulio Gonçalves

Adital - Tratar de fé e política nem sempre é fácil. O mais comum é encontrar pessoas cuja visão da política e da própria participação sócio-transformadora é bastante negativa. A religião, nessa perspectiva, não poderia envolver-se em assuntos considerados profanos, sob pena de degenerar em subversão. É necessário insistir e investir, no meio cristão, em uma introdução ao relacionamento entre fé e política que parta de um princípio capaz de conjugar essas duas instâncias, harmonizando-as em nome do bem comum. A opção preferencial pelos pobres pode desempenhar esse papel, mostrando-nos como o engajamento político é uma exigência da adesão ao projeto de Jesus.

Como a fé cristã vê os pobres? Não falamos aqui da virtude evangélica da pobreza, mas da situação de exclusão da maior parte da população mundial. Primeiramente, existe a ação desses pobres, expressa especialmente nas bem-aventuranças (ver Mt 5, 3 e Lc 6, 20), prova contundente de que os excluídos devem ser protagonistas de sua libertação. Afinal, como dizia Paulo Freire, "ninguém liberta ninguém: nós nos libertamos em comunhão". Mas há também a ação em favor dos pobres: "Vós sempre tendes convosco os pobres e, quando quiserdes, podeis fazer-lhes bem" (Mc 14, 7). Fazer o bem aos necessitados integra visceralmente o projeto de Jesus, conforme constatamos no famoso texto bíblico do juízo final, em Mt 25, 31-46. Para Paulo, a fé deve agir pela caridade (ver Gl 2, 10 e 5, 6). Nossa atenção cristã precisa estar voltada para os antigos e novos rostos de pobres, incluindo os ricos macerados pelas mais variadas opressões existenciais. Há também os pobres amparados por instituições e estruturas beneficentes, e há os "pobres-pobres", sem ninguém por eles, dos quais, sobretudo, devemos nos ocupar. Na ótica cristã, o pobre é o necessitado de cuidado e amor. Sem dúvida, a marca social da miséria e da marginalização reclama uma preferência maior para aqueles que são excluídos e praticamente anulados no sistema econômico e político dominante.

O que significa opção preferencial? O Catecismo da Igreja Católica, nos seus números 2443-2449, e o Compêndio da Doutrina Social da Igreja, no número 182, ajudam-nos a entender "opção" como sinônimo de "amor". Fala-se de "amor preferencial pelos pobres", uma expressão muito bela e significativa, pois traz implícita a idéia de que qualquer opção cristã deve ser guiada pela caridade. Quanto ao qualificativo "preferencial", temos de ter cuidado para explicá-lo. Alguns o rejeitam por acharem que é redundante ou pouco radical; outros, porque indicaria uma parcialidade ou favoritismo na práxis religiosa. Na verdade, dizer que a opção pelos pobres é preferencial não significa afirmar que seja exclusiva ou excludente. Deus não tem um amor maior por uns do que por outros. Amor preferencial é um amor que dá prioridade. Pensemos em uma mãe e seus dois filhos. A mãe não ama um filho mais do que ao outro, mas sabe dar prioridade quando um deles está sofrendo. Esse é o jeito de mãe, o jeito do Pai do filho pródigo, o jeito de todo amor verdadeiro. O pe. Kolvenbach, ex-prepósito geral dos jesuítas, expressou tal dinâmica com uma frase emblemática: "Os pobres não são os únicos, mas são os primeiros". É assim no Reino de Deus, chamado a começar aqui na terra.

Por tudo isso, a ação em favor dos pobres, manifesta como opção preferencial, "está implícita na fé cristológica naquele Deus que se fez pobre por nós, para nos enriquecer com sua pobreza" (Bento XVI, no Discurso Inaugural da Conferência de Aparecida). Os documentos do episcopado latino-americano, de Medellín a Aparecida, lembram a vinculação entre seguimento de Cristo e promoção humana. É uma exigência perene para a Igreja o engajamento em todos os espaços da vida social, sempre segundo o ponto de vista dos oprimidos. E se a libertação dos pobres é um critério essencial da fé cristã, podemos dizer que, na opção preferencial por eles, fé e política se abraçam. De fato, a assistência voltada à doação imediata do necessário à sobrevivência não esgota a opção pelos pobres. Também deve haver uma palavra evangélica dirigida aos construtores da sociedade e à transformação das estruturas assentadas na lógica do acúmulo excludente. Isso se faz através da política, tanto na esfera partidária como no campo mais amplo da atuação dos sindicatos, das associações, das igrejas e de todos os grupos chamados a valorizar os mecanismos de participação e controle social do regime democrático.

Assim, a fé cristã exige a opção preferencial pelos pobres e, por tal opção, abre-se à atuação política. Política é a arte de buscar, em comunhão, o bem comum. Sem reduzir-se à política partidária, mas envolvendo toda ação orientada a promover uma sociedade mais justa e igualitária, ela é necessária para uma ordenação social condizente com a nossa humanidade. A aversão do povo à politicagem ou à perversão da política não pode ser desculpa para se deixar de lado o compromisso sócio-transformador. Um documento da CNBB, intitulado "Exigências Éticas da Ordem Democrática", assevera: "A existência de milhões de empobrecidos é a negação radical da ordem democrática. A situação em que vivem os pobres é critério para medir a bondade, a justiça e a moralidade, enfim, a efetivação da ordem democrática. Os pobres são os juízes da vida democrática de um país". A vida dos pobres, critério de nossa fé, seja também o critério da política, levando-nos a participar, nos diversos níveis e instituições políticas, da construção de um mundo melhor. Será o caminho da autenticidade de nossa fé e a nossa contribuição para o amadurecimento da democracia em nosso país.




Bacharel em teologia pela Universidade Católica de Goiás e especialista em filosofia e existência pela Universidade Católica de Brasília

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Terremoto neoliberal no Haiti



Frei Gilvander Moreira

“Gangues disseminam o terror no Haiti”, repete à exaustão a mídia, que rotula o povo haitiano como violento.. Será mesmo? Será que a natureza indomável é a principal responsável pelo sofrimento sem tamanho que se abate sobre o povo haitiano? Reflitamos.

O Haiti foi invadido brutalmente por fuzileiros navais dos Estados Unidos entre 1915 e 1934. Incontáveis ditaduras haitianas foram auxiliadas e apoiadas por Washington.

Em 2004, em um golpe militar, o presidente do Haiti, Jean-Bertrand Aristide, democraticamente eleito, foi seqüestrado pelos Estados Unidos e levado de avião para o exílio na África. Estados Unidos, Canadá e França conspiraram abertamente quatro anos para derrubar o governo de Aristide, cortando quase toda ajuda internacional e destruindo a economia haitiana.

“O primeiro governo democrático de Aristide foi derrubado após apenas sete meses, em 1991, por oficiais militares e esquadrões da morte, que mais tarde, se descobriu serem financiados pela Agência Central de Inteligência dos EUA. Agora Aristide quer retornar ao seu país, algo que a maioria dos haitianos reivindica desde o golpe militar que o depôs. Mas os EUA não o querem ali. E o governo Preval, que é completamente dependente de Washington, decidiu que o partido de Aristide – o maior do Haiti – não será autorizado a concorrer nas próximas eleições (previstas originalmente para fevereiro de 2010)”, informa Mark Wesbrot (FSP, 19/01/2010, p. A3).

Depois de ter expulsado o ditador Jean-Claude Duvalier, Baby Doc, do Haiti, Jean-Bertrand, sacerdote católico e teólogo da Libertação, de origem humilde, ganhou, com mais de dois terços dos votos, as primeiras eleições livres realizadas no Haiti (dezembro, 1990), tornando-se o símbolo das esperanças populares. Após ter adotado as primeiras medidas contra a corrupção e a falência econômica, foi deposto pelas forças militares, sob o comando do general Raoul Cédras, apenas oito meses depois de ter assumido o cargo. Aristide foi eleito como fruto de um processo de organização popular que levaria o Haiti a justiça social e, provavelmente, a uma sociedade socialista. Isso seria criar uma segunda Cuba nas barbas de Tio Sam. Por isso privatização neoliberal, golpe militar, ingerência militar, esmola ...

Desde 1984, o Fundo Monetário Internacional obrigou o Haiti a liberar seu mercado. Os escassos e últimos serviços públicos foram privatizados negando acesso a eles ao povo marginalizado. Em 1970, Haiti produzia 90% dos alimentos que consumia, atualmente importa 55%. O arroz estadunidense subvencionado matou a produção local. Em agosto e setembro de 2008, a disparada mundial dos preços dos alimentos fez com que aumentasse o preço dos alimentos no Haiti em 50%, o que deu origem aos motins da fome.

A Cruz Vermelha diz que haitianos estão ‘agressivos’ diante da falta de mantimentos. Dia 18 de janeiro de 2010, o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, em visita a Porto Príncipe, ouviu do povo haitiano nas ruas gritos como “não precisamos de ajuda militar; precisamos de comida e abrigo. Estamos morrendo.” O Banco Mundial, o FMI, o Banco Interamericano de Desenvolvimento e muitas empresas transnacionais há décadas têm cinicamente jogado a sociedade haitiana em um inferno social.

A situação de grande parte do povo haitiano há muito tempo é semelhante a de milhões de brasileiros que sobrevivem nas favelas e nas prisões brasileiras: pobres demais e negros demais para participarem da Casa Grande atual, os bairros nobres das cidades. Sem reforma agrária, com apoio irrestrito ao agronegócio, cinqüenta milhões de brasileiros foram empurrados pela classe dominante para as atuais senzalas, as favelas brasileiras onde as prisões são o pelourinho. Tem razão Caetano Veloso ao dizer "O Haiti é aqui...”.

Enfim, tanto no Haiti como no Brasil (e América Latina, África e Ásia), as políticas neoliberais estão causando o mais tenebroso terremoto social. Um terremoto natural, como o de 7 graus na escala Richter que golpeou o Haiti em 12 de janeiro de 2010, se pode imputar à fatalidade, mas o vergonhoso e insuportável empobrecimento das populações urbanas e rurais de Haiti, não. O Governo brasileiro acertadamente defende a restauração da democracia em Honduras. Por que não defender a democracia também para o Haiti? Para isso deveria enviar para o Haiti, no mínimo, três mil médicos, assistentes sociais e lideranças populares (com infra-estrutura para atuarem) e trazer de volta quase todos os 1200 militares que lá estão.

Não nos esqueçamos: o Haiti foi o primeiro país latino americano a conquistar sua independência, ainda em 1804, a partir de uma "revolta dos escravos", que infligiram contundente derrota às forças invasoras francesas. Assim, o povo negro haitiano inspirou todas as lutas por independência na nossa Pátria Grande, a América afrolatíndia. A sede de vida e de liberdade do povo negro do Haiti tem sido reprimida secularmente por vassalos de um sistema de morte: o capitalismo neoliberal.

Belo Horizonte, 19/01/2010.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Acampados pela vida



Mais uma vez Cabrobó retorna ao palco da resistência contra-hegemônica ao poder do capital financeiro e especulativo que se apropria do mito desenvolvimentista da Transposição do Rio São Francisco. A cidade de Pernambuco às margens do Rio São Francisco é palco de uma manifestação dos movimentos sociais que se encontram acampados para impedir a grotesca Transposição do velho Chico. Em 2005, Cabrobó foi o cenário da greve de fome promovida pelo bispo de Barra, Dom Luis Cappio que com o verdadeiro espírito de Francisco de Assis e na defesa do outro Chico, o rio, colocou-se com uma voz profética que clama no Semi-Árido nordestino. Dessa vez, Frei Luis não está sozinho. Cabrobó recebe centenas de militantes de vários movimentos sociais do campo que também como vozes proféticas se lançam na contramão da história para defender a vida do Rio São Francisco contrários ao projeto de morte imposto pela lógica desenvolvimentista que paira sobre o Palácio do Planalto e sobre o Ministério da Integração Nacional.

Além do povo indígena Truká em maioria no acampamento da vida, outros movimentos sociais reforçam o clamor popular de vozes do semi-árido contrárias ao Projeto de Transposição do Rio São Francisco, tais como: o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), o MPA (Movimento dos Pequenos Agricultores), Cáritas Brasileira, o CIMI (Conselho Indigenista Missionário), a CPT (Comissão Pastoral da Terra), ASA (Articulação do Semi-Árido), MAB (Movimento dos Atingidos pelas Barragens), MMC (Movimento de Mulheres Camponesas), APOINME (Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo), MONAPE (Movimento Nacional dos Pescadores), CETA (Movimento Estadual dos Trabalhadores Assentados Acampados e Quilombolas da Bahia), SINDAE (Sindicato dos Trabalhadores em Água e Esgoto no Estado da Bahia), CPP (Comissão Pastoral dos Pescadores), AATR (Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais no Estado da Bahia), PJMP (Pastoral da Juventude do Meio Popular), CREA/BA (Conselho Regional de Engenharia, Arquitetura e Agronomia da Bahia), SINDIPETRO AL/SE (Sindicato dos Petroleiros de Alagoas e Sergipe), CONLUTAS (Coordenação Nacional de Lutas), Federação Sindical e Democrática de Metalúrgicos do Estado de MG, Terra de Direitos, Fórum Nacional da Reforma Agrária, Rede Brasileira de Justiça Ambiental, Fórum Permanente em Defesa do Rio São Francisco / BA, Fórum de Desenvolvimento Sustentável do Norte de MG, Fóruns de Organizações Populares do Alto, Médio, Submédio e Baixo São Francisco e Frente Cearense Por uma Nova Cultura da Água.

Qual é o significado de Cabrobó? Os mesmos sonhos, as mesmas esperanças, as mesmas alegrias e tristezas dos povos do campo que na história do Brasil lutaram para conquistar seu lugar de direito negado. Assim, de Canudos ao Contestado, de Trombas e Formoso à Encruzilhada, das Ligas Camponesas ao MST, até chegarmos a Cabrobó, todos e todas possuem um mesmo desejo: o de ver e ter a vida para todos e todas. Cabrobó hoje significa a luta pela vida.

Assim como Marx em 1848 já afirmava: “Um fantasma ronda a Europa – o fantasma do comunismo. Para persegui-lo se unem numa santa aliança todas as potências da velha Europa: o papa e o czar, Guizot e Metternich, os radicais da França e os policiais da Alemanha” (Cf. Manifesto do Partido Comunista). Poderíamos também afirmar hoje em nosso atual momento histórico onde os sujeitos coletivos de Cabrobó se levantam enquanto força contra-hegemônica, a saber: “Um fantasma ronda o Planalto – o fantasma de Cabrobó. Para persegui-lo se unem numa santa aliança todos os poderes do velho Estado Liberal: o executivo, o legislativo e o Judiciário, de Lula aos Democratas (antigo PFL), Ciro Gomes e Geddel, os empresários do mundo rural ligados ao agronegócio e os aproveitadores do hidronegócio”.

A ordem de despejo já foi dada. Para isso, a justiça é bem rápida em se tratando de interesses que vão contra a ordem estabelecida e aos anseios da classe dominante. Mas, a decisão dos movimentos sociais que ali se encontram é permanecer e lutar. Principalmente, o povo indígena Truká que agora são literalmente ameaçados pela Transposição que se encontram há mais de 10 anos lutando pela demarcação da área como reserva indígena. O governo faz literalmente vistas grossas para esse fato, neste momento o que importa é fazer a transposição sem ouvir as comunidades e os movimentos sociais que sabem dos impactos que poderá ocorrer no Rio São Francisco.

Muitos e muitas, mesmo distante da profética Cabrobó, encontram-se unidos pela mesma causa. Dentre eles, o teólogo Leonardo Boff afirma que o momento de Cabrobó é “de dar uma lição de democracia participativa, obrigando o poder público a discutir com o povo organizado. Aqueles que estão no poder são apenas delegados do poder popular. Este nunca pode ser dispensado. E a proposta alternativa que nasceu das bases não é apenas mais barata, mas a mais adequada àquele ecossistema e que melhor atende aos anseios do povo que conhece a realidade” (Fonte: Adital, 02/07/2007).

Para o governo Lula fica uma pergunta séria: A quem seu governo serve? A que interesses está seu governo que possui um mandato popular legitimado pela vontade do povo? A quem interessa realmente essa famigerada Transposição do Rio São Francisco? A questão se torna mais séria neste momento, pois há um povo indígena que clama pelo direito legal à demarcação de suas terras e caso o Executivo, o Legislativo e o Judiciário fechem os olhos para isso, entraremos numa posição contrária ao Estado de Direito.

Parece que a busca pelo desenvolvimento a todo custo bateu às portas do Planalto e que agora se criou o mito de que somos obrigados a nos desenvolver a qualquer custo mesmo que o desenvolvimento tenha impactos ambientais contrários ao momento histórico em que vivemos e mesmo que prejudique centenas de famílias ribeirinhas, camponeses e povos indígenas. A lógica é realmente essa, pois os interesses são outros ou seria de outros?

O desejo dos movimentos sociais que construíram o acampamento da vida é de que o Exército interrompa as obras de Transposição do Rio São Francisco e que se abra um canal de diálogo, pois até o momento não houve diálogo entre os movimentos sociais e o governo. Desde a greve de fome de Dom Luis Cappio, o que aconteceu foram muitas promessas de encontros, discussões, verificação conjunta das possibilidades ou não dos impactos ambientais, revitalização do Rio, mas até o momento, nada disso aconteceu. Neste momento, de levante popular, de luta democrática, de participação social na defesa do meio ambiente, da terra e da água, contrários à lógica da Transposição que beneficiará o Agronegócio e o Hidronegócio, os movimentos sociais não podem ceder as pressões do governo, é preciso acima de tudo resistir as ameaças. Também não é hora de dialogar com parlamentares e com os representantes de Ministérios. É hora de exigir do governo uma posição para que realmente interrompa as obras e a partir daí criar canais de um diálogo possível, bilateral e que aconteça de forma democrática em Fóruns, Conferências e Seminários.

Acampados pela vida, vida de acampados em nome de uma causa que implica uma pedagogia da resistência contra os sistemas de morte que penetraram até mesmo no universo simbólico de um governo dito de esquerda, mas que na verdade, demonstra sua verdadeira opção pelos banqueiros, pelos empresários, pelo agronegócio e pelo hidronegócio. Cabrobó representa hoje a luta pela vida do Rio São Francisco, mas também, a resistência do povo indígena Truká, das mulheres lavadeiras, das comunidades ribeirinhas e dos camponeses que se utilizam do velho Chico de forma sustentável. A sustentabilidade do Rio São Francisco está ameaçada. Por isso mesmo é que Cabrobó ressurge, com vida nova para dar nova vida e esperança aos povos do Semi-Árido.

Claudemiro Godoy do Nascimento
Filósofo e Teólogo. Mestre em Educação/Unicamp. Doutor em Educação/UnB. Professor da Universidade Federal do Tocantins – UFT/Campus de Arraias.
E-mail:
claugnas@uft.edu.br / claugnas@yahoo.com.br

Escrito e publicado em 03 de julho de 2007: http://www.adital.org.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=28315&busca

sábado, 16 de janeiro de 2010

Chuva não castiga ninguém



Frei Gilvander Moreira
 
“Deus Pai faz cair a chuva sobre justos e injustos.” (Mt 5,45)

Nos primeiros dias de janeiro de 2010, a população brasileira viu-se aterrorizada por notícias da Mídia – Grandes meios de comunicação -, tais como: a) Chuvas castigam o estado do Rio de Janeiro, onde deslizamentos de encostas na Ilha Grande e na cidade de Angra dos Reis fizeram centenas de vítimas, sendo mais de 50 mortos; b) Chuvas em demasia castigam o rio Grande do Sul, onde uma ponte sobre o rio Jacuí, na RS-287, desabou. Muitas pessoas que estavam sobre a Ponte desapareceram. Várias pessoas foram resgatadas e outras continuam desaparecidas; c) Chuva torrencial arrasou o conjunto urbanístico histórico de São Luis do Paraitinga, em São Paulo, onde, inclusive uma igreja centenária desabou.

Esses são estragos provocados pelas mudanças climáticas, eufemisticamente consideradas pela Mídia como “chuvas intensas”, e comprovadamente acima das médias regionais, em várias regiões do país. As notícias, acima referidas, deixam claro que não há como se sentir totalmente seguro em vista das mudanças climáticas em curso. Construções de concreto se derretem em vista da força das águas. Tudo o que era de concreto desmanchou como papel diante dos olhos perplexos da população. A conclusão a que chegamos é que não existe mais tecnologia 100% eficiente e eficaz diante de tantas mudanças desmedidas nos fenômenos naturais. “Tudo o que era sólido, se desmancha no ar”, já alertava Marx no Manifesto Comunista.

Se pensarmos bem, veremos que as notícias veiculadas da forma como referidas acima são grandes mentiras. Primeiro, porque a chuva é benfazeja, cai sobre justos e injustos (Mt 5,45), é reflexo da bondade de Deus, que é infinito amor. Deus rega com a chuva a terra que deu como herança ao seu povo (I Rs 8,36). “Mandarei chuva no tempo certo e será uma chuva abençoada” (Ez 34,26), assim o profeta Ezequiel consola o povo em tempos de exílio e de escassez de chuva. A sabedoria do povo da Bíblia reconhece que Deus solidário e libertador “através a chuva alimenta os povos, dando-lhes comida abundante.” (Jó 36,31). Na Bíblia se fala de chuva mais de cem vezes. Até no dilúvio, a chuva é vista como purificadora (cf. Gênesis 6 a 9). Sob o império dos faraós no Egito, a chuva de granizo é vista como uma praga em cima dos opressores e como uma dádiva de Deus que liberta da opressão (cf. Gênesis 9 e 10).

A chuva não castiga e nem desabriga ninguém, apenas revela uma injustiça sócio-econômica e política existente anteriormente. Logo, quem castiga e desabriga, em última instância, é o sistema capitalista que descarta as pessoas e as condena a sobreviverem em encostas e áreas de risco. Quem é atingido quando a chuva chega exageradamente, salvo exceções, são as famílias que tiveram seus direitos humanos - direito à moradia, ao trabalho, à educação, a um salário justo, ao meio ambiente equilibrado e à dignidade - desrespeitados pelo capitalismo neoliberal e por pessoas que adoram o deus capital, o maior ídolo da atualidade.

O falso evangelho (= boa notícia para todos a partir dos pobres) do capitalismo inicia-se assim: “No princípio está o capital. No meio está a concorrência, a competição. No fim está a acumulação, a concentração de renda, de riqueza e de poder.” Capital é dinheiro investido para gerar mais dinheiro.

A Campanha da Fraternidade de 2010, com o tema Economia e Vida e com o lema “Vocês não podem servir a Deus e ao dinheiro” (Mt 6,24) propõe um evangelho para todo o povo e para toda a biodiversidade: No princípio está a vida. No meio, os meios necessários para efetivar a vida. No fim, o bem-estar de todos e tudo. Não apenas a vida do ser humano e nem só de alguns, mas de todas as pessoas e de todos os seres vivos. Logo, urge construir uma sociedade sustentável, onde a preservação dos bens naturais seja o carro chefe e não o crescimento econômico só para alguns.

Um desafio inadiável é percebermos as relações entre as tempestades e o aquecimento global, entre o aquecimento global e o efeito estufa, entre o efeito estufa e a emissão de fases CO2 e outros, entre a emissão de gases CO2 e outros e o modelo industrial vigente (capitalismo neoliberal), entre o capitalismo neoliberal e a mentalidade ocidental conquistadora, e a relação desta com o ser humano, seu Criador e todas as outras criaturas.

Logo, dizer que “a chuva castiga” é reducionismo que esconde o maior responsável por tanta dor e tanto pranto: o sistema capitalista.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Haiti: desespero e esperança


Como não se comover com as imagens e o drama pelo qual está passando o povo haitiano? Um país mergulhado no desespero das tragédias, das exclusões, da desigualdade e que carrega o estigma de ser o país mais pobre do novo mundo, a América. As lágrimas, a dor e o sofrimento diante dessa tragédia sem proporções que abateu o Haiti, nos deixa, enquanto latino-americanos, perplexos, chocados, sem acreditar que um país tão sofrido tenha mais uma realidade de desespero. Muitos perguntam: Por que o Haiti?

Segundo o Presidente do Haiti, René Préval, há uma estimativa não-oficial que pode contabilizar mais de 100 mil mortos diante do terremoto que arrasou a capital Porto-Príncipe. Muitos prédios públicos e de cooperação internacional desabaram diante dos fortes tremores, entre eles, a residência presidencial, o parlamento haitiano, o prédio da ONU, a Universidade Nacional, a Catedral, Hospitais, Escolas, casas etc. Muitos estão desaparecidos nos escombros. O aeroporto também foi danificado o que impede com que as ajudas humanitárias internacionais possam entrar no país rapidamente. Há relatos de corpos espalhados pelas ruas, falta água, comida e assistência médica.

No Brasil, muitas famílias estão esperando notícias de brasileiros e brasileiras que servem ao povo haitiano como voluntários de ONGs e do exército brasileiro que participa da força de paz da ONU. Há uma estimativa de que onze brasileiros militares foram mortos nessa tragédia, além da Drª. Zilda Arns, fundadora e coordenadora nacional da Pastoral da Criança no Brasil que estava no Haiti a convite da Conferência dos Religiosos do Haiti para palestras, provavelmente, sobre a experiência da pastoral da criança. Ela é um exemplo de vida, de luta e de amor às crianças.

Há uma comoção internacional com os mortos, feridos e o povo haitiano que sofre há décadas com desastres naturais incompreensíveis aos olhos humanos. Segundo alguns relatos, o país está destruído. O Brasil anunciou por meio do Ministério de Relações Exteriores a ajuda imediata de 15 US$, o Fundo Emergencial das Nações Unidas anunciou mais 10 US$, a Alemanha com 1,5 US$, a União Européia com 4,5 US$. Além da promessa de muitos países se comprometerem a ajudar com alimentação, água, equipamentos médicos e pessoal humano.

O Haiti é um país que deverá ser reconstruído pelas mãos dos próprios haitianos e, também, com a cooperação fraterna de outros países. Todos os países têm problemas e dificuldades, mas, não se compara com o que passa há tempos o povo haitiano. A miséria é uma realidade subumana que deve ser extinta do imaginário desse povo alegre e festeiro. Curiosamente, o Brasil se apresenta como um país solidário, fraterno e que sabe partilhar o que tem. Espero, sinceramente, que o exemplo conquiste outros como o próprio Estados Unidos da América que desperdiça bilhões de dólares com armas e com a engenharia da guerra no Iraque e Afeganistão, mas que, ainda, deve aprender o espírito da solidariedade, da fraterna partilha e da cooperação internacional.

Diante desse desastre e do momento de desespero, não podemos perder a esperança. Talvez tenha chegado o momento de olharmos com mais humanidade para o Haiti. Diante do desespero a esperança poderá surgir, em especial, quando vemos o mundo chorando e se solidarizando com o povo haitiano. Os momentos de sofrimento e de dor, em certo sentido, também são pedagógicos. Aprendemos com o sofrimento e a dor. Evidentemente que o povo haitiano não merecia, mas, ainda não temos tecnologias para controlarmos a natureza e os abalos sísmicos das placas tectônicas. Mas, temos nossa humanidade. A reconstrução depende dos haitianos, mas também, da cooperação internacional de países como França, Inglaterra e Estados Unidos que fazem jorrar dólares para os banquetes da guerra e que agora podem fazer jorrar leite e mel para um país mergulhado na desgraça. E os yanques têm uma divida histórica com o povo haitiano.

A esperança é que possamos ver um país que está na desgraça alcançar a graça. A graça de ter uma sociedade mais justa, solidária e igualitária para todo um povo que há séculos vivem nos porões da vida e da indignidade humana. Para isso, os países ricos e emergentes deverão abrir seus corações e seus cofres para ajudar um país que se encontra no desespero. Já dizia um velho provérbio: Faça ao outro o que queremos que façam a nós! Assim, a esperança há de vencer o momento de desespero desesperançosa que abate a todos nós. Mas existe outro caminho que não queremos: manter o Haiti no submundo, na marginalização forçada e na desumanidade imposta pelas grandes forças econômicas do globo. Agora chegou a hora de gastar dinheiro, com seres humanos, com um povo. Se quisermos mudar os velhos paradigmas absolutos do espírito do capital para novos paradigmas do espírito da emancipação humanitária, o momento é agora. Viva o Haiti que chora seus filhos e filhas. Mas, todos somos Haiti neste momento e com ele aprenderemos como ser mais humanos e solidários.

Claudemiro Godoy do Nascimento
Filósofo e Teólogo. Mestre em Educação/Unicamp. Doutor em Educação/UnB. Professor da Universidade Federal do Tocantins – UFT/Campus de Arraias.
E-mail:
claugnas@uft.edu.br / claugnas@yahoo.com.br

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Entrevista com o Prof. Carlos Nelson Coutinho


“Sem democracia não há socialismo, e sem socialismo não há democracia”


Participaram: Hamilton Octávio de Souza, Marcelo Salles, Renato Pompeu e Tatiana Merlino. Fotos: Coletivo Favela em Foco.

Carlos Nelson Coutinho, um dos intelectuais marxistas mais respeitados do Brasil, recebeu a Caros Amigos em seu apartamento no bairro do Cosme Velho, Rio de Janeiro, para uma conversa sobre os caminhos e descaminhos da esquerda brasileira, sua decepção com o governo Lula e as possibilidades de superação do capitalismo. Estudioso de Antonio Gramsci, Coutinho defende a atualidade de Marx e reafirma o que disse em seu polêmico artigo “Democracia como valor universal”, publicado há 30 anos: “Sem democracia não há socialismo, e sem socialismo não há democracia”.

Hamilton Octávio de Souza: “Queremos saber da sua história, onde nasceu, onde foi criado, como optou por esta carreira..
Carlos Nelson Coutinho - Nasci na Bahia, em uma cidade do interior chamada Itabuna, mas fui para Salvador muito pequenininho, com uns 3 ou 4 anos. Me formei em Salvador, e as opções que eu fiz, fiz em Salvador. Eu nasci em 1943, glorioso ano da batalha de Stalingrado. Me formei em filosofia na Universidade Federal da Bahia, um péssimo curso, e com meus 18 ou 19 anos sabia mais do que a maioria dos professores. Meus pais eram baianos também. Meu pai era advogado e foi deputado estadual durante três legislaturas da UDN. Publicamente ele não era de esquerda, mas dentro de casa ele tinha uma posição mais aberta. Eu me tornei comunista lendo o Manifesto Comunista que o meu pai tinha na biblioteca. Ele era um homem culto, tinha livros de poesia. Minha irmã, que é mais velha, disse que eu precisava ler o Manifesto Comunista. Foi um deslumbramento. Eu devia ter uns 13 ou 14 anos. Aí fiz faculdade de Direito por dois anos porque era a faculdade onde se fazia política, e eu estava interessado em fazer política. Me dei conta que uma maneira boa de fazer política era me tornando intelectual. Aos 17 anos entrei no Partido Comunista Brasileiro, que naquela época tinha presença. O primeiro ano da faculdade foi até interessante porque tinha teoria geral do Estado, economia política, mas quando entrou o negócio de direito penal, direito civil, aí eu vi que não era a minha e fui fazer filosofia.

Renato Pompeu - Mas quais eram as suas referências intelectuais?
Carlos Nelson Coutinho - Em primeiro lugar, Marx, evidentemente, mas também foram muito fortes na minha formação intelectual o filósofo húngaro George Lukács e Gramsci. Eu tenho a vaidade de ter sido um dos primeiros a citar Gramsci no Brasil, porque aos 18 anos eu publiquei um artigo sobre ele na revista da faculdade de Direito. Aí eu vim para o Rio e fui trabalhar no Tribunal de Contas. Me apresentei ao João Vieira Filho para trabalhar e ele me falou: “meu filho, vá pra casa e o que você precisar de mim me telefone”. Eu fiquei dois ou três anos aqui sem trabalhar, mas a situação ficou inviável. Pedi demissão e fui, durante um bom tempo, tradutor. Eu ganhava a vida como tradutor, traduzi cerca de 80 ou 90 livros. Em 76, eu fui para a Europa. Passei 3 anos fora, não fui preso, mas senti que ia ser, foi pouco depois da morte do Vlado. Então morei na Europa por três anos, onde acho que aprendi muita política. Morei na Itália na época do florescimento do eurocomunismo, que me marcou muito. O primeiro texto que publiquei é exatamente este artigo da “Democracia como valor universal” que causou, sem modéstia, um certo auê na esquerda brasileira na época. Até hoje há citações de que é um texto reformista, revisionista. Enfim, voltei do exílio e entrei na universidade, na UFRJ, onde eu estou há quase 28 anos. Passei por três partidos políticos na vida. Entrei no PCB, como disse antes, aos 17 anos, onde fiquei até 1982, quando me dei conta que era uma forma política que tinha se esgotado. Nesse momento, surge evidentemente uma coisa que o PC não esperava e não queria, que é um partido realmente operário, no sentido de ter uma base operária. O mal-estar do PCB contra o PT no primeiro momento foi enorme. Eu saí do PCB, mas não entrei logo no PT. Só entrei no PT no final da década de 80, entrei junto com o [Milton] Temer e o Leandro Konder. Fizemos uma longa discussão para ver se entrávamos ou não, e ficamos no PT até o governo Lula, quando nos demos conta que o PT não era mais o PT. Saí e fui um dos fundadores do PSOL, que ainda é um partido em formação. Ele surge num momento bem diferente do momento de formação do PT, de ascensão do movimento social articulado com a ascensão do movimento operário. E o PSOL surge exatamente em um momento de refluxo. Nessa medida, ele é ainda um partido pequeno, cheio de correntes. Eu sou independente, não tenho corrente. Podemos dizer o seguinte: eu tinha um casamento monogâmico com o PCB, com o PT já me permitia traições e no PSOL é uma amizade colorida.

Tatiana Merlino - Em uma entrevista recente o senhor falou sobre o avanço e o triunfo da pequena política sobre a grande política dentro do governo Lula. Você pode falar um pouco sobre isso?
Carlos Nelson Coutinho - Gramsci faz uma distinção entre o que chama de grande política e pequena política. A grande política toma em questão as estruturas sociais, ou para modificá-las, ou para conservá-las. A pequena política de Gramsci é a política da intriga, do corredor, a intriga parlamentar, não coloca em discussão as grandes questões. Durante algum tempo, o Brasil passou por uma fase de grande política. Se a gente lembrar, por exemplo, a campanha presidencial de 89, sobretudo o segundo turno, tinha duas alternativas claras de sociedade. Não sei se, caso o PT ganhasse, ia cumpri-la, mas, do ponto de vista do discurso, tinha uma alternativa democrático-popular e uma alternativa claramente neoliberal. Até certo momento, no Brasil, nós tivemos uma disputa que Gramsci chamaria de grande política. A partir, porém, sobretudo, da vitória eleitoral de Lula, eu acho que a redução da arena política acaba na pequena política, ou seja, que no fundo não põe em discussão nada estrutural. Eu diria que é a política tipo americana. Obviamente o Obama não é o Bush, mas ninguém tem ilusão de que o Obama vai mudar as estruturas capitalistas dos Estados Unidos, ou propor uma alternativa global de sociedade. Então, o que está acontecendo no Brasil é um pouco isso, dando Dilma ou dando Serra não vai mudar muita coisa não. Até às vezes desconfio que o Serra pode fazer uma política menos conservadora, mas depois vão me acusar de ter aderido a ele. Eu até faço uma brincadeira, dizendo que a política brasileira “americanalhou”, virou essa coisa... Então, neste sentido eu entrei no PSOL até com essa ideia de criar uma proposta realmente alternativa. Infelizmente o PSOL não tem força suficiente para fazer essa proposta chegar ao grande público, mas é uma tentativa modesta de ir contra a pequena política.

Renato Pompeu - Você não acha que esse americanalhamento aconteceu na própria pátria do Gramsci?
Carlos Nelson Coutinho - Ah, sem dúvida. A predominância da pequena política é uma tendência mundial. Me lembro que logo depois da abertura eu escrevi uns dois ou três artigos em que dizia que o Brasil se tornou uma sociedade complexa. O Gramsci a chamaria de ocidental, que é uma sociedade civil desenvolvida, forte e tal. Mas há dois modelos de sociedade ocidental - um modelo que eu chamava de americano, que é este onde há sindicalismo, mas o sindicalismo não se põe nas estruturas, há um bipartidarismo, mas os partidos são muito parecidos, e o que eu chamava de modelo europeu, onde há disputa de hegemonia. Ou seja, se alguém votava no partido comunista na Itália, sabia que estava votando em uma proposta de outra ordem social. Se alguém votava no Labour Party na Inglaterra durante um bom tempo, pelo menos o programa deles era socialista, de socialização dos meios de produção. E quem votava no partido conservador queria conservar a ordem. O Brasil tinha como alternativa escolher um ou outro modelo. Por exemplo, havia partidos que são do tipo americano, como o PMDB, mas havia partidos que são do tipo europeu, como o PT. Havia um sindicalismo de resultado e um sindicalismo combativo (CUT, por exemplo), mas tudo isso era naquela época. Depois a hegemonia neoliberal, em grande parte, americanalhou a política mundial. A Europa hoje é exatamente isso, são partidos que diferem muito pouco entre si. Há um “americanalhamento”. É um fenômeno universal e é uma prova da hegemonia forte do neoliberalismo.

Tatiana Merlino - Então o avanço da pequena sobre a grande política está sendo mundial?
Carlos Nelson Coutinho - É um fenômeno mundial, não é um fenômeno brasileiro. Mas veja só, começam a surgir na América Latina formas que tentam romper com este modelo da pequena política. Estou falando claramente de Chávez, Evo Morales e Rafael Correa, ainda que eu não seja um chavista, até porque eu acho que o modelo que o Chávez tenta aplicar na Venezuela não é válido para o Brasil, que é uma sociedade mais complexa, mais articulada. Mas certamente é uma proposta que rompe com a pequena política. Quando o Chávez fala em socialismo, ele recoloca na ordem do dia, na agenda política, uma questão de estrutura.

Tatiana Merlino - Então é um socialismo novo, do século 21. Que socialismo é esse?
Carlos Nelson Coutinho - Eu não sei, aí tem que perguntar para o Chávez. Olha, eu não gosto dessa expressão “socialismo do século 21”, eu diria “socialismo no século 21”.

Renato Pompeu - E como seria o socialismo no século 21?
Carlos Nelson Coutinho - Socialismo não é um ideal ético ao qual tendemos para melhorar a ordem vigente. O socialismo é uma proposta de um novo modo de produção, de uma nova forma de sociabilidade, e nesse sentido eu acho que o socialismo é, mesmo no século 21, uma proposta de superar o capitalismo. Novidades surgiram, por exemplo: quem leu o Manifesto Comunista, como eu, vê que Marx e Engels acertaram em cheio na caracterização do capitalismo. A ideia da globalização capitalista está lá no Manifesto Comunista, o capitalismo cria um mercado mundial, expande e vive através de crises. Essa ideia de que a crise é constitutiva do capitalismo está lá em Marx. Mas há um ponto que nós precisamos rever em Marx, e rever certas afirmações, que é o seguinte: Quem é o sujeito revolucionário? Nós imaginamos construir uma nova ordem social. Naturalmente, para ser construída, tem que ter um sujeito. Para Marx, era a classe operária industrial fabril, e ele supunha, inclusive, que ela se tornaria maioria da sociedade. Acho que isso não aconteceu. O assalariamento se generalizou, hoje praticamente todas as profissões são submetidas à lei do assalariamento, mas não se configurou a criação de uma classe operária majoritária. Pelo contrário, a classe operária tem até diminuído. Então, eu diria que este é um grande desafio dos socialistas hoje. Hoje em dia tem aquele sujeito que trabalha no seu gabinete em casa gerando mais-valia para alguma empresa, tem o operário que continua na linha de montagem.. Será que este cara que trabalha no computador em casa se sente solidário com o operário que trabalha na linha de montagem? Você vê que é um grande desafio. Como congregar todos estes segmentos do mundo do trabalho permitindo que eles construam uma consciência mais ou menos unificada de classe e, portanto, se ponham como uma alternativa real à ordem do capital?

Renato Pompeu - Aí tem o problema dos excluídos...
Carlos Nelson Coutinho - Eu tenho sempre dito que as condições objetivas do socialismo nunca estiveram tão presentes. Prestem atenção, o Marx, no livro 3 do “Capital”, diz o seguinte: O comunismo implica na ampliação do reino da liberdade e o reino da liberdade é aquele que se situa para além da esfera do trabalho, é o reino do trabalho necessário, é o reino onde os homens explicitarão suas potencialidades, é o reino da práxis criadora. Até meio romanticamente ele chega a dizer no livro “A Ideologia Alemã” que o socialismo é o lugar onde o homem, de manhã caça, de tarde pesca e de noite faz crítica literária, está liberto da escravidão da divisão do trabalho. E ele diz que isso só pode ser obtido com a redução da jornada de trabalho. O capitalismo desenvolveu suas forças produtivas a tal ponto que isso se tornou uma possibilidade, a redução da jornada de trabalho, o que eliminaria o problema do desemprego. O cara trabalharia 4 horas por dia, teria emprego para todos os outros. E por que isso não acontece? Porque as relações sociais de produção capitalista não estão interessadas nisso, não estão interessadas em manter o trabalhador com o mesmo salário e uma jornada de trabalho muito menor. Então, eu acho que as condições para que a jornada de trabalho se reduza e, portanto, se crie espaços de liberdade para a ação, para a práxis criadora dos homens, são um fenômeno objetivo real hoje no capitalismo. Mas as condições subjetivas são muito desfavoráveis. A morfologia do mundo do trabalho se modificou muito. Muita gente vive do trabalho com condições muito diferenciadas, o que dificulta a percepção de que eles são membros de uma mesma classe social. Então, esse é um desafio que o socialismo no século 21 deve enfrentar. Um desafio também fundamental é repensar a questão da democracia no socialismo. Eu diria que, em grande parte, o mal chamado “socialismo real” fracassou porque não deu uma resposta adequada à questão da democracia. Eu acho que socialismo não é só socialização dos meios de produção - nos países do socialismo real, na verdade, foi estatização - mas é também socialização do poder político. E nós sabemos que o que aconteceu ali foi uma monopolização do poder político, uma burocratização partidária que levou a um ressecamento da democracia. A meu ver, aquilo foi uma transição bloqueada. Eu acho que os países socialistas não realizaram o comunismo, não realizaram sequer o socialismo e temos que repensar também a relação entre socialismo e democracia. Meu texto, “Democracia como valor universal”, não é um abandono do socialismo. Era apenas uma maneira de repensar o vínculo entre socialismo e democracia. Era um artigo ao mesmo tempo contra a ditadura que ainda existia e contra uma visão “marxista-leninista”, o pseudônimo do stalinismo, que o partido ainda tinha da democracia. Acho que este foi o limite central da renovação do partido.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Uma Igreja tradicionalista nunca será criativa


Luiz Carlos Susin

“Creio que há um esforço enorme em torno de um sonho impossível: a restauração do catolicismo europeu de tempos que não voltam porque a cultura da Europa, atualmente, de modo geral, tem muita estética, mas pouca alma de verdade, e virou turismo e savoir vivre”. A opinião é do teólogo Luiz Carlos Susin e foi expressa na entrevista que segue, concedida, por e-mail, à IHU On-Line. Para ele, a novidade da Igreja Católica reside justamente em um aspecto já conhecido: o tradicionalismo. Entretanto, ele faz um alerta: “Há uma dose de violência institucional junto com o tradicionalismo, certa embriaguez de poder, ainda que frequentemente seja apenas simbólico”. Isso cria, justifica, “armadilhas a médio prazo, como estas aparentes surpresas em torno de desequilíbrios humanos elementares porque estavam até certo ponto ‘sublimados’”. E acrescenta: “Numa centralização muito hierárquica, acontece também uma disfunção de comunicação entre o centro, o topo, e as bases, a periferia. Vivemos uma época em que oficialmente tudo parece se tornar melhor disciplinado, mas, na verdade, há muito desencontro vital”.
Susin cursou mestrado e doutorado em Teologia na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, Itália. Leciona na PUCRS e na Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana – ESTEF, em Porto Alegre. É autor de inúmeras obras, entre as quais citamos Teologia para outro mundo possível (Paulinas, 2006).

Confira a entrevista.
IHU On-Line – O pontificado de Bento XVI está prestes a completar cinco anos. Que perspectivas esse papado abre para o futuro da Igreja no século XXI?
Luiz Carlos Susin – Cinco anos foi o tempo do pontificado de João XXIII . Esta comparação é quase inevitável. Aquele Papa foi confiante e audaz. Este é prudente, e aprendeu da sua própria teologia o método da suspeita. Mas há tempos em que o papado faz história, e há tempos – que são mais frequentes - em que a história acontece nas periferias das instituições. A menos que aconteçam alguns fatos ainda mais graves do que os que vieram sacudindo os últimos tempos, Roma não está para peixe. Creio que há um esforço enorme em torno de um sonho impossível: a restauração do catolicismo europeu de tempos que não voltam porque a cultura da Europa, atualmente, de modo geral, tem muita estética, mas pouca alma de verdade, e virou turismo e savoir vivre. A parte mais viva da Europa está entre os imigrantes, mesmo católicos. Mas grande parte não é católica.

IHU On-Line – O ano de 2009 foi repleto de “polêmicas” envolvendo a Igreja de Roma: a revogação da excomunhão dos lefebvrianos, os escândalos na Irlanda e entre os Legionários, as investigações sobre religiosas nos EUA, a questão dos anglicanos etc. Qual a sua avaliação dos caminhos que a Igreja vem tomando ultimamente?
Luiz Carlos Susin – Até mesmo vaticanistas mais conservadores, como Sandro Magister, reconhecem que a novidade vem pelo lado tradicionalista: são oficialmente bem-vindos e ganham apoio e prestígio. Mas por eles vieram também os constrangimentos da última década. Há uma dose de violência institucional junto com o tradicionalismo, certa embriaguez de poder, ainda que frequentemente seja apenas simbólico. E isso cria armadilhas a médio prazo, como estas aparentes surpresas em torno de desequilíbrios humanos elementares porque estavam até certo ponto “sublimados”. Numa centralização muito hierárquica acontece também uma disfunção de comunicação entre o centro, o topo, e as bases, a periferia. Vivemos uma época em que oficialmente tudo parece se tornar melhor disciplinado, mas na verdade há muito desencontro vital.

IHU On-Line – Diversos analistas apontam que o grande embate da Igreja atual, sob o papado de Bento XVI, é contra o secularismo. Em sua opinião, o secularismo é também uma preocupação da Igreja latino-americana?
Luiz Carlos Susin – O secularismo é um fenômeno “ocidental” muito ligado às contradições da própria Igreja. Lembra o título do último livro de Ivan Illich, A corrupção do melhor engendra o pior. Por isso, quanto mais se vai para o centro da instituição, mais se percebe perto dela o clima de secularismo, que vai além do reconhecimento da autonomia das realidades sociais – a secularidade do mundo – mas um clima de mútuos ressentimentos, acusações e cobranças. Quanto mais se vai para as periferias menos se sente este clima. Na América Latina, isto é sentido de forma vertical: o povo que está na base integra melhor seu cotidiano com sua fé, mas quando se sobe na sociedade, são mais marcantes as incongruências entre fé e vida social, que chega por aqui também a uma dissociação e até a um secularismo eticamente cínico.

IHU On-Line – Outra tendência da Igreja é o silenciamento ou censura de teólogos ou padres ativistas, como recentemente o jesuíta John Haight e o Maryknoll Roy Bourgeois. O que isso simboliza para o debate teológico e a missão social da Igreja?
Luiz Carlos Susin – Teólogos, religiosos e militantes sociais não podem ser “teólogos de corte”, nem “cabras mandados”, pois precisam de liberdade evangélica para interpretar e para criar. Embora devam lealdade e obséquio ao magistério da Igreja e à comunidade eclesial como um todo, precisam manter a parrésia, essa coragem profética pela qual acabam sempre pagando algum preço inclusive dentro da própria Igreja. Giovanni Batista Montini, que seria mais tarde Paulo VI, quando era arcebispo de Milão, sabendo que tinha sido afastado de Roma por manobras na Cúria, deixou escrito uma intrigante afirmação: “Às vezes se sofre pela Igreja, e às vezes se sofre também pelas mãos da Igreja”. Mais do que o silêncio de teólogos, o que nos faz sofrer na América Latina é o silêncio a respeito dos inúmeros mártires que deram suas vidas em nosso continente.

IHU On-Line – O conceito de “minoria criativa” também saiu dos lábios do Papa ao se referir à Igreja com relação ao seu futuro. Qual a sua opinião sobre essa perspectiva de Igreja na sociedade contemporânea?
Luiz Carlos Susin – “Minoria criativa” é uma realidade positiva na sociedade em diversos níveis, desde lideranças populares até lideranças dos países emergentes. Na Igreja, foi uma minoria criativa que liderou o Concílio Vaticano II e também a mais famosa e eficaz Assembleia de bispos da América Latina, em Medellín. Num mundo pluralista, com múltiplas tradições religiosas, reconhecer-se uma entre as outras tradições religiosas é um sinal saudável. Nesse caso, minorias criativas serão aquelas que buscarem ativamente o diálogo por um mundo que deve ser transformado. Tradicionalistas nunca foram e nunca serão criativos, sejam minoria ou maioria. Tentando uma analogia: por sua estrutura, ao invés de criativos, estão mais para reprodutivos por clonagem, repetição sem novidade.

IHU On-Line – Quais são os "sinais dos tempos" que mais inquietam a Igreja institucional hoje? E que outros sinais, também importantes, passam despercebidos?
Luiz Carlos Susin – Estamos repletos de sinais, há muitos sinais. Por exemplo, a eleição de Obama, mesmo que ele revele limites com o passar do tempo. Quando o presidente da mais poderosa nação do mundo, em tempo de férias, sai caminhando com um boné na cabeça para ir à padaria comprar o pão para sua família, isso é um grande sinal. Há uma vontade de identificação e de participação que provém de povos que até agora estavam calados, como os indígenas por toda a América Latina. Há uma movimentação migratória igual às que marcaram as grandes etapas da história. Reciclador de lixo tem discurso político. As mulheres têm palavra própria. São sinais de empoderamento. A única forma de tratar estes sinais é a interlocução sem tutela.

IHU On-Line – O Papa Bento XVI diz que a fome é o pior sinal da pobreza, chama a um estilo de vida austero, levanta sua voz contra o desperdício alimentar, além de pedir uma economia mais justa com a publicação da "Caritas in veritate". Por outro lado, cresce o número de famintos e pobres em todo o mundo. Quais são as grandes tendências da Igreja hoje com relação aos mais pobres? Concretamente, eles ainda são uma "opção preferencial" da Igreja do século XXI?
Luiz Carlos Susin – De fato, a fome é o absoluto antidivino ao lado do absoluto de Deus, os únicos dois absolutos. “Quem tem fome tem pressa”, dizia o saudoso Betinho. E quem tem fome se torna perigoso, pois só quem come é pacificado. Da proposta de economia do Papa, inspirado na economia do “dom”, pode-se desenhar uma economia mais humana. Mas, na realidade, são os pobres que mais costumam praticar a economia sem exagero de medidas, própria do dom. A opção preferencial pelos pobres é, nesse ponto, uma aprendizagem, mas é também uma experiência evangélica sem retorno. No século XIX, repetiu-se muito, para o bem da unidade da Igreja num mundo hostil, que onde está o Papa aí está a Igreja (Ubi Petrus ibi Ecclesia). Isso soa ao “universal concreto” de Hegel, cujo outro exemplo era Napoleão. Talvez toda autoridade institucional tenha este estatuto. Mas a Igreja institucional tem um problema: Jesus! Ele disse que “onde está um pequenino, aí eu estou”. O universal concreto da Igreja de Jesus só podem ser os pequeninos, os pobres. Portanto, onde está o pobre, aí está a Igreja (ubi pauper ibi Ecclesia). Todo retorno seria cínico.
IHU On-Line – Como ser Igreja no século XXI, tempo incerto, "líquido", marcado por categorias como pós-(contemporânea, histórica, metafísica, secular, religiosa etc.)?
Luiz Carlos Susin – João Paulo I, em seus 33 dias de pontificado, ainda meio desajeitado à estatura do cargo, saiu-se com uma pérola. Disse aos jornalistas que lhe fizessem perguntas essenciais, e não como os que teriam ido entrevistar Napoleão e lhe perguntaram sobre a cor preferida de suas ceroulas. Napoleão teria respondido que ele era um general, e que as perguntas deviam ser sobre estratégias de guerra. E o papa acrescentou: “se quiserem me perguntar sobre a Igreja, saibam em primeiro lugar que a história da Igreja não é a história dos papas, mas dos santos!” De fato, há papas santos e outros nem tanto. Uns fizeram um capítulo de história mais mundano. Mas os santos fazem a história que começou em Jesus, são a expressão eficaz da Igreja de Jesus. E há santos na Amazônia, nas periferias de São Paulo, nos riscos missionários por toda parte. Neles há algo de absolutamente sólido e transcendente.

sábado, 9 de janeiro de 2010

Igreja e os secularismos: campo para o profetismo

João Batista Libânio

Essa perspectiva, acentua o teólogo João Batista Libânio, direciona a Igreja para uma minoria de fiéis que assumem “consciente, livre e comprometidamente os deveres católicos nos diversos níveis: doutrinal, litúrgico, disciplinar, canônico, moral”. Na entrevista que segue, concedida, por e-mail, Libânio frisa que Roma pensa o mundo a partir do seu centro e sair desta perspectiva lhe custaria esforço de inculturação. “Como fazê-lo se não por meio de uma Igreja cada vez mais plural em que experiências regionais se façam em liberdade e convivam com outras formas ocidentais?”, questiona. Segundo ele, “uma Igreja em rede levaria Roma a pensar diferentemente seu papel de ‘presidir a Igreja na caridade’”.

João Batista Libânio é mestre e doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana (PUG) de Roma. Atualmente, leciona na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia e é membro do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais. É autor de diversos livros, entre os quais citamos Teologia da revelação a partir da Modernidade (5. ed. Rio de Janeiro: Loyola, 2005), Qual o caminho entre o crer e o amar? (2. ed. São Paulo: Paulus, 2005) e Qual o futuro do Cristianismo (2. ed. São Paulo: Paulus, 2008).
Confira a entrevista.

IHU On-Line – Que perspectivas o pontificado de Bento XVI abre para o futuro da Igreja no século XXI?
João Batista Libânio - Ao eleger um Papa já idoso e intimamente ligado a João Paulo II, os cardeais sinalizaram o desejo de continuidade da linha teológica e pastoral vigente. Não se desejava, naquele momento, nenhuma mudança fundamental nela. Julgava-se que a marca do pontificado anterior carecia ainda de mais tempo para firmar-se. E, nesse sentido, os fatos confirmam tal expectativa. No entanto, as características de personalidade influenciam na configuração do pontificado. Bento XVI não prosseguiu a maratona de viagens e a exposição midiática de João Paulo II. Optou por presença discreta e de cunho intelectual no grande mundo com menos viagens e menor acesso aos principais canais de comunicação. Com isso, incrementou uma compreensão de Igreja de minoria consciente, fiel e comprometida com a doutrina de fé e com práticas eclesiais nos campos da disciplina e da moral. A preocupação se desloca da busca de atrair para a Igreja grandes massas para o cultivo aprofundado dos que nela estão. Abriram-se as portas para aqueles que estavam fora, não por força da secularização ou de práticas humanistas, mas por quererem maior rigor na prática litúrgica – lefebvrianos afeitos à celebração do rito renovado de Pio V – e nas atitudes morais e sacramentais – anglicanos que não aceitaram as ordenações de mulheres e certa liberação no campo da sexualidade de ministros ordenados. Há esforço pelo cumprimento das normas da disciplina litúrgica, eclesiástica e da moral, além de rejeição de todo relativismo. Aqui se toca ponto fundamental do atual pontificado. Já na homilia, antes da eleição do Papa, o cardeal Ratzinger mostrou profunda preocupação com o relativismo. E este continua sendo grande adversário a ser combatido por corroer o núcleo do dogma.
No nível do ecumenismo, houve esforços de aproximação com as igrejas oriundas da Reforma, apesar de certos percalços advindos do documento do Pontificado anterior, mas de autoria do Card. Ratzinger: Dominus Jesus. No campo do diálogo inter-religioso, aconteceram hesitações. Momentos de proximidade, de amizade com rabinos, de visitas a países islâmicos, mas discursos que produziram mal-estar nessas mesmas relações. As encíclicas se distanciaram do clássico estilo pontifício para assumirem o caráter de profundas reflexões teológicas. Permitem maior espaço para discussões nesse campo. A experiência de publicar um livro de cristologia, entregue ao debate teológico, mostra a relevância da teologia nesse pontificado e também certa abertura à discussão. Entretanto, continuam as punições de teólogos em nome da vigilância da sã doutrina.

IHU On-Line – A Igreja já foi alvo de diversas “polêmicas” como a revogação da excomunhão dos lefebvrianos e as investigações sobre religiosas nos EUA. Como avalia a condução da Igreja em relação a essas discussões e que modelo de Igreja irá se construir a partir disso?
João Batista Libânio - Estes fatos que você menciona confirmam o que vinha dizendo da linha central do pontificado de Bento XVI. Ele mostra abertura para aqueles que se afastaram em nome de maior rigor doutrinal e litúrgico, como os lefebvrianos. O papa julgou que a situação já estaria madura para superar as sensibilidades criadas no pós-Concílio. E já tinha manifestado antes que uma liturgia que se vivera durante séculos, como a de Pio V, não poderia ser motivo de separação e que se deveria ter compreensão em relação a ela, mesmo que disciplinarmente fora proibida. Estava aberta a porta de volta. Com isso, sem dúvida, relativizou-se a força da reforma litúrgica do Vaticano II, permitindo o ritual anterior a ele. Esperemos que isso não signifique um retrocesso de todo o processo litúrgico, mas se continue a avançar na linha do Concílio. Entendam-se, então, essas intervenções pontifícias, simplesmente como uma concessão reconciliatória com um grupo conservador reduzido e de maior incidência na França e em outros países europeus. Imagino que, no Brasil, uma liturgia na língua latina não terá repercussão popular. No máximo satisfará a grupos mínimos em via de extinção.
Caritas in veritate
A retomada da Doutrina Social da Igreja com a Encíclica Caritas in veritate é outro ponto importante. Enquanto se trata de um recordar a Encíclica Populorum progressio de Paulo VI, nada implica de retrocesso. No entanto, a insistência, logo no início da Encíclica, na verdade no sentido de iluminadora da caridade, se não bem entendida, permite o reforço de posições conservadoras doutrinalistas. O risco consiste em sobrepor a verdade doutrinal e ortodoxa à caridade em vez de julgar a verdade a partir da caridade, como Jesus o fez em vários momentos no confronto com os fariseus. Evidentemente, o Papa não vai nessa direção. O perigo vem de correntes conservadoras lançarem mão da supervalorização da verdade objetiva, da doutrina a ponto de engessar a prática cristã. A encíclica teme que a verdade na sua objetividade universal seja sacrificada em nome de práticas que apelem para a caridade ou justiça social. Tal posição não flui sem perigos de conservadorismos.
Já aludi acima à questão dos anglicanos. Situa-se na mesma perspectiva de a Igreja oferecer abrigo a quem a ela quiser voltar e se aproxima de posições que ela oficialmente defende, como no caso da rejeição da ordenação das mulheres e de certos comportamentos sexuais. Tal proximidade permitiu que Roma a julgasse mais importante a outros inconvenientes ecumênicos. Daí a perplexidade que tal posição causou.

IHU On-Line – Em sua opinião, quais deveriam ser os principais focos de atenção para a Igreja em sua relação com o mundo e a sociedade contemporânea na próxima década?
João Batista Libânio - Já se conhecem bem os maiores desafios da atualidade. No nível econômico, fica a questão até onde a Igreja tem condições de colaborar na gestação de uma economia solidária em resposta ao desvairado neoliberalismo financeiro. A crise do ano passado deu sinal da gravidade da crise, mas não suficiente para que o sistema pense transformações profundas. Aí existe campo para o profetismo da Igreja. No campo político, evidencia-se a falência da democracia representativa, minada por corrupção, falta de credibilidade e conivência com um sistema econômico perverso. A novidade caminha na linha já ensaiada no Fórum Social Mundial de um sistema participativo popular. E a Igreja, com ampla experiência junto ao povo, de modo especial, com as CEBs e pastorais sociais, possui excelente contribuição a oferecer. No campo cultural religioso, a tradição eclesial, nascida da prática e pessoa de Jesus, no sentido da opção pelos pobres, da valorização da dignidade humana dos marginalizados, da reconciliação e perdão, da sobriedade, da sensibilidade ecológica diante da obra criadora de Deus, enfim, de tantos outros elementos de sua fé, detém enorme riqueza simbólica para gestar novo paradigma de existência.

IHU On-Line – O secularismo é também uma preocupação latino-americana para a Igreja ou é um fenômeno restrito à Europa?
João Batista Libânio - O termo secularismo sofre de enorme ambiguidade semântica. Num primeiro sentido, ele significa o término extremo da secularização. E esta se define pela perda da localização do Sagrado e de sua força institucional. Esse processo chegou a ser acolhido auspiciosamente por cristãos, como o teólogo alemão Gogarten . Libertou o cristianismo de ganga impura de elementos religiosos herdados do paganismo. Foi saudado como vitória da fé bíblico-cristã desde as origens bíblicas da criação até a figura de Jesus como dessacralização do mundo, fazendo-o tarefa do ser humano com sua inteligência, vontade e liberdade. Outros viram nela o início do secularismo ateu e, sobretudo, por influência do marxismo que transformou o ser humano no Prometeu divino, de criador da sociedade perfeita pelo socialismo. Talvez tal leitura subjaza à crítica do Papa num país que fez parte do bloco socialista. A teologia da libertação, por sua vez, propôs-se como programa precisamente para mostrar que o processo de secularização no campo social se casa perfeitamente com a prática cristã. Purifica-a de alianças espúrias com poderes opressores.
Há um outro secularismo que solapa em profundidade a fé cristã, mas que não assume nenhuma forma de luta política. A sociedade capitalista avançada neoliberal propugna uma sociedade de consumismo e de materialismo, que não impede por coação externa nenhuma prática religiosa, antes incentiva as que a favorecem. No entanto, na terrível força corrosiva do consumismo e materialismo até levando aos países tradicionalmente cristãos a um secularismo materialista. Já não mais dialético, e sim neoliberal. Esse se mostra o pior secularismo.

IHU On-Line – Em uma perspectiva geral, Roma está realmente aberta aos problemas mundiais ou ainda mantém uma mentalidade europeia, mesmo ao lidar com aqueles?
João Batista Libânio - Naturalmente Roma, enquanto sediada na Europa, e nascida, criada e alimentada pela cultura ocidental, pensa o mundo a partir dela. Considerou-se como centro de cultura e irradiação colonizadora. Portanto, para sair dessa perspectiva, custa-lhe enorme esforço de inculturação. Como fazê-lo se não por meio de uma Igreja cada vez mais plural em que experiências regionais se façam em liberdade e convivam com outras formas ocidentais? Por aí se anuncia o futuro, sobretudo, se o capitalismo entrar em colapso e for substituído por formas econômicas múltiplas, ligadas em rede. Assim também uma Igreja em rede levaria Roma a pensar diferentemente seu papel de “presidir a Igreja na caridade”.

IHU On-Line – Outra questão que merece atenção é a relação da Igreja com o feminino, especialmente no que se refere ao papel das religiosas dentro das estruturas da Igreja. Reconhecendo que a ordenação de mulheres ao sacerdócio parece ser algo ainda distante no horizonte da Igreja, como as mulheres – religiosas ou leigas – podem assumir um papel de maior relevância no contexto eclesial dos próximos anos?
João Batista Libânio - O cristianismo situa-se na tradição semita com fortes traços machistas. Inegável. A cultura ocidental marcou-se por tal tradição. Conhecemos outras culturas matriarcais. Não se trata de nosso caso. Portanto, antes de tudo, encontramo-nos diante de um fator cultural de longuíssima vigência. No entanto, a cultura ocidental machista desencadeou outro processo que lhe ajudou a perceber esse traço. A modernidade produziu, em dois níveis, profundo choque com o machismo ocidental. No plano material, a economia precisou cada vez mais da mão-de-obra da mulher, já não na simples expressão rural dependente, mas de uma forma independente do marido. Ao tornar-se operária e autônoma no mundo do trabalho, tomou consciência da própria dignidade, valor, capacidade de ação. Estava posto um ingrediente de independência que ninguém deterá.
Além disso, a modernidade propiciou o surgimento da subjetividade. Fenômeno amplo. A mulher, ao apropriar-se dele, descobriu como tinha sido tratada muitas vezes como objeto e não sujeito. Inseriu-se no processo de conscientização que gestou os movimentos de libertação. E a Igreja tinha sido um reduto em que a situação de dependência e até inferioridade da mulher contrasta fortemente com sua crescente consciência de autonomia e liberdade. Estamos apenas no início desse movimento de valorização da mulher. Embora o discurso eclesiástico já soe aberto ao papel da mulher na Igreja, a prática ainda resiste, presa aos preconceitos e elementos da tradição.
Resulta difícil para o magistério distinguir o tributo que a linguagem bíblica pagou ao machismo semita e o que realmente significa a vontade expressa de Jesus. Até o momento, são vedadas à mulher certas funções na Igreja em nome duma tradição vinculante, oriunda de Jesus. Questão, no momento, fechada, mas que, teologicamente, poderá, mais tarde, avançar, caso consigam melhores esclarecimentos exegéticos. Dois pontos parecem cruciais no papel da mulher na Igreja: sua participação no ministério ordenado e um papel no poder decisório nas diferentes instâncias eclesiásticas em nível de igualdade com os homens. Nem o diaconato feminino, que já houve na Igreja, conseguiu ir avante. E sua presença no poder decisório apenas acontece em conselhos de menor relevância e em função da benevolência de certos membros do clero, mas não em virtude do batismo. A teologia do batismo tem muito que avançar.

IHU On-Line – O conceito de “minoria criativa” também saiu dos lábios do Papa ao se referir à Igreja com relação ao seu futuro. Qual a sua opinião sobre essa perspectiva de Igreja na sociedade contemporânea?
João Batista Libânio - A perspectiva teológica alemã valoriza principalmente a seriedade nos compromissos. Não conhece o jeitinho brasileiro, nem certa condescendência de uma prática frouxa. Portanto, minoria criativa soa uma Igreja em que os fiéis assumam consciente, livre e comprometidamente os deveres católicos nos diversos níveis: doutrinal, litúrgico, disciplinar, canônico, moral. Ora, assumir o “pacote” completo do ensinamento do magistério não combina com uma Igreja de massa, de pessoas que cumprem somente parte dos requisitos considerados fundamentais para a plena vivência eclesial. Essa minoria aguerrida garantirá a continuidade da Igreja, sem preocupar-se com angariar publicitariamente membros para ela. Desconfia daqueles fiéis que, imbuídos da mentalidade pós-moderna, selecionam os elementos de uma religião ou Igreja para satisfazer-lhes a sensibilidade, a afetividade e as disposições do momento. Essa “minoria criativa” reage contra tal atitude. Prefere a alternativa: ou tudo ou nada em oposição radical ao anything goes –tudo vale do momento presente. No entanto, outros preferem uma participação na Igreja diversificada em grau desde a fidelidade completa até incursões esporádicas. Optam por maior tolerância, ao acreditar que vale melhor pouco do que nada. Duas visões que têm argumentos pesados para seu lado.