segunda-feira, 25 de maio de 2009

Crise ambiental e relação do homem com a natureza


O Rio São Francisco: acqua mater

Dom frei Luiz Flávio Cappio
[1]

Antes de viajar para a Alemanha para receber o Título de Cidadão do Mundo[2], dia 5 de maio de 2009, na PUC Minas, em Belo Horizonte, MG, na abertura do III Simpósio Internacional de Teologia e Ciências da Religião, Dom Cappio, o bispo que já fez duas greves de fome contra a Transposição de águas do Rio São Francisco e pela defesa do Rio São Francisco e do seu Povo, nosso querido frei Luz proferiu a seguinte conferência:
Que mundo deixaremos para nossos filhos, netos? Que planeta estamos preparando para as futuras gerações?
É uma questão elementar de justiça. O sagrado direito que cada um de nós possui de poder viver em um ambiente sadio, digno de seres humanos, propício à vida com qualidade para cidadãos e cidadãs deste planeta, corresponde ao igual dever que nos compete de propiciar estes mesmos direitos às futuras gerações. Herdamos um mundo, um planeta que nos foi legado por aqueles que vieram antes de nós, que prepararam a casa onde hoje moramos, onde vivemos, onde realizamos nossa existência.
Cabe-nos fazer o mesmo para aqueles e aquelas que virão depois de nós, que herdarão o planeta que tivermos preparado para eles. Isso e uma questão de justiça.

Amanha, quando o sol nascer de novo com seu calor e vida;
As flores nos acolherem com suas variadas cores e perfumes;
Ouvirmos o canto dos pássaros e a brisa fresca beijando nosso peito;
Nossos lábios sorverem as águas puras da fonte enquanto contemplamos as verdes altas montanhas e o azul profundo dos oceanos;
Poderemos ouvir dos que virão depois de nós: "Obrigado pelo mundo que vocês prepararam para nós. Obrigado pelo planeta, qual jardim, que vocês nos legaram. Obrigado pelas sementes de vida que vocês plantaram para que pudéssemos colher seus abundantes frutos. Obrigado, muito obrigado."
Ou, depois de amanha, quando não mais houver amanhecer, mas apenas uma claridade enfumaçada, coberta por nuvens ácidas;
Quando nossa visão enfraquecida e nossos corpos se esvair em feridas purulentas provocadas pela radiação tóxica causada pelo enfraquecimento da camada de ozônio;
Quando, em vez de água, tivermos que beber um suco pastoso de coliformes fecais temperado com ingredientes químicos das mais nocivas origens;
Quando a paisagem se tornar um imenso deserto sem vida, sem a canção dos pássaros, sem a melodia de vozes humanas, porque ninguém mais terá ânimo para cantar e sim para gritar desesperadamente pelas dores lancinantes de ossos e músculos em decomposição;
E as mães, por amor, tiverem que abortar os filhos para que não sejam mais sofredores condenados a esse vale de lágrimas;
Ouviremos nossos filhos e netos, com dedo em riste apontando para nós, olhos esbugalhados, roendo palavras desconexas de ódio e rancor, gritarem: "Malditos, demônios, filhos das trevas e do mal, olhem para esse inferno para o qual fomos condenados. Vocês são os responsáveis pela desgraça que nos envolve, fazendo-nos desgraçados com elas."
Que mundo, que planeta legaremos para nossos filhos e netos? Isso é uma questão de justiça. Poderemos ser justos cumprindo nosso sagrado dever de zelar e cuidar dessa riqueza infinita que nos foi confiada, ou podemos ser profundamente injustos assumindo a postura irresponsável e inconsequente dos que apenas exploram e usufruem do tesouro de incomensurável valor que é a natureza, mãe da vida.
“Deus perdoa sempre, os seres humanos, de vez em quando, a natureza não perdoa nunca”. Se nós a agredirmos, mais cedo ou mais tarde ela dará sua resposta. A vida que hoje vivemos herdamos de nossos ancestrais. Nós estamos construindo o Planeta em que os que virão depois de nós nele viverão. A vida não se improvisa. Em cinco minutos colocamos no chão uma árvore centenária. Serão necessários mais cem anos para que tenhamos outra semelhante. Isso se tivermos o cuidado de plantar outra e cuidar, cuidar e cuidar.
É questão de consciência, de pertença. É questão de possuirmos ou não um sagrado senso de justiça. De ter a sensibilidade de saber compreender o direito que possuímos de viver em um mundo habitável com dignidade, e o dever de co-responsabilidade de preservá-lo para que outros também usufruam do mesmo bem. De saber que este planeta é nosso lar. Fazemos parte dele. Foi-nos entregue para nele viver, usufruir de seus bens e riquezas. Cuidar para que os bens nele presentes possam se perpetuar e para que as gerações futuras, como nós, também possam tê-lo cheio de vida. Como dizia nosso querido mestre Leonardo Boff: “cuidar é outro nome para o amor e a melhor forma de amar.” “Quem ama, cuida”. E justo que cuidemos do que é de todos. É justo que, no trato das coisas de todos, tenhamos o mesmo zelo como tratamos as nossas em particular.
O mesmo cuidado que a natureza tem para conosco, no sentido de prover, garantir e zelar pela nossa vida, assim também nós recebemos do Pai do Céu a missão de cuidar, prover e garantir a perpetuação dos bens e maravilhas criadas que fazem parte do nosso planeta, o Jardim do Éden. Ou, pela nossa decúria, transformá-lo no inferno de Dante, impossível de nele viver. Isso seria uma grande injustiça de nossa parte.
No último dia da criação, depois que tudo estava pronto, e o Senhor viu que “tudo era bom”, criou o homem e a mulher e lhes outorgou a missão de cuidado para com a obra criada. Fez-nos guardiões da natureza. Este é o sentido bíblico do “dominai a face da terra”. O termo “dominai” vem de latim “dominus” que significa “senhor”. Daí a palavra domingo, que significa “dia consagrado ao Senhor”. O dia do descanso. Como o pai cuida dos filhos, como a mãe é capaz de dar a própria vida pela vida dos filhos, assim também fomos constituídos senhores no sentido da paternidade de quem cuida, na maternidade de quem vela. Mas esta passagem belíssima do Gênesis foi entendida por nós dentro da ótica masculina do ser dono, do explorar, na violência do destruir, na ganância do lucrar, na vaidade do usufruir sem limites. Deturpamos o pensamento original do Criador e impusemos nossa visão dominadora, destruidora, violenta e desrespeitadora. Enquanto o Senhor tudo realizou dentro de um plano perfeito e harmônico, respeitoso e amoroso, e nisso manifestou a Justiça Divina, nós manifestamos a injustiça humana no entendimento e prática deturpada do pensamento do Senhor.
Chamamos para nós os atributos do Criador. Não somos os donos da criação. Somos apenas os seus zeladores e cuidadores.
O livro do Eclesiástico nos ensina: “Da terra Deus criou o ser humano e o formou à sua imagem. E à terra o faz voltar novamente, embora o tenha revestido de poder, semelhante ao seu. Concedeu-lhe dias contados e tempo determinado, dando-lhe autoridade sobre tudo o que há sobre a terra. Em todo ser vivo incutiu o medo do ser humano, fazendo-o dominar sobre as feras e os pássaros. Concedeu aos humanos discernimento, língua, olhos, ouvidos e um coração para pensar; encheu-os de inteligência e instrução. Deu-lhes ainda o conhecimento do espírito, encheu o seu coração de bom senso e mostrou-lhes o bem e o mal. Infundiu o seu temor em seus corações, mostrando-lhes as grandezas de suas obras. Concedeu-lhes que se gloriassem de suas maravilhas, louvassem o seu santo Nome e proclamassem as grandezas de suas obras. Concedeu-lhes ainda a instrução e entregou-lhes por herança a Lei da vida. Firmou com eles uma aliança eterna e mostrou-lhes sua justiça e seus julgamentos. Seus olhos viram as grandezas de sua glória e seus ouvidos ouviram a glória de sua voz. Ele lhes disse: Guardai-vos de tudo o que é injusto! E a cada um deu mandamentos em relação a seu próximo”.
O autor do quarto evangelho nos ensina, no capítulo dez de seu Evangelho, que o Senhor é o Bom Pastor. A justiça do Bom Pastor se manifesta no seu imenso amor e cuidado. O Bom Pastor é aquele que ama suas ovelhas, cuida de seu rebanho. Leva-o para as pastagens verdejantes e para os regatos de águas cristalinas. O Bom Pastor defende o rebanho dos inimigos, do lobo cruel e voraz. Está sempre atento para que nada de mal aconteça a nenhuma de suas ovelhas. Esse é o Bom Pastor. É capaz até, se preciso for, de dar a vida por suas ovelhas. Sacrificar-se por elas. Ser crucificado para “que tenham vida e a tenham em abundância”.
Essa é a herança espiritual daqueles e daquelas que assumem a missão de pastorear, de caminhar junto, mas na linha de frente do rebanho. Os seguidores do Bom Pastor recebem a mesma tarefa, a mesma ordenança, a mesma missão. A de serem justos como o Bom Pastor. Isso nos faz discípulos e missionários do Deus da Vida e da Justiça. Semeadores do bem e da paz. Testemunhas da justiça maior. Chamados a viver em uma ordem justa e fraterna. Fazer com que o leite e o mel continue escorrendo pelos favos da existência humana. Garantindo que todos, todos sem exceção, tenham o direito de uma vida saudável, ética, digna de ser vivida. Enfim, uma vida baseada na justiça. Essa é a vocação do pastor. Para isso ele foi chamado. E é isso que dá sentido e razão de ser para sua existência. A plenitude da realização do pastor é, à imagem do Bom Pastor, poder doar a própria vida pela vida de cada ovelha, de todo o rebanho. Para o pastor iluminado pelo Bom Pastor, o gastar-se é tornar-se mais rico, o doar-se é plenificação, o morrer é viver com abundância.
Mercenários existem muitos e muitas. Homens e mulheres injustas que se travestem de pastores, mas cujas intenções são maléficas. São lobos perigosos e vorazes que se aproveitam da simplicidade e carência do rebanho para fazer acontecer suas intenções sórdidas. Devagar o rebanho vai discernindo e sabendo diferenciar o bom pastor do mercenário. O justo do injusto. “Pelos frutos se conhece a árvore”. O tempo se encarrega de mostrar a verdade dos fatos e das reais intenções. “Não há nada oculto que não venha a ser revelado, não há nada escondido que mais cedo ou mais tarde não apareça”. As questões sociais nos permitem conhecer e distinguir o pastor do mercenário. Aqueles que realmente são justos e estão a serviço do rebanho e aqueles que são injustos e se aproveitam do rebanho para satisfazer seus próprios interesses.
É no entendimento e na consciência de nossa missão de pastores que se funda a capacidade de doarmos a vida. E isso se faz com a máxima alegria e generosidade. É no entendimento e na consciência do verdadeiro sentido da justiça que nos tornamos construtores do Reino de Deus.
O Rio São Francisco é o Pai e a Mãe de todo um povo. É o que garante a água que milhões de seres humanos bebem, comem do seu peixe e se alimentam dos frutos das terras banhadas por suas águas. O Rio São Francisco é o gerador de vida para uma imensidade de outras vidas. O “Velho Chico” não pode morrer. Da vida do “Velho Chico” depende a vida de milhões de outros seres.
Existem no Brasil rios ainda bem maiores que o São Francisco. Mas o que faz a diferença é o fato de percorrer o semi-árido brasileiro. Região de muita carência de chuvas. Águas temos com certa abundância, mas concentradas em alguns rios e na imensa rede de açudes existentes. Necessitamos urgentemente distribuir esta água concentrada para as populações difusas de todo o semi-árido. E isso é uma questão de justiça ambiental, pois a democratização da água é uma tarefa essencial para a manutenção da vida, pois ninguém pode ficar sem ela.
Se o Projeto de Transposição de Águas do Rio São Francisco tivesse como objetivo e meta a distribuição da água para as populações difusas, praticar a justiça ambiental e evangélica de “dar de beber a quem tem sede”, nós seríamos os primeiros a ser de acordo com o projeto. Apoiá-lo-íamos incondicionalmente. Mas a prioridade do Projeto de Transposição é a segurança hídrica em função dos grandes projetos agro­industriais. O uso econômico da água, antes de cumprir sua função essencial que é o dessedentamento humano e animal, faz o projeto tornar-se anti-ético e, portanto injusto, pois inverte as prioridades no uso da água.
O Rio São Francisco imita o santo de seu nome. O santo São Francisco nasceu de família abastada. Quando conheceu o sofrimento dos pobres de seu tempo, deixou toda a riqueza da família e foi para o meio dos pobres e dos pobres mais pobres que eram os leprosos. Dedicou toda a sua vida a eles. Encarnou o verdadeiro sentido e espírito da justiça humana. O Rio São Francisco nasce na Serra da Canastra, no sudoeste do estado de Minas Gerais, uma das regiões mais ricas do Brasil. Poderia tomar a direção do leste ou do sul, regiões igualmente ricas. Mas não, faz uma curva e se dirige para o nordeste. Coloca toda a sua potencialidade a serviço dos pobres do sertão brasileiro. É o rio que imita o santo de seu nome. O rio testemunha a justiça do seu santo padroeiro. Por isso dizemos, o Rio São Francisco é o pai e mãe de um povo. Aquele que supre suas necessidades essenciais, vitais.
Rio vivo — povo vivo.
Rio doente — povo doente.
Rio morto — morte de um povo.

Ser pastor nas barrancas do São Francisco é garantir vida e vida abundante aos barranqueiros. Vida abundante aos barranqueiros significa vida abundante ao “Velho Chico”. Diante das inúmeras agressões causadas ao nosso rio, agressões essas geradoras de doença e morte, o pastor não pode manter-se calado. E sua missão, é seu dever praticar a justiça, ser testemunha da justiça maior, erguer a voz, colocar suas forças no sentido de garantir vida ao rio, pois na vida do rio, a vida do povo. É por isso que, diante de todas as ameaças de morte causadas ao rio e ao povo, o pastor se levanta, grita bem alto, qual João Batista no deserto, arrisca a própria vida, pois “onde a razão se extingue, a loucura é o caminho”. Para salvar o Velho Chico, salvar a biodiversidade, salvar os povos ribeirinhos, salvar os seres humanos, salvar o planeta, salvar a vida, vale a pena doar a própria vida. Vale a pena morrer para que tenham vida e vida em abundância. E assim se cumpre toda a justiça.

[1] Bispo da Diocese de Barra, no Sertão da Bahia. www.umavidapelavida.com.brdcappio@yahoo.com.br
[2] Após o recebimento do prêmio Pax Christi, em outubro de 2008, o bispo da Diocese da Barra, D. Luiz Cappio, será homenageado mais uma vez. No dia 9 de maio de 2009, D. Cappio receberá na cidade de Freiburg, na Alemanha, o Prêmio Kant de Cidadão do Mundo, dado pela Fundação Kant. Essa é a terceira edição do prêmio que homenageia personalidades que se destacam pelo engajamento corajoso na defesa de grupos sociais marginalizados politicamente e socialmente, a favor dos direitos humanos e em defesa das bases sociais, naturais e culturais da vida. Idéias inspiradas na filosofia moral de Immanuel Kant.

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