quarta-feira, 29 de setembro de 2010

O medo e o terror não vencerão a esperança

As brasileiras e brasileiros estão no rumo de mais uma decisão democrática, popular e participativa que continuará tendo um sentido de construção de um processo instaurado pelo Presidente Lula no próximo domingo, 03 de outubro de 2010. Em 2002, a elite se unia para difamar Lula como analfabeto, como operário, como retirante, como aquele que levaria o país ao caos. Podemos lembrar a emblemática afirmação da atriz Regina Duarte no programa de José Serra, do PSDB, de que “tinha medo” do PT e de Lula. Uma típica demonstração de que estava a serviço da classe dominante, dos que defendiam o projeto neoliberal de desconstrução da soberania da nação.

Foram 500 anos de história contada e recontada no Brasil de barbárie, de etnocídio, de descaso com a “coisa pública”. Influenciados pelos aparelhos ideológicos da classe dominante, as pessoas tinham receio de mostrar que era possível outro tipo de governo, outra forma de governança pública. Por isso, em 2002, elegemos Lula como o primeiro Presidente da República que realmente viveu as mazelas da fome, do subemprego, da falta de oportunidades.

Evidentemente que o processo de ruptura começou nestes dois mandatos de Lula. Não podemos deixar de evidenciar as mudanças ocorridas, em especial, na área social. Mas, 500 anos de história não se muda em 8 anos. O governo Lula foi um recomeço da esperança que amordaçada ainda começou a dar sinais de vida diante dos muitos anos de medo e de terror implantados no imaginário coletivo do povo brasileiro. Podemos lembrar do medo e do terror que se fazia quando se falava de “comunistas” que eram definidos como “aqueles que matavam criancinhas inocentes” ou que “eles vão tomar a minha casinha”. A classe dominante em 500 anos conseguiu criar determinados imaginários que serviam aos interesses de perpetuação da elite no poder como se fossem “verdades” sagradas vindas do próprio Deus.

E, agora, mais uma vez, o confronto é visível. A raiva, a violência simbólica e real, o ódio, a destemperança e as mentiras contra a esperança se fazem presente no cenário político. A elite que sempre viveu às custas da desesperança, da exploração, do medo, do terror, da mentira, da violência, agora, volta a atacar. Os dois mandatos de Lula conseguiram destabiliza-los, tirando-lhes a paciência mórbida que sempre tiveram, já que era comum que os filhos da miséria votassem neles, pois sempre foram os “pais” para os que se encontravam na pobreza. Cuidar dos pobres era a intenção primordial da elite que teologicamente seguia os momentos de “dar esmolas” ao povo. Com Lula, um novo jeito de pensar o problema da pobreza se inicia. Não se trata de cuidar dos pobres e miseráveis, mas de tirá-los da condição em que se encontravam. Não se trata de “dar esmolas”, mas de promover políticas públicas que possibilitassem todos e todas terem acesso a educação de qualidade, saúde pública, ao emprego (foram mais de 14 milhões de empregos criados), entre outras tantas ações realizadas.

Daí a revolta da elite. Evidentemente que vemos alguns pequeno-burgueses (aqueles que são economicamente pobres, mas que defendem com unhas e dentes o pensamento da elite... são os que reproduzem o pensamento da classe dominante, mesmo sem ser classe dominante) ainda “revoltosos” reproduzirem discursos anacrônicos de Arnaldo Jabor e Cia Ltda da mídia. Eles são necessários para compor a massa de manobra que se coloca a serviço dos interesses dominantes. Por isso, são os primeiros a se revoltar com Lula, com Dilma e com o PT. São os primeiros a atacar. O referencial teórico que lhes dá subsistência é a Revista Veja e a Globo, reais representantes da mídia fascista brasileira. Falam de corrupção com a boca cheia, como se o problema tivesse iniciado no governo Lula e que o PT tivesse tido a proeza criacionista da corrupção. Por outro lado, ao mesmo tempo, caem num esquecimento mórbido de que no governo passado o Brasil foi leiloado pela política malfadonha do neoliberalismo, como por exemplo, a venda/doação da Vale do Rio Doce.

Estamos assistindo nestes últimos dias de campanha a um espetáculo digno das arenas romanas. Dilma é constantemente atacada. O ódio é tanto que inventam fatos para tentar tirar-lhe pontos e a possibilidade real de vitória no 1º Turno o que seria uma derrota histórica da elite. Mas, pela primeira vez na história, o resultado disso está servindo para mostrar aos antigos “donos do poder” que a população brasileira não engole tão facilmente esses discursos raivosos. Dilma se tornou a grande esperança de ser a primeira mulher a governar o Brasil seguindo os rumos já iniciados no governo Lula que se encontra com mais de 80% (ótimo e bom). A possibilidade de 2º turno é bem remota e isso é o que vem frustrando a dilacerada oposição que também tenta usar a imagem de Lula. É uma comédia, ver aqueles que sempre foram contrários do “analfabeto” Lula (o “analfa” que mais universidades federais fez na história do Brasil) mostrar sua imagem, seus feitos e ainda defendem a política de continuidade.

Dilma não é uma “analfa”, não foi “operária”, não é uma “retirante”, mas, para os discursos antagônicos da oposição, ela foi “terrorista” de guerrilha urbana, é a favor do “aborto”, é um “fantoche” de Lula, dentre outras. São esses os argumentos da elite? Quem realmente é o terrorista nesta história toda? Quem realmente quer continuar fazendo o Brasil crescer de forma sustentável? Eu tenho medo, um grande medo... O medo de ver novamente o Brasil sendo privatizado, do Brasil sendo desrespeitado internacionalmente, do Brasil perder o orgulho e de não termos a possibilidade de ascensão social com as políticas neoliberais que poderão novamente “doar” para o mercado uma empresa pública como a Petrobrás.

Poderia continuar minha reflexão, mas diante da falta de argumentos da elite apenas quero ressaltar uma questão que a história me fez acreditar, a saber: “O medo e o terror não vencerão a esperança”.

Claudemiro Godoy do Nascimento
Filósofo e Teólogo. Mestre em Educação/Unicamp. Doutor em Educação/UnB. Professor da Universidade Federal do Tocantins – UFT/Campus de Arraias e do Programa de Mestrado em Desenvolvimento Regional.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Continuar mudando, continuar acreditando...


Em 2004 escrevi um texto: A história de como dormi petista e acordei sem partido. Continuo sem partido oficial. Foram momentos internos de luta contra grupos que se instalaram dentro do PT e que proporcionaram escândalos e que negaram a história de luta de um partido popular. Por mais que tenha sido enfático nas críticas reconheço que estava errado. O PT não pode se resumir a determinadas figuras. O PT é maior que tudo isso. Tomei a decisão de retornar ao PT, pois até hoje não se apresentou um projeto político mais coerente do que este. A esquerda brasileira não tem a capacidade de se organizar em torno de um projeto unificado, acabam morrendo, haja vista os vários candidatos a presidência da esquerda, tais como: PSTU, PCO, PCB e PSOL. O PT, pelo contrário, percebeu que para governar e propor mudanças era preciso fazer alianças, mas quem determina as regras é o partido e a equipe de governo. Foi assim com Lula, será assim com Dilma.

Por isso, não poderia como militante e intelectual me negligenciar neste momento histórico da política brasileira onde, depois de um retirante e operário como Presidente, tem a oportunidade de eleger a primeira mulher Presidente do Brasil. Não há como negar os dois mandatos do governo Lula. Aliás, nem mesmo a oposição tem essa coragem. Não possuem coragem e nem fundamentação para contestar e comparar os anos de governo FHC e os anos do governo Lula. Aliás, uma oposição que a todo instante entra em contradições, que não tem programa de governo, que não tem projeto popular. Mas como posso querer que a oposição tenha projeto popular sendo que são eles os representantes da velha oligarquia rural e aristocracia urbana? “Sem chance” como diz sempre um velho amigo.

Como não sou positivista e, muito menos, weberiano como o sociólogo Fernando Henrique Cardoso e porque acredito que é possível fazer ciência com a prática, com o engajamento político e com uma visão de mundo comprometida com as causas populares, é que venho por meio destas pequenas e singelas palavras assumir minha opção por Dilma. Opção que acredita na força coletiva do voto popular. Por mais que tenhamos “Tiriricas” e “Malufs em São Paulo e em vários estados da federação, a população brasileira nos dá uma lição de consciência em não mais aceitar determinados candidatos que utilizam o cargo público para interesses particulares. Não podemos acreditar no velho discurso: “Eu voto na pessoa, não voto no partido”. Esse discurso tem contradições profundas e ideológicas que podemos desocultar. Toda pessoa representa uma ideologia, mesmo que ela diga que não tenha, a própria negação é um ato político e ideológico. As pessoas estão associadas ao partido que representa uma ideologia, que possui uma visão conjuntural de Estado e de mundo. Votar na pessoa significa votar no individuo que não presta conta de seus atos aos seus pares, votar na pessoa que tem um partido significa votar no coletivo que cobra esse representante a todo instante e o mesmo presta conta de seus atos. Não existe nada mais conservador do que este pensamento e precisamos mudar isso por meio de uma educação política. Mas, gostaria de apresentar os motivos que me levam a acreditar em Dilma, a saber:

Primeiro, Dilma significa a continuidade de um projeto político popular. Ela não é um factóide de Lula como destacam os sem destaque do PSDB e DEM. Pelo contrário, Dilma representa a imagem de um projeto político de poder que é necessário enquanto transição para termos uma sociedade possível, mais justa e igualitária.

Segundo, os outros candidatos não disseram por que estão pleiteando a Presidência da República. Caíram no factóide da denúncia sem provas e porque não dizer que armaram essas denúncias? A esquerda ortodoxa ainda não percebeu que para conseguirmos alcançar uma sociedade comunal precisamos da transição ao socialismo e a passagem do capitalismo selvagem do neoliberalismo para o socialismo também é necessário de uma transição. Transição que estamos começando a verificar no governo Lula, ou seja, “pela primeira vez na história desse país” estamos assistindo no plano real o que realmente é um “Estado de Bem-Estar Social”. Entre voltar ao neoliberalismo com a regulação do mercado, com as privatizações, com as novas Vales e/ou Telecomunicações sendo leiloadas a preço de banana, prefiro, democraticamente, optar politicamente pelo Estado de Bem-Estar Social de Lula e Dilma.

Terceiro, os índices são evidentes. O povo brasileiro jamais teve tanta esperança na mudança, na transformação real (Marx) e não mais ideal (Hegel). Podemos discordar nas questões pontuais com algumas atitudes do governo Lula, como, por exemplo: nas barragens de Xingu e na transposição do Rio São Francisco ou, então, no porque da não retomada da Vale do Rio Doce ao povo brasileiro. Mas, não podemos negar, milhões de brasileiros saíram dos porões da vida, da miséria. Hoje, possuem sonhos e esperanças. Há mais redistribuição de renda, ainda não é a que queremos, mas devemos aprender a respeitar a paciência histórica... e ela já chegou.

Quarto, o governo Lula representou um retorno da luta de classes. Haja vista as batalhas que travamos com os conservadores políticos do DEM, velhos representantes dos interesses agrários, hoje associados ao agronegócio e ao hidronegócio. Se o governo lhe dá algo com uma mão, lhes retira algo com duas ou três mãos, mas é preciso avançar neste bom combate. Trata-se de uma estratégia política, de que Estado queremos!

Ontem, no Programa Roda Viva, novamente vi e escutei o sociólogo Demétrio Magnoli que mais uma vez mostrou ocultamente suas posições contrárias ao atual governo. Mostrou seu rancor para com os movimentos negros e porque não estender a todos os movimentos sociais populares. Evidentemente que o respeito, (mas discordo radicalmente de suas posições unilaterais e ideológicas) enquanto intelectual orgânico das elites e da classe dominante, politicamente fracassada, com o candidato Serra, sem programa, sem conteúdo, sem nada. Ontem, acreditei que o século XXI nos reservará uma mudança histórica de luta contra as elites, os enganadores do povo, os representantes de uma elite... é o momento de enfraquecer ainda mais essa classe dominante.

Por fim, concordo com Leonardo Boff que afirmou em seu mais recente artigo e conclamo: é hora de consolidar a ruptura histórica operada pelo PT. Houve uma mudança e ela precisa dar continuidade. Por isso, Dilma representa essa continuidade que não se trata de continuísmo. O continuísmo tende a conservar os interesses de alguns, de uma pequena parcela da elite. A continuidade é um desejo popular, do povo, em querer caminhar rumo as transformações estruturais da sociedade brasileira. O Brasil quer seguir em frente na consolidação de uma ruptura histórica. São milhões de Lulas e de Dilmas, de homens e mulheres, acreditando sempre...

Claudemiro Godoy do Nascimento
Filósofo e Teólogo. Mestre em Educação/Unicamp. Doutor em Educação/UnB. Professor da Universidade Federal do Tocantins – UFT/Campus de Arraias e do Programa de Mestrado em Desenvolvimento Regional. E-mail: claugnas@uft.edu.br

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Consolidar a ruptura histórica operada pelo PT

Leonardo Boff*

Para mim o significado maior desta eleição é consolidar a ruptura que Lula e o PT instauraram na história política brasileira. Derrotaram as elites econômico-financeiras e seu braço ideológico, a grande imprensa comercial. Notoriamente, elas sempre mantiveram o povo à margem da cidadania, feito, na dura linguagem de nosso maior historiador mulato, Capistrano de Abreu, "capado e recapado, sangrado e ressangrado". Elas estiveram montadas no poder por quase 500 anos. Organizaram o Estado de tal forma que seus privilégios ficassem sempre salvaguradados. Por isso, segundo dados do Banco Mundial, são aquelas que, proporcionalmente, mais acumulam no mundo e se contam, política e socialmente, entre as mais atrasadas e insensíveis. São vinte mil famílias que, mais ou menos, controlam 46% de toda a riqueza nacional, sendo que 1% delas possui 44% de todas as terras. Não admira que estejamos entre os países mais desiguais do mundo, o que equivale dizer, um dos mais injustos e perversos do planeta.

Até a vitória de um filho da pobreza, Lula, a casa grande e a senzala constituíam os gonzos que sustentavam o mundo social das elites. A casa grande não permitia que a senzala descobrisse que a riqueza das elites fora construída com seu trabalho superexplorado, com seu sangue e suas vidas, feitas carvão no processo produtivo. Com alianças espertas, embaralhavam diferentemente as cartas para manter sempre o mesmo jogo e, gozadores, repetiam: "façamos nós a revolução antes que o povo a faça". E a revolução consistia em mudar um pouco para ficar tudo como antes. Destarte, abortavam a emergência de outro sujeito histórico de poder, capaz de ocupar a cena e inaugurar um tempo moderno e menos excludente. Entretanto, contra sua vontade, irromperam redes de movimentos sociais de resistência e de autonomia. Esse poder social se canalizou em poder político até conquistar o poder de Estado.

Escândalo dos escândalos para as mentes súcubas e alinhadas aos poderes mundiais: um operário, sobrevivente da grande tribulação, representante da cultura popular, um não educado academicamente na escola dos faraós, chegar ao poder central e devolver ao povo o sentimento de dignidade, de força histórica e de ser sujeito de uma democracia republicana, onde "a coisa pública", o social, a vida lascada do povo ganhasse centralidade. Na linha de Gandhi, Lula anunciou: "não vim para administrar, vim para cuidar; empresa eu administro, um povo vivo e sofrido eu cuido". Linguagem inaudita e instauradora de um novo tempo na política brasileira. O "Fome Zero", depois o "Bolsa Família", o "Crédito Consignado", o "Luz para Todos", o "Minha Casa, minha Vida, o "Agricultura familiar, o "Prouni", as "Escolas Profissionais", entre outras iniciativas sociais permitiram que a sociedade dos lascados conhecesse o que nunca as elites econômico-financeiras lhes permitiram: um salto de qualidade. Milhões passaram da miséria sofrida à pobreza digna e laboriosa e da pobreza para a classe média. Toda sociedade se mobilizou para melhor.

Mas essa derrota infligida às elites excludentes e anti-povo, deve ser consolidada nesta eleição por uma vitória convincente para que se configure um "não retorno definitivo" e elas percam a vergonha de se sentirem povo brasileiro assim como é e não como gostariam que fosse. Terminou o longo amanhecer.

Houve três olhares sobre o Brasil. Primeiro, foi visto a partir da praia: os índios assistindo a invasão de suas terras. Segundo, foi visto a partir das caravelas: os portugueses "descobrindo/encobrindo" o Brasil. O terceiro, o Brasil ousou ver-se a si mesmo e aí começou a invenção de uma república mestiça étnica e culturalmente que hoje somos. O Brasil enfrentou ainda quatro duras invasões: a colonização que dizimou os indígenas e introduziu a escravidão; a vinda dos povos novos, os emigrantes europeus que substituíram índios e escravos; a industrialização conservadora de substituição dos anos 30 do século passado mas que criou um vigoroso mercado interno e, por fim, a globalização econômico-financeira, inserindo-nos como sócios menores.

Face a esta história tortuosa, o Brasil se mostrou resiliente, quer dizer, enfrentou estas visões e intromissões, conseguindo dar a volta por cima e aprender de suas desgraças. Agora está colhendo os frutos.

Urge derrotar aquelas forças reacionárias que se escondem atrás do candidato da oposição. Não julgo a pessoa, coisa de Deus, mas o que representa como ator social. Celso Furtado, nosso melhor pensador em economia, morreu deixando uma advertência, título de seu livro A construção interrompida (1993): "Trata-se de saber se temos um futuro como nação que conta no devir humano. Ou se prevalecerão as forças que se empenham em interromper o nosso processo histórico de formação de um Estado-Nação" (p.35). Estas não podem prevalecer. Temos condições de completar a construção do Brasil, derrotando-as com Lula e as forças que realizarão o sonho de Celso Furtado e o nosso.

Leonardo Boff é teólogo, filósofo e escritor.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Pelo limite da propriedade da terra



Dom Pedro Casaldáliga
Bispo Emérito de São Félix do Araguaia

Um santo profeta de antigamente dizia que Deus criou o Universo e o diabo inventou a propriedade. "A Terra é de Deus e Ela dá a todos", repete o povo. Nos quatro primeiros séculos da Igreja cristã, muitas vozes proféticas condenaram o pecado do lucro, da acumulação, da absolutização da propriedade. Seguiam o exemplo de Jesus, tão explicito frente ao dinheiro e a acumulação. Ele nos ensinou que o Pai é "nosso" e que o pão deve ser "nosso". Ele próprio se faz partilha e comunhão.

Depois dessa primeira época, banhada em sangue mártir, a Igreja de Jesus tem cometido muitas alianças espúrias com o dinheiro e o poder. Lamentavelmente ela tem ajudado com palavras, com feitos e com estruturas, a fazer da propriedade um direito "sagrado". Também ela tem ajudado, muitas vezes, a condenar a propriedade absoluta e a reivindicar a hipoteca social que pesa sobre toda a propriedade.

A propriedade é um direito e também um dever. A propriedade capitalista, por definição, acumula e exclui, justifica a fome, a miséria, a depredação e o ecocídio, o armamentismo e as guerras...

Frente à propriedade absoluta, há tempo que vêm surgindo vozes e ações de protesto, de revolta, de propostas justas e alternativas. Concretamente no nosso Brasil (e em toda nossa América). Este Brasil, que poderia ser uma benção, ocupa o segundo lugar mundial na concentração da propriedade fundiária. É campeão em latifúndio e em desigualdade social.

Está na hora de condenar o latifúndio como uma iniquidade. Está na hora de fazer da reforma agrária uma realidade e não mais um sarcasmo de promessas e subterfúgios. Proclamamos, com indignação e com esperança, que é possível, necessário e urgente acabar com o latifúndio. Todo latifúndio é injusto. E só se fará justiça ao povo do campo com uma reforma agrária e agrícola de terra distribuída e estabelecidos os limites máximos de toda propriedade.

Estamos em campanha por um outro modelo para o campo brasileiro. Atualizaremos e radicalizaremos uma autêntica revolução no campo. Pelo Deus da vida e da Terra. Militantes e mártires, que vêm dando seu suor e seu sangue, nos comprometem e nos acompanham. Exigimos do Congresso e do Judiciário o cumprimento da Constituição que dispõe que "a propriedade atenderá sua função social".

Queremos fazer do Fórum Nacional pela Reforma Agrária e Justiça no Campo um Fórum permanente e verdadeiramente nacional. E, concretizando nossa luta e reivindicação, assumimos, com a teimosia que for necessária, e em união com todas as forças vivas, a Campanha pelo Limite da Propriedade da Terra.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Plebiscito pelo limite da Terra

Frei Betto*

Adital - Entre 1 e 7 de setembro o Fórum Nacional da Reforma Agrária e Justiça no Campo promoverá, em todo o Brasil, o plebiscito pelo limite da propriedade rural. Mais de 50 entidades que integram o Fórum farão da Semana da Pátria e do Grito dos Excluídos, celebrado todo 7 de setembro, um momento de clamor pela reforma fundiária em nosso país.

Vivem hoje na zona rural brasileira cerca de 30 milhões de pessoas, pouco mais de 16% da população do país. O Brasil apresenta um dos maiores índices de concentração fundiária do mundo: quase 50% das propriedades rurais têm menos de 10 ha (hectares) e ocupam apenas 2,36% da área do país. E menos de 1% das propriedades rurais (46.911) têm área acima de 1 mil ha cada e ocupam 44% do território (IBGE 2006).

As propriedades com mais de 2.500 ha são apenas 15.012 e ocupam 98,5 milhões de ha: 28 milhões de hectares a mais do que quase 4,5 milhões de propriedades rurais com menos de 100 ha.

Diante deste quadro de grave desigualdade, não se pode admitir que imensas propriedades rurais possam pertencer a um único dono, impedindo o acesso democrático à terra, que é um bem natural, coletivo, porém limitado.

O objetivo do plebiscito é demonstrar ao Congresso Nacional que o povo brasileiro deseja que se inclua na Constituição um novo inciso limitando a propriedade da terra - princípio adotado por vários países capitalistas - a 35 módulos fiscais. Áreas acima disso seriam incorporadas ao patrimônio público e destinadas à reforma agrária.

O módulo fiscal serve de parâmetro para classificar o tamanho de uma propriedade rural, segundo a lei 8.629 de 25/02/93. Um módulo fiscal pode variar de 5 a 110 ha, dependendo do município e das condições de solo, relevo, acesso etc.. É considerada pequena propriedade o imóvel com o máximo de quatro módulos fiscais; média, 15; e grande, acima de 15 módulos fiscais.

Um limite de 35 módulos fiscais equivale a uma área entre 175 ha (caso de imóveis próximos a capitais) e 3.500 ha (como na região amazônica). Apenas 50 mil entre as cinco milhões de propriedades rurais existentes no Brasil se enquadram neste limite. Ou seja, 4,950 milhões de propriedades têm menos de 35 módulos fiscais.

O tema foi enfatizado pela Campanha da Fraternidade 2010, promovida pela CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil). Todos os dados indicam que a concentração fundiária expulsa famílias do campo, multiplica o número de favelas e a violência nos centros urbanos. Mais de 11 milhões de famílias vivem, hoje, em favelas, cortiços ou áreas de risco.

Nos últimos 25 anos, 1.546 trabalhadores rurais foram assassinados no Brasil; 422 presos; 2.709 famílias expulsas de suas terras; 13.815 famílias despejadas; e 92.290 famílias envolvidas em conflitos por terra! Foram registradas ainda 2.438 ocorrências de trabalho escravo, com 163 mil trabalhadores escravizados.

Desde 1993, o Grupo Móvel do Ministério do Trabalho libertou 33.789 escravos. De 1.163 ocorrências de assassinatos, apenas 85 foram a julgamento, com a condenação de 20 mandantes e 71 executores. Dos mandantes, somente um se encontra preso, Vitalmiro Bastos de Moura, o Bida, um dos mandantes da eliminação da irmã Dorothy Stang, em 2005.

Tanto o plebiscito quanto o abaixo-assinado visam a aprovar a proposta de emenda constitucional (PEC 438) que determina o confisco de propriedades onde se pratica trabalho escravo, bem como limites à propriedade rural. As propriedades confiscadas seriam destinadas à reforma agrária.

Embora o lobby do latifúndio apregoe as "maravilhas" do agronegócio, quase todo voltado à exportação e não ao mercado interno, a maior parte dos alimentos da mesa do brasileiro provém da agricultura familiar. Ela é responsável por toda a produção de verduras; 87% da mandioca; 70% do feijão; 59% dos suínos; 58% do leite; 50% das aves; 46% do milho; 38% do café; 21% do trigo.

A pequena propriedade rural emprega 74,4% das pessoas que trabalham no campo. O agronegócio, apenas 25,6%. Enquanto a pequena propriedade ocupa 15 pessoas por cada 100 ha, o agronegócio, que dispõe de tecnologia avançada, somente 1,7 pessoas.

Mais informações e para assinar abaixo-assinado: www.limitedaterra.org.br/

[Autor de "Diário de Fernando - nos cárceres da ditadura militar brasileira" (Rocco), entre outros livros. www.freibetto.org -Twitter:@freibetto

Copyright 2010 - FREI BETTO - Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização do autor. Assine todos os artigos do escritor e os receberá diretamente em seu e-mail. Contato - MHPAL - Agência Literária (mhpal@terra.com.br)
* Escritor e assessor de movimentos sociais

sábado, 14 de agosto de 2010

Charles de Foucauld


J. B. Libanio*

Adital - Toda conversão fascina. Ainda criança, Charles de Foucauld perde bem cedo os pais. Aristocrata e rico, esbanja a fortuna em vida desregrada. Tudo anunciava um final perdido. Militar e aventureiro pela Argélia. A graça bate-lhe com força. Experimenta a severa vida de trapista. O sino o arranca de madrugada da cama para rezar. Envolvido todo o dia pelo silêncio, alterna oração e trabalho, contemplação e ação. Mas o Espírito não o queria lá. Inquietava-o em busca de algo diferente, original. De novo na Argélia, vive a solidão. Enfrenta a rudeza dos desertos. Tudo nele soava gratuidade. Nem sequer pregava o evangelho na explicitação da fé cristã. Preferia ser o evangelho vivo, encarnado na pessoa, nos gestos, nas ações a anunciá-lo em palavras. Tão diferente de missionários europeus, que saiam de seus países convencidos de que só eles tinham a verdade e atropelavam todas as outras culturas, impingindo-lhas a própria como se só nela o evangelho se encarnasse.

Depois dele, arrancado da vida de maneira violenta por fanáticos, vieram os irmãos e as irmãzinhas para perpetuar-lhe o espírito de serviço livre, despretensioso e de pura gratuidade.

A experiência de Deus explodiu tão forte dentro dele que depois dela já não sabia viver sem ser para Ele. Despojou-se, diria Paulo, do homem velho que vivera na fase francesa. Agora lhe habitava o homem novo. Ele o lapidou na espiritualidade do Jesus de Nazaré. No físico do lugar e no espírito de Jesus camponês e artesão, ele aprendeu a ser pobre, viver como pobre e junto aos pobres. Nada mais do que isso. As ambições maiores ficavam para outros. Ele não sabia outra coisa que, de novo como Paulo, senão viver como Jesus no serviço humilde, desprendido. O anúncio fazia antes pela vida que pelos discursos.

Arrisca a vida no meio de muçulmanos sem outra pretensão que estar lá. E se alguém se espantasse daquela vida despojada, humilde, pobre e servidora e lhe perguntasse pelo segredo, então sim, falaria de Jesus. Até lá guardava no interior o mistério do nazareno como pérola a não ser lançada na publicidade vazia, como se faz tanto hoje. Entre o Jesus publicado nos tetos ao calado durante 30 anos em Nazaré, preferiu a este. E impregnou a espiritualidade desse silêncio meditativo e de serviço pobre.

Pelos evangelhos apenas sabemos algo sobre a vida de Nazaré. Foucauld não se contentou com tal escassez. Os místicos descobrem maravilhas para além dos escritos. E transmitiu experiência tão forte que até hoje os seus seguidores nos encantam pela autenticidade de vida, de entrega, de simplicidade, de coragem evangélica. A espiritualidade de Foucauld se expande para além dos membros da Fraternidade e se faz alimento para tantos e tantos cristãos. Nela transparece tal evangelismo que apenas acreditamos que exista num mundo repleto de ruídos, banalidades, vulgaridades e exterioridades. Nela reinam o silêncio, a profundidade, a essencialidade e a interioridade.

[Confira também de JB Libanio: Deus e os homens: os seus caminhos. Vozes, 1990. http://www.jblibanio.com.br/].

* Padre jesuíta, escritor e teólogo. Ensina na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), em Belo Horizonte, e é vice-pároco em Vespasiano.

domingo, 8 de agosto de 2010

Congresso absolve MST


Frei Betto
Correio Braziliense, Sexta-feira, 30 de julho de 2010,k p. 15.

O MST jamais desviou dinheiro público para realizar ocupações de terra — eis a conclusão da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito(CPMI), integrada por deputados federais e senadores, instaurada para apurar se havia fundamento nas acusações, orquestradas pelos senhores do latifúndio, de que os movimentos comprometidos com a reforma agrária se apoderaram de recursos oficiais.

Em oito meses, foram convocadas 13 audiências públicas. As contas de dezenas de cooperativas de agricultores e associações de apoio à reforma agrária foram exaustivamente vasculhadas. Nada foi apurado. Segundo o relator, o deputado federal Jilmar Tatto (PT-SP), “foi uma CPMI desnecessária”.

Não tão desnecessária assim, pois provou, oficialmente, que as denúncias da bancada ruralista no Congresso são infundadas. E constatou-se que entidades e movimentos voltados à reforma fundiária desenvolvem sério trabalho de aperfeiçoamento da agricultura familiar e qualificação técnica dos agricultores.

O que os denunciantes buscavam era reaquecer a velha política — descartada pelo governo Lula — de criminalizar os movimentos sociais brasileiros. Esse tipo de terrorismo tupiniquim a história de nosso país conhece bem: Monteiro Lobato foi preso por propagar que havia petróleo no Brasil (o que prejudicou os interesses norte-americanos); foram chamados de comunistas os que defendiam a criação da Petrobras; e, de terroristas, os que lutavam contra a ditadura e pela redemocratização do país.

A comissão parlamentar significou, para quem insistiu em instaurá-la, um tiro saído pela culatra. Ficou claro para deputados e senadores bem intencionados que é preciso votar, o quanto antes, o projeto de lei que prevê a desapropriação de propriedades rurais que utilizam trabalho escravo em suas terras. E resolver, o quanto antes, a questão dos índices de produtividade da terra.

A investigação trouxe à luz não a suposta bandidagem do MST e congêneres, como acusavam os senhores do latifúndio, e sim a importância desses movimentos no atendimento à população sem terra. Eles cuidam da organização de acampamentos e assentamentos e, assim, evitam a migração que reforça, nas cidades, o cinturão de favelas e o contingente de famílias e pessoas desamparadas, sujeitas ao trabalho informal, ao alcoolismo, às drogas, à criminalidade.

Segundo Jilmar Tatto, os inimigos da reforma agrária “fizeram toda uma carga, um discurso muito raivoso, colocaram dúvidas em relação ao desvio de recursos públicos e perceberam que a montanha tinha parido um rato. Porque não havia desvio nenhum. As entidades e o governo abriram todas as suas contas. Foram transparentes e, em nenhum momento, conseguiu-se identificar um centavo de desvio de recurso público. Foram desmoralizados (os denunciantes), e resolveram se ausentar dos trabalhos da CPMI. (...) Foi um trabalho produtivo, no sentido de deixar claro que não houve desvio de recurso público para fazer ocupação de terras no Brasil. O que houve foi a oposição fazendo uma carga muito grande contra o governo e o MST”.

Os parlamentares sensíveis à questão social no Brasil se convenceram, graças ao trabalho da comissão, de que é preciso aumentar os recursos para a agricultura familiar; garantir que a legislação trabalhista seja aplicada na zona rural; e incentivar sempre mais os plantios alternativos e os alimentos orgânicos, sobre cuja qualidade nutricional não paira a desconfiança que pesa sobre os transgênicos. E, sobretudo, intensificar a reforma agrária no país, desapropriando, como exige a Constituição, as terras improdutivas.

Dados recentes mostram que, no Brasil, se ocupam 3 milhões de hectares com a lavoura de arroz e 4,3 milhões com feijão. Segundo o geógrafo Ricardo Alvarez, se compararmos com os 851 milhões de hectares que formam este colosso chamado Brasil veremos que as cifras são raquíticas. Apenas 0,85% do território nacional está ocupado com o cereal e a leguminosa. Um aumento de apenas 20% na área plantada significaria passar de 7,3 para 8,7 milhões de hectares, com forte impacto na alimentação do povo brasileiro.

Para Alvarez, o aumento da produção levaria à queda de preços, ruim para o produtor, bom para os consumidores. Caberia, então, ao governo implantar uma política de ampliação da produção de alimentos, garantir preços mínimos, forçar a ocupação da terra, combater o latifúndio, gerar empregos no campo e atacar a fome. Ação muito mais eficiente, graças aos 20% de acréscimo na área plantada, do que o assistencialismo alimentar.

O latifúndio ocupa, hoje, mais de 20 milhões de hectares com soja. No início dos anos 1990, o número beirava os 11,5 milhões. A cana-de-açúcar foi de 4,2 para 6,5 milhões de hectares no mesmo período. Arroz e feijão sofreram redução da área plantada. Hoje o brasileiro consome mais massas do que a tradicional combinação de arroz e feijão, de grande valor nutritivo.

Alvarez conclui: “Não faltam terras no Brasil, faltam políticas de distribuição delas. Não faltam empregos, falta vontade de enfrentar a terra improdutiva. Não falta comida, falta direcionar a produção para atender as necessidades básicas de nossa população”.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Água como mercadoria


Frei Betto*

Adital – O capitalismo mercantiliza os bens da natureza, os frutos do trabalho humano, todos os aspectos de nossa vida. Aprendemos na escola: 71% de nosso corpo são água, a mesma proporção existente em nosso planeta.

Bebemos litros de água no decorrer do dia. Do velho e bom filtro? Não. Em geral, de garrafas pet vendidas em supermercados. Quem garante que a água engarrafada é mais potável que a filtrada em casa? A propaganda; ela faz nossa cabeça e direciona nossos hábitos.

De olho no faturamento, empresas transnacionais procuram incutir na opinião pública a ideia da água como mercadoria de grande valor econômico, capaz de tornar-se uma fonte de renda para um país como o Brasil. Retira-se da água sua dimensão de direito humano, seu caráter vital, sua dimensão sagrada. Quem se opõe a esta ideologia é rotulado como "contrário ao progresso". Porém, é na defesa da água como direito e bem comum que reside a possibilidade de salvarmos o planeta Terra - "Planeta-Água" - da desolação, e assegurarmos a vida das gerações futuras.

O raciocínio da mercantilização da água é simples: tendo que pagar, a sua utilização será mais racional e cuidadosa. Ora, isso não implica incluir a água na categoria de mercadoria regida pelas leis do mercado.

Este argumento tem sua parte de verdade - cuida-se melhor daquilo que é mais caro. As consequências, porém, podem ser graves se a água for regida pela lei da oferta e da procura. A cobrança pelo uso da água pode ser um mecanismo de gerenciamento desde que se estabeleçam preços diferenciados conforme a concessão de uso. Uma fábrica de cerveja retira do poço artesiano toda água que necessita, sem pagar nada por ela. Depois descarrega parte dessa água, agora poluída por detergentes e dejetos, no rio mais próximo. O lucro com a venda da cerveja é todo dela; a perda no lençol subterrâneo e a poluição do rio são da comunidade local.

Uma boa gestão cobraria preço baixo pela água usada como insumo e alto sobre o esgoto industrial, de modo a obrigar a indústria a filtrar dejetos antes de lançá-los de volta ao rio. Também é preciso estabelecer preços diferenciados conforme o uso da água (consumo humano, esgoto, energia elétrica, produção industrial, agricultura irrigada, lazer etc).

Nas zonas urbanas já pagamos pelos serviços de captação, tratamento e distribuição da água, não pela água em si. A novidade é que, além dos serviços, deveremos pagar também pelo metro cúbico de água utilizada. Se este preço adicional vier a excluir alguém do acesso à água, tal medida será eticamente inaceitável.

O princípio que obriga a quem usa, pagar, não pode ser aceito ao contrário: "quem não paga, não usa." Não sendo a água uma mercadoria, mas bem de domínio público, o princípio só se aplica como norma reguladora de uso, seja quantitativa (quem usa mais água, paga mais), seja qualitativamente (quem usa para fins lucrativos paga mais do que quem usa para consumo pessoal). Se assim não for, a água deixará de ser direito de todos os seres vivos, criando-se um impasse ético e uma tragédia: a dos excluídos da água.


* Escritor e assessor de movimentos sociais
[Autor, em parceria com Marcelo Barros, de "O amor fecunda o Universo - ecologia e espiritualidade" (Agir), entre outros livros. www.freibetto.org - twitter@freibetto
Copyright 2010 - FREI BETTO - Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização do autor. Assine todos os artigos do escritor e os receberá diretamente em seu e-mail. Contato - MHPAL - Agência Literária (mhpal@terra.com.br)].

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Limitar ou não a propriedade da terra no Brasil?


Pe. Carlos C. Santos*

Adital – Não há como não reconhecer que a injusta distribuição da terra é das causas principais de outros inúmeros problemas sociais graves (crescimento da pobreza na cidade e no campo, exclusão, fome, violência, morte etc.) que atormentam e desafiam o conjunto da sociedade brasileira.

A história já demonstrou que a propriedade de terra no Brasil é imoral. A terra aqui não cumpre sua função social porque não é repartida entre os que nela querem e precisam trabalhar, e garantir a soberania alimentar. Ao contrário, está concentrada nas mãos de um número, cada vez menor, de grandes proprietários ou empresas privadas, que dela usam e abusam sem nenhum senso de corresponsabilidade coletiva, com fins meramente lucrativos, obedecendo a uma lógica radicada na ganância. Uma das estatísticas sobre o assunto estabelece essa desproporcionalidade ao demonstrar que, dos 190 milhões de brasileiros, apenas 40 mil acumulam a metade de todas as terras!

Na origem desta tragédia encontra-se o modelo econômico atual que continua exclusivo e excludente, centralizado e subordinado aos interesses do capital financeiro internacional. Prova disso é que, entre as muitas promessas de campanha do Presidente Lula, a da Reforma Agrária é mais uma das que não foi cumprida, mantendo o país na iníqua posição de latifundiário.

Esta concentração da terra contribui ainda para agravar sempre mais os conflitos no campo, onde os sem terra - nomeadamente o MST - continuam sendo o ‘bode expiatório’ da ideologia dos que legislam em causa própria, da mídia comprada e vendida, do aparato policial e do poder estatal que persegue os pequenos e fracos, mas deixa impune ‘as mãos assassinas do latifúndio’.

Não estará na hora, ou até passando da hora, de colocar-nos diante de uma questão mais séria e responsável, qual seja: A distribuição injusta da terra é problema que diz respeito apenas aos sem terra, ao homem e mulher do campo ou, ao contrário, é um desafio ‘nosso’, que envolve e compromete também a cidade e toda a sociedade brasileira? Afinal, se a terra não for repartida com equidade, estruturada e humanizada, para que possa produzir com eficácia todas as riquezas que alimentam a vida humana e ecológica, de onde virá o sustento da cidade e da sociedade no seu conjunto?

Para que o Povo brasileiro possa dar sua opinião e manifestar sua vontade sobre este assunto que, como vemos, é de vital importância para todos, será realizado o Plebiscito Popular pelo limite da propriedade da terra, articulado pelo FNRA - Fórum Nacional pela Reforma Agrária e Justiça no Campo, durante a Semana da Pátria, de 01 a 07 de setembro, junto com o 16º Grito dos Excluídos.

Para o Povo cristão o Plebiscito se reveste de um sentido genuinamente evangélico, uma vez que a iniciativa é um dos gestos concretos da Campanha da Fraternidade Ecumênica 2010, que tem como lema: ‘Vocês não podem servir a Deus e ao dinheiro’ (Mt 6,24). Servir a Deus é também reconhecer que desde sempre, suas mãos benevolentes destinaram a terra a todos, para que fosse repartida com igualdade, gerando todos os bens para o Bem Comum, e não a uma minoria privilegiada que concentra e acumula para garantir seus próprios e espúrios interesses. O Plebiscito conta com o apoio da CNBB.

‘Pelo direito à terra e à soberania alimentar, vamos às urnas mostrar nosso poder popular!’

Se preferir, você pode votar online (http://www.abaixoassinado.org/abaixoassinados/6322), lembrando que, ao escolher esta opção, não poderá votar uma segunda vez por meio impresso.


* Presbítero e assessor das CEBs

domingo, 25 de julho de 2010

Um outro jeito de ser Igreja

Leonardo Boff*

Adital - Quem leu meu último artigo -Onde está a verdadeira crise da Igreja - poderá ter ficado desesperançado. Ai analisei a estrutura de poder da Igreja, centralizada, piramidal, absolutista e monárquica. Este tipo de poder não favorece o ideal evangélico de igualdade, de fraternidade e a participação dos fiéis. Antes fecha as portas à participação e ao amor. É que esse tipo de poder, por sua natureza, precisa ser forte e frio. O modelo de Igreja-poder se apresenta como a Igreja tout court, pior ainda, como querida por Cristo, quando, como mostrei, surgiu historicamente e é apenas sua instância de animação e direção, perfazendo menos de 0,1% de todos os fiéis. Portanto, não é toda a Igreja, apenas uma parte mínima dela.

Mas a Igreja-comunidade como fenômeno religioso e movimento de Jesus é muito mais que a instituição. Ela encontra outras formas de organização, bem mais próximas ao sonho do Fundador e de seus primeiros seguidores. Inteligentemente, os bispos brasileiros em sua reunião anual em Brasília de 4-13 de janeiro do corrente ano confessaram: "só uma Igreja com diferentes jeitos de viver a mesma fé será capaz de dialogar relevantemente com a sociedade contemporânea". Com isso eles quebraram a pretensão de um único modo de ser, aquele da Tradição do poder. Sem negar este, há muitos outros jeitos: o jeito da Igreja da libertação, dos carismáticos, dos religiosos e religiosas, da Ação Católica, até da Opus Dei, da Comunhão e Libertação e da Canção Nova, só para dizer as mais conhecidas.

Mas há um jeito que é todo especial e altamente promissor, nascido nos anos 50 do século passado no Brasil e que ganhou relevância mundial, pois foi assimilado em muitos países: as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Os bispos lhe dedicaram uma animadora "Mensagem ao Povo de Deus sobre as CEBs". Curiosamente, elas surgiram no momento em que eclodiu no Brasil uma nova consciência histórica. Na sociedade: o sujeito popular ansiando por mais participação política e na Igreja: o sujeito eclesial, ansiando também por mais participação e corresponsabilidade eclesial. As CEBs constituem outro modo de ser Igreja, cujo sujeito principal, mas não exclusivo, são os pobres. Seu estilo é comunitário, participativo e inserido na cultura local. Os serviços são rotativos e a escolha, democrática. Articulam continuamente fé e vida, ativos no campo religioso, criando novos serviços e ritos e ativos no campo social ou político, nos sindicatos, nos movimentos sociais como no MST ou nos partidos populares.

Não sabemos exatamente quantas são, mas calcula-se que cheguem a cem mil comunidades de base, envolvendo alguns milhões de cristãos. Os bispos constatam seu alto valor inovador e anti-sistêmico. O mercado expulsou as relações de cooperação e solidariedade enquanto nas CEBs se vive as relações fundadas na gratuidade, na lógica do oferecer-receber-retribuir. Elas assumiram a causa ecológica, por isso, se entendem também como CEBs = comunidades ecológicas de base. Desenvolveram uma forte espiritualidade do cuidado para com a vida e para com a Mãe Terra. Dai resultou mais respeito, veneração e cooperação com tudo o que existe e vive.

As CEBs mostram como a memória sagrada de Jesus pode receber outra configuração social, centrada na comunhão, no amor fraterno e na alegria de testemunhar a vitória da vida contra as opressões. É o significado existencial da ressurreição de Jesus como insurreição contra o tipo de mundo vigente.

Humildemente os bispos testemunham que elas ajudam a Igreja a estar mais comprometida com a vida e com o sofrimento dos pobres. Mais ainda: interpelam a Igreja inteira chamando-a à conversão, ao compromisso para a transformação do mundo em mundo de irmãos e irmãs.

Esse modo de ser Igreja pode servir de modelo para a inserção na cultura contemporânea, urbana e globalizada. Se fosse assumido como inspiração para o projeto do Papa Bento XVI de "reconquistar" a Europa, seguramente teria algum sucesso. Ver-se-iam comunidades de cristãos, intelectuais, operários, mulheres, jovens, vivendo sua fé em articulação com os desafios de suas situações. Não pretenderiam ter o monopólio da verdade e do caminho certo. Mas se associariam a todos os que buscam seriamente uma nova linguagem religiosa e um novo horizonte de esperança para a Humanidade.


* Teólogo, filósofo e escritor
[Autor de Eclesiogênese: a reinvenção da Igreja, Record (2008)].

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Carta da 14ª Romaria das Águas e da Terra de Minas Gerais


O Senhor não rejeita o seu povo, jamais abandona a sua herança; o justo alcançará seu direito, e os corações retos terão futuro. (Sl 93,14-15)

Motivados e encorajados pela fé e pela sabedoria do povo bíblico, povo que Deus se alia, dando-lhe esperança de justiça e vida, é que nós,

Romeiras e Romeiros da 14ª Romaria das Águas e da Terra, a partir da diocese de Januária, do chão Norte Mineiro, no ressoar dos batuques quilombolas, dos maracás indígenas, das sanfonas e violas camponesas, ecoamos um só grito de dor e de esperança para atingir os ouvidos de todo o povo de Minas Gerais, do Brasil e do Mundo!

Muitos dias de labutas antecederam a nossa grande caminhada celebrativa. Mais de 80 missionários aprofundando o tema acima citado e o lema: “Nas terras e águas dos gerais, a memória da resistência de nossos ancestrais” reuniram, estudaram, refletiram e visitaram comunidades rurais e urbanas. Num mutirão de fé ativa e comprometida com a defesa da mãe-terra acolhemos e compartilhamos clamores, compromissos e histórias de resistência!

As experiências compartilhadas subsidiaram a nossa grande celebração, mas também as denuncias e anúncios que aqui externamos! Vimos, ouvimos, experienciamos... e agora ecoamos!

Eu vi a miséria do meu povo... Ouvi o seu clamor contra os opressores. Conheço os seus sofrimentos. Por isso, desci para libertá-lo e fazê-lo subir para uma terra fértil... (Ex. 3, 7-9).

Foram as ilhas e as margens do rio São Francisco e seus afluentes que, desde o princípio da história, acolheram milhares de vazanteiros, pescadores, indígenas e quilombolas que ali plantam roças, pescam e resistem às pressões dos coronéis, latifúndios e falsos projetos de desenvolvimento. Ao longo destes rios, agricultores familiares constituíram suas famílias, tirando dali o seu sustento, abastecendo até hoje com mantimentos os povos das cidades.

Às margens do São Francisco o povo indígena Xakriabá, através da sua resistência e luta, resgatou um terço de suas terras para os 9 mil indígenas que hoje vivem em 32 comunidades, administrando o município de São João das Missões, MG. Nesse processo de resistência, o índio Rosalino e o índio Manuel Fiuza, foram assassinados em 1987, porque estavam defendendo a sua terra mãe.

Em 1984, Elói Ferreira foi barbaramente assassinado, porque defendia os camponeses da ganância do Latifúndio. Ainda hoje 17 áreas de latifúndios foram ocupadas por trabalhadores sem terra e 19 áreas foram conquistadas onde estão assentadas 1004 familias. As 06 comunidades do rio dos Cochos já recuperaram 16 nascentes, diversos camponeses da região resgatam e produzem sementes crioulas e praticam agroecologia.

O Norte mineiro historicamente vem sendo devastado e destruído pelo interesse das empresas do agronegócio e das mineradoras. O cerrado e a caatinga derrubados para a implantação dos grandes projetos como o Jaíba, Chapada Gaúcha e o projeto do Gurutuba forneceram carvão para a produção de ferro guza. Essa agricultura moderna que polui as águas dos rios é uma grande consumidora do pacote tecnológico das empresas transnacionais. Mineradoras, como a Votorantim Metais, de Três Marias, por 14 anos, despejou seus rejeitos diretamente no Rio e continua contaminando suas águas com metais pesados. A falta de tratamento do esgoto das cidades causa uma enorme poluição. A política do atual governo de construção de rede de esgoto nas cidades ribeirinhas não passa de um verdadeiro engodo. Primeiro porque o esgoto não é tratado, o sistema apenas separa o sólido e a água é jogada diretamente no Rio sem nenhum tratamento. E essas obras estão sendo feitas para justificar a transposição, que não passa de uma grande mentira, “uma falsa solução para um falso problema”.

Diante de tantos temores e tremores provocados pelos projetos de morte implantados nesta região, e em tantas outras do nosso país, financiados pela ganância do capital financeiro e legitimado por um sistema político corrupto, nós, romeiras e romeiros da 14ª Romaria das Águas e da terra, assumimos o compromisso de coletar assinaturas e realizar o Plebiscito da Campanha do limite máximo da propriedade da Terra e a Campanha Opará ( abaixo assinado em defesa das terras indígenas atingidas pelo projeto de Transposição do rio São Francisco).

Ecoam em nossas mentes e corações o consolo e a indignação de Deus transmitido pelo profeta Isaías: “Tenha cuidado, mas fique calmo! Não tenha medo nem vacile o seu coração por causa desses dois tições fumegantes...”(Isaías 7,4) Tições representados pelas mineradoras, pelas monoculturas, pela ganância dos latifundiários, pela transposição e projetos de irrigação das águas do Velho Chico, que querem destruir a terra e as águas e tudo o que nela habita. “Assim fala o Senhor Javé: Isso não irá em frente, isso não acontecerá... se vocês não acreditam, não se manterão firmes” (Isaías 7,7ss).

Com as bênçãos de Deus-Javé, Nossa Senhora das Dores e São Francisco de Assis, iremos para nossas bases, animando e encorajando a tantos Elois e Rosalinos que sonham e doam suas vidas pela implantação do Projeto de Deus.

Até a 15ª Romaria das águas e da Terra de Minas Gerais, em 2011, com a graça de Deus!

Januária, Norte de Minas, 18 de julho de 2010

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Solidariedade para com as vítimas do "novo" PT


Leonardo Boff

Passei um fim de semana lendo pela enésima vez O Príncipe de Maquiavel no esforço de entender a atual política da Direção Nacional do PT. E aí encontrei as fontes que possivelmente estão inspirando o assim chamado "novo PT", aquele que trocou o poder da vontade de transformar a realidade pela vontade de poder para compor-se com a realidade, notoriamente envenenada com o propósito de perpetuar-se no poder. Nas palavras do candidato eleito pela convenção do partido em Minas Gerais, Fernando Pimentel e depois invalidado, em nome da aliança com o PMDB: "o PT novo é o PT que faz alianças e convive com a realidade política brasileira, buscando transformá-la... Não somos mais um partido que coloca a ideologia como uma máscara, como óculos escuros para não enxergar a realidade política; operamos com a realidade política do jeito que ela é, para transformá-la" (O Globo 12/6/2010).

Vamos traduzir esse discurso de disfarce. A ideologia básica do PT originário era a ética e as reformas estruturais. O novo PT entende este propósito como uma máscara que não permite enxergar a realidade política do jeito que ela é. Sabemos como é o jeito da política vigente, montada sobre alianças espúrias, sobre a mercantilização das relações políticas e sobre a rapinagem do dinheiro público. Pimentel ainda acredita que com as alianças se pretende transformar a realidade, como se para transformar uma gangue de bandidos devesse fazer parte dela. A ética foi enviada ao limbo e em seu lugar entraram os conselhos de Maquiavel. Este teve um propósito semelhante à Direção do PT: "ir diretamente à verdadeira realidade das coisas e não ater-se a representações imaginárias" (c. XV). Para Maquiavel a verdadeira realidade das coisas é a busca tenaz do poder, as formas de conquistá-lo e de conservá-lo. E aí vale tudo; os fins justificam todos os meios: o perjúrio, o crime e até o bem se ele trouxer vantagens. As "representações imaginárias" é a ética, o que deve ser. Ela não é posta de lado; até vale desde que favoreça o poder. Caso contrário pode ser atropelada: "não se afastar do bem quando se pode, mas saber usar o mal, se necessário" (c. XVIII). O importante não é ser bom, mas parecer bom. Não há porque cumprir a palavra empenhada, se ela se volta contra o príncipe pois "jamais faltarão motivos legítimos para justificar o não cumprimento de algo apalavrado" (c. XVIII).

É entristecedor ler em Pimentel: "nesse processo de renovação, alguns companheiros vão ficar no passado". Estes, na verdade, são os portadores do futuro, porque são fiéis à ética e ao sonho de uma política diferente do jeito como é feita. A Direção do PT se rendeu a ela, fazendo alianças escandalosas para se perpetuar no poder e assim se atolando no passado. O povo não merece ser defraudado desta forma. Não é investindo em políticas assistenciais que se possa substituir-lhe a dignidade. Mesmo assim, há tantos nas bases, deputados, prefeitos e vereadores do PT antigo e ético que mantém vivo o sonho e que não abandonam a questão: que Brasil queremos e que ética pública precisamos?

Quero me solidarizar com as vítimas do maquiavelismo do "novo" PT, especialmente em Minas Gerais e no Maranhão. Neste Estado está ocorrendo uma tragédia, bem representada pelo histórico sindicalista Manoel da Conceição, de 75 anos, fundador do PT, torturado e mutilado pela polícia das oligarquias entre as quais estão os Sarneys, sendo obrigado a votar em Roseana Sarney do PMDB. Em carta aberta ao companheiro Lula, de fazer chorar, escreve "com ternura e amor de um irmão": "como eleger essas figuras que me mutilaram, torturaram e mataram dezenas de meus mais fiéis companheiros... isso fere de morte a nossa honra e a nossa história". Mas o projeto de poder não tem o mínimo sentido humanitário: Maquiavel dixit.

Da mesma forma quero me solidarizar com as vítimas de Minas Gerais, com Sandra Starling, com Patrus Ananias, dos melhores ministros do Governo, com Durval Ângelo, paladino dos direitos humanos e de tantos e tantas que estão sofrendo indignados.

Nem tudo vale neste mundo. E se Cristo morreu, foi também para mostrar que nem tudo vale e que para tudo há algum limite, válido também para o PT.

sábado, 17 de julho de 2010

Em nome da história e da honra - Carta aberta de Manoel da Conceição Santos ao Presidente Lula


Líder camponês maranhense que ajudou a fundar o PT repudia eventual apoio petista ao PMDB de Roseana Sarney nas eleições de outubro

O líder camponês maranhense Manoel da Conceição Santos, um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT), divulgou, na quinta-feira, uma carta aberta endereçada ao presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva.

Na correspondência – com cópias para José Eduardo Dutra (presidente nacional do PT), Dilma Rousseff (pré-candidata do PT à Presidência da República), Executiva Nacional e Diretório Nacional do PT, Manoel da Conceição – uma lenda viva da luta pela terra no país – mostra-se indignado com a possibilidade de o PT do Maranhão ser forçado pela instância nacional do partido a se aliar ao PMDB de Roseana Sarney (pré-candidata ao governo do estado), em vez do PC do B de Flávio Dino, também pré-candidato nas eleições para governador, que acontecem em outubro. “O que está sendo imposto a nós petistas do Maranhão extrapola todos os limites da tolerância e fere de morte a nossa honra e a nossa história”, escreveu Manoel da Conceição – que hoje vive em Imperatriz – a Lula.

Veja a íntegra desse documento histórico:

Nobre companheiro presidente Lula.

É com a ternura, o carinho e o amor de um irmão, a confiança, o respeito e o compromisso de um companheiro de classe, das organizações e lutas históricas dos trabalhadores e das trabalhadoras desse país e do mundo que me sinto com a liberdade e o direito de lhe enviar esta 2ª carta, tratando de questões que compreendo ter muito a ver com a responsabilidade do companheiro tanto como agente político das lutas em prol da justiça social para a classe trabalhadora como também na qualidade de um primeiro presidente da república legitimamente forjado nas organizações e lutas desse povo excluído, sofrido, mas que é capaz de realizar o impossível enquanto força social e política organizada e consciente do seu projeto de libertação classista.

Dirijo-me ao companheiro com a minha identidade de trabalhador rural, de sindicalista, de ambientalista, de humanista e de militante e fundador do Partido dos Trabalhadores, o qual comecei a sonhar e trabalhar na sua criação quando ainda me encontrava no exílio, juntamente com honrados e honradas companheiros e companheiras que havíamos sido banidos do nosso país pela intolerância de um governo totalitário e de regime militar.

Porém, minha identidade social, política e classista se origina bem antes da criação do PT e da CUT, instrumentos classistas dos quais me orgulho de ter sido co-fundador, juntamente com o companheiro e um conjunto de honrado(a)s e legítimo(a)s militantes e intelectuais orgânicos da classe trabalhadora.

Na realidade companheiro Lula minha história de luta social e política se originou aqui mesmo no Maranhão, estado do qual sou filho natural com minha matriz étnica negra e indígena.

Agora em julho de 2010 completarei 75 anos de idade. Quando eu era ainda jovem vi meu pai e muitas famílias agricultoras serem massacradas e enxotadas de suas posses por latifundiários, coronéis e jagunços, acobertados e protegidos por um governo oligárquico. Certa vez presenciei um grande massacre de companheiros meus quando estávamos reunidos em uma pequena comunidade rural do interior do Maranhão. Neste dia fomos atacados de forma covarde por um grupo de soldados e jagunços, que sem a menor chance de defesa assassinaram 5 pessoas, dentre elas uma criança que correu para abraçar o pai caído no chão e foi pego pelas pernas e arremessado contra a parede que a cabeça abriu espalhando os seus miolos, também uma velhinha, que tentou impedir a morte do filho foi cravada de punhal em suas costas, ficando rodando no chão espetada. Eu escapei por puro milagre com um tiro na perna, mas me tornei mais revoltado ainda com a classe latifundiária e jurei perante a comunidade a lutar o resto de minha vida contra os latifundiários e suas injustiças.

Presenciei um segundo massacre em 1959 quando estávamos novamente reunidos em uma comunidade por nome Pirapemas para preparar a defesa de uns companheiros que estavam sendo acusados de ter invadido uma propriedade e roubado umas frutas do sítio. Neste dia chegou um grupo de uns 20 policiais, soldados, tenente, cabos e um sargento. Ao chegarem ao local da reunião o sargento perguntou quem era o presidente da associação, e como foi respondido que não havia presidente o sargento falou: pois então todos são presidentes e vão levar bala. Neste dia foram assassinados sete companheiros e três outros ficaram gravemente feridos.

Minha primeira motivação para a luta era sustentada em pura revolta, ódio dos exploradores da minha família e das famílias camponesas da mesma região que habitávamos. Sem a menor consciência política e dominado pelo ódio eu cheguei a acreditar que a libertação dos trabalhadores de tal estado de sujeição dependeria de um salvador da pátria, de um homem corajoso, de um herói que com o apoio eleitoral dos oprimidos iria por fim a tal dominação. A partir desse entendimento extremamente limitado e de um profundo sentimento de revolta pela violência testemunhada e sofrida, vi surgir na minha ingenuidade uma esperança para salvar a massa camponesa do jugo dos latifundiários apadrinhados pelo poder da oligarquia viturinista que comandava o estado do Maranhão. O nome dessa esperança era José Sarney.

Com um discurso muito bem elaborado e com a radicalidade de um revolucionário Sarney prometia exatamente o que nós camponeses queríamos ouvir: um Maranhão novo e livre de oligarquia, reforma agrária, punição dos crimes cometidos contra as famílias camponesas e indenização dos prejuízos a elas causados pelo gado dos fazendeiros. Eu acreditei no discurso do cidadão e me tornei um aguerrido cabo eleitoral, andando a cavalo em todas as comunidades da região fazendo sua campanha. Resultado: com uma grande adesão popular, elegemos o José Sarney em 1965 para ser o governador do Maranhão. Nessa época eu já era presidente do Sindicato de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Pindaré-Mirim, que congregava trabalhadores rurais de toda a grande região do Pindaré. Mesmo sem ainda ter uma sólida consciência de classe eu já havia sido preso e espancado severamente pela polícia da ditadura militar. Foi por conta dessa perseguição que eu passei a acreditar nas promessas do Sarney que caso fosse eleito iria ser uma força aliada dos trabalhadores contra a repressão da ditadura militar.

No dia 13 de julho de 1968 o Sindicato de Trabalhadores Rurais de Pindaré Mirim havia convocado uma reunião da categoria para receber a visita de um médico para tratar questões relacionadas à saúde dos associados e associadas. O prefeito do município na época mandou informar que iria fazer uma visita ao sindicato neste mesmo dia. Por volta das 10 horas da manhã chegou um pessoal dizendo que queria falar com o presidente do sindicato. Quando eu apontei na porta fui recebido por tiro de fuzil que estraçalhou minha perna. A ação e os disparos foram efetuados pela polícia militar. Outros companheiros também foram atingidos por bala, mas felizmente não houve morte. Eu fui levado aprisionado e jogado na cadeia sem receber nenhum tratamento no ferimento, o que levou minha perna a gangrenar e ter de ser amputada.

Sarney se encontrava em viagem para o Japão e quando retornou manifestou desconhecimento da questão e mandou seus assessores manterem contato comigo, oferecendo apoio para a minha família, uma perna mecânica, uma casa e outras ofertas, desde que eu me tornasse um defensor do seu governo. Eu respondi que não estava preso por ser bandido, que minha perna tinha sido arrancada por bala da própria polícia militar do estado sob seu governo. Portanto, minha perna era responsabilidade da classe que eu representava, minha perna era a minha classe. Desde então eu passei a ser considerado um inimigo do Estado militar, passando a ser alvo de permanente perseguição. Fui preso 9 vezes e submetido às piores torturas que um ser humano é capaz de suportar.

Vi muitos de meus companheiros e companheiras serem torturados e morto(a)s por ordem do governo militar do qual Sarney se tornou parte num primeiro momento como governador do Maranhão e posteriormente como senador biônico. Vale ressaltar que foi no primeiro governo da nascente oligarquia Sarney, que foi promulgada a Lei Estadual 2.979, regulamentada pelo Decreto 4.028 de 28 de novembro de 1969, a qual facultava a venda de terras devolutas sem licitação a grupos organizados em sociedade anônima. Essa lei foi o maior instrumento de legalização da grilagem das terras do Maranhão, particularmente na região do Pindaré (ASSELIN, 1982, p. 129). Essa grilagem promoveu a expulsão das famílias agricultoras de suas posses e a migração de milhares de famílias camponesas maranhenses para outros estados.

Eu escapei com vida, embora mutilado e com seqüelas físicas e psicológicas profundas, por conta da solidariedade da anistia internacional, das igrejas católicas e evangélicas, da AP como principal mobilizadora dos apoios e até do Partido Comunista do Brasil que na ocasião fez uma ampla campanha internacional pela preservação da minha vida.

Finalmente, fui exilado na Suíça, de onde continuei denunciando as atrocidades da ditadura militar nas oportunidades que tive de viajar por vários países europeus. Foi também no exílio juntamente com companheiros refugiados que começamos a discutir a idéia já em discussão no Brasil de criação do Partido dos Trabalhadores e também de uma central sindical.

Meu companheiro Lula, hoje vivemos um novo momento na história do Brasil; aquelas lutas dos anos 50, 60, 70, 80 e 90 não foram em vão; tivemos prejuízos enormes, pois muitas vidas foram ceifadas pela virulência dos detentores do poder do capital; porém, temos um saldo expressivo de vitórias; hoje temos um partido que se tornou a maior expressão política da classe trabalhadora na América Latina; temos o melhor presidente da história desse gigantesco país, que ironicamente é um trabalhador operário e nordestino, que assim como eu quase não teve acesso a estudos escolares. Eu confesso a você que sinto um imenso orgulho de ter participado desde os primeiros momentos da construção dessa grandiosa e ousada empreitada.

Porém, companheiro presidente, ultimamente eu tenho vivido as maiores angustias que um homem com minha trajetória de vida é capaz de imaginar e suportar. Receber a imposição de uma tese defendida pela Direção Nacional do meu partido e até onde me foi informado pelo próprio companheiro presidente de que o nosso projeto político e social passa agora pelo fortalecimento da hegemonia da oligarquia sarneysista no Maranhão. Eu sei do malabarismo que o companheiro presidente tem precisado fazer para garantir alguma condição de governabilidade; porém, sei do alto custo que é cobrado por esses apoios conjunturais, e que nosso governo vem pagando a todos esses ônus. Companheiro, tudo precisa ter algum limite e tal limite é a nossa dignidade.

O que está sendo imposto a nós petistas do Maranhão extrapola todos os limites da tolerância e fere de morte a nossa honra e a nossa história. Eu pessoalmente, há mais de 50 anos venho travando uma luta contra os poderes oligárquicos e contra os exploradores da classe trabalhadora neste país. Por conta disso perdi dezenas de companheiros e companheiras que foram barbaramente trucidados por essas forças reacionárias. Como é que agora meus próprios companheiros de partido querem me obrigar a fazer a defesa dessas figuras que me torturaram e mataram meus mais fiéis companheiros e companheiras? Vocês podem ter certeza que essa é a pior de todas as torturas que se pode impor a um homem. Uma tortura que parte dos próprios companheiros que ajudamos a fortalecer e projetar como nossos representantes no partido e na esfera de poder do Estado, na perspectiva de um projeto estratégico da classe trabalhadora. Estou falando do fundo de minha alma em honra à minha história e à de meus companheiros e companheiras que foram assassinadas pelas forças oligárquicas e de extrema direita neste país.

Estou animado para fazer a campanha da companheira Dilma, assim como para fazer uma aguerrida campanha política em prol do fortalecimento do PT no Maranhão e para construir um projeto político alternativo à oligarquia sarneysta, juntamente com os partido do campo democrático e popular na Coligação PT, PC do B e PSB. Esta foi a tática vitoriosa em nosso encontro estadual realizado nos dias 26 e 27 de março, que aprovou por maioria de votos, da forma mais transparente possível e cumprindo todos os preceitos legais o nome do companheiro Flávio Dino para candidato dessa aliança legitimamente de esquerda e respaldada pelas mais expressivas organizações da classe trabalhadora deste estado que publicamente se manifestaram, a exemplo da Federação dos Trabalhadores na Agricultura – FETAEMA e a CUT. Assim, penso que estamos sendo coerentes com a nossa história e identidade classista.

Portanto, estou fazendo este apelo ao mais ilustre companheiro de partido e confessando em alto e bom som que não aceitarei sob nenhuma hipótese a tese de que nestas alturas de minha vida eu tenha que negar minha identidade e desonrar a memória de meus companheiros e companheiras que foram caçados e exterminados pela oligarquia e os detentores do capital no Maranhão, no Brasil e mundo inteiro.

Lamento e peço desculpas se este meu posicionamento desagrada o companheiro e a Direção Nacional do PT, mas não posso me omitir diante de uma tese destruidora de nossa identidade coletiva e que representa a negação de tudo que temos afirmado nas nossas palavras e ações. Espero poder contar com a solidariedade e compreensão do meu histórico companheiro de utopias e lutas.

Atenciosamente,

Manoel da Conceição Santos - Membro Fundador do PT e Primeiro Secretário Agrário Nacional
Imperatriz - MA, 3 de junho 2010