sexta-feira, 31 de julho de 2009

Sobre o direito constitucional à saúde e ao bem-estar do povo do bairro Camargos, em Belo Horizonte



Professor Doutor José Luiz Quadros de Magalhães[1]

A primeira palavra que encontramos no primeiro artigo de nossa Constituição Federal é a palavra “República”. Qual o significado desta palavra que fundamenta a nossa ordem jurídica? República significa que ninguém pode ter privilégios neste estado democrático e republicano. Que todos são iguais perante a lei e devem ter igual acesso aos direitos fundamentais compostos pelos direitos individuais à liberdade, à vida, o acesso à propriedade, à igualdade e à segurança; os direitos sociais à saúde, educação, trabalho, moradia e previdência; os direitos econômicos ao trabalho, remuneração justa, meio ambiente saudável e os direitos políticos de votar, de ser votado. Acrescente-se que estes quatros grupos de direitos fundamentais são indivisíveis ou indissociáveis, o que significa dizer que estes direitos são interdependentes, complementares, um grupo de direitos não existe sem o outro.
Se então, vivemos em uma Republica marcada pela inexistência de privilégios onde todos os direitos fundamentais são assegurados a todas as pessoas indistintamente, porque vemos diariamente enormes contingentes de pessoas pobres, humilhadas pelo Estado, sem acesso aos seus direitos fundamentais que são o alicerce de toda a ordem jurídica brasileira?
Porque a SERQUIP e outras empresas se instalam em bairros populares desrespeitando os mais básicos e essenciais direitos de qualquer pessoa e o Estado nada faz para evitar, mas ao contrário, concede prazos frequentemente dilatados para que os direitos fundamentais mais essenciais e claros continuem sendo desrespeitados?
Quando o movimento social, manifestação mais concreta da democracia participativa prevista na Constituição, me pediu que escrevesse algumas linhas sobre os aspectos constitucionais da situação do bairro Camargos, mais uma vez me deparei com aquelas situações de extremo absurdo jurídico, que só acontece com os mais pobres. Não há e nunca haveria uma SERQUIP queimando lixo tóxico no Bairro Belvedere (Bairro de enriquecidos). E por quê? Ora porque não pode. Mas se não pode porque está então instalada no Bairro Camargos? Nós não estamos em uma República? O Estado não tem o dever de assegurar e promover os direitos fundamentais constitucionais?
A situação é tão absurda que não seria necessário um profissional do Direito para perceber a sua insustentabilidade. A empresa SERQUIP, desde 2003, instalou-se no Bairro Camargos, em Belo Horizonte passando a contaminar o ar da região com a incineração de lixo tóxico hospitalar. Ora, a primeira inflamação nos olhos e nas vias respiratórias já seria suficiente para a imediata interdição das atividades da empresa e sua remoção para área não residencial. Entretanto os relatos dos profissionais médicos nos informam que não só inflamações ocorreram e continuam ocorrendo mas casos de doenças de pele, enfisema pulmonar, crises de asma, câncer e morte.
Não vamos voltar a discutir a República constitucional fundada nos direitos humanos. Tal situação se ocorresse em bairro residencial de alto poder aquisitivo já teria sido solucionada. O Estado tem a obrigação de atuar com a mesma presteza e eficiência diante de qualquer grupo social ou econômico.
A situação se agravou com a renovação da licença de funcionamento da SERQUIP em 20 de outubro de 2008 para mais quatro meses e em 9 de abril de 2009 por mais dois meses e mais dois meses para a saída do bairro. Quando, finalmente, o COMAM não renovou a licença, a empresa consegue uma liminar no Poder Judiciário para a continuidade de suas atividades.
Como pode o Estado, por meio do COMAM e posteriormente por meio de um Juiz de Direito, não proteger direitos fundamentais constitucionais? Pior, como podem dois órgãos do Estado sustentarem a violação de direitos fundamentais?
A situação que se coloca é de apuração da responsabilidade criminal das autoridades envolvidas na continuidade da atividade da empresa, uma vez que esta atividade viola o direito a vida; a dignidade; à saúde; ao meio ambiente saudável, além de inúmeras normas infraconstitucionais.
Pode um servidor público sob qualquer argumento, atentar ou sustentar a violação de direitos fundamentais? Não se trata de caso jurídico difícil, onde cabem interpretações diversas que poderiam justificar as atitudes dos funcionários, representantes ou autoridades envolvidas. Trata-se de flagrante, claríssima violação do direito à vida, à saúde e ao meio ambiente.
Diante de descalabros como estes a população não pode permanecer calada. Devemos agir de forma constitucional, por meio de instrumentos jurídicos, para punir as pessoas responsáveis pela violação do direito a vida e a saúde. Se demonstrarmos que pessoas adoeceram e morreram pela poluição causada pela empresa, as pessoas envolvidas na manutenção da atividade que causou a doença ou a morte devem responder criminalmente, sejam empresários, servidores públicos ou mesmo juiz.
Nossa Constituição é a base de todo o ordenamento jurídico, nenhuma lei, nenhuma ação do estado e de seus servidores e autoridades, nenhuma pessoa pode agir contra seus princípios e regras. Nossa Constituição é um sistema coerente de regras e princípios fundados em valores sociais democraticamente construídos. Este sistema consagra a vida humana como valor maior, e não se trata de vida biológica apenas, mas vida com dignidade, de cada pessoa, brasileiro ou estrangeiro que se encontre em nosso território; de cada pessoa com ou sem dinheiro; com ou sem diploma; com ou sem cargo; todos são iguais, e todos têm que ter seus direitos constitucionais respeitados. Quem violar estes direitos deve responder por seus atos.
Passemos a palavra a nossa Constituição:
a) O artigo 225 dispõe que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.”
b) O artigo 196 dispõe que “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantindo mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção proteção e recuperação.”

Não é justificativa para violar a integridade física e moral das pessoas a geração de empregos ou o lucro das empresas. Seria absurdo insustentável admitirmos que para manter empregos e empresas funcionando é necessário sacrificar a vida e a saúde de algumas pessoas, de uma ou de milhares.


[1] Doutor em Direito Constitucional, professor da UFMG e da PUC Minas, autor de inúmeros livros e artigos, grande defensor dos Direitos Humanos, E-mail: ceede@uol.com.br

segunda-feira, 27 de julho de 2009

Carta Final do 12º Intereclesial às Comunidades


CARTA ÀS IRMÃS E AOS IRMÃOS DAS CEBs E A TODO O POVO DE DEUS


“Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o Reino do Céu; ... Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados...” (Mt 5, 3.6)


1. Nós, participantes do XII Intereclesial das CEBs, daqui das margens do Rio Madeira, no coração da Amazônia, saudamos com afeto as irmãs e irmãos de todos os cantos do Brasil e dos demais países do continente, que sonham conosco com novos céus e nova terra, num jeito novo de ser igreja, de atuar em sociedade e de cuidar respeitosa e amorosamente de toda a criação!


2. Fomos convocados de 21 a 25 de julho de 2009, pelo Espírito e pela Igreja irmã de Porto Velho/RO, para nos debruçar sobre o tema que nos guiou por toda a preparação do Intereclesial em nossas comunidades e regionais: “CEBs: Ecologia e Missão – Do ventre da terra, o grito que vem da Amazônia”. Acolhendo as delegações e celebrando os povos da Amazônia.


3. Encheu-nos de entusiasmo ver chegando, depois de dois, três e até cinco dias de viagem os delegados, em sua maioria de ônibus fretados, ou ainda em barcos e aviões. Em muitos ônibus, vieram acompanhados de seus bispos e encontraram, ao longo do caminho, acolhida festiva e refrigério em paradas nas dioceses de Rondonópolis, Cuiabá e Cáceres no Mato Grosso, Jataí em Goiás, Uberlândia em Minas Gerais e, entrando em Rondônia, nas comunidades de Vilhena, Pimenta Bueno, Cacoal, Presidente Médici, Ji-Paraná, Ouro Preto e Jaru. Apresentamos carinhoso agradecimento pela fraterna e generosa acolhida de todas as delegações pelas famílias, comunidades e paróquias de Porto Velho, o infatigável trabalho e dedicação do Secretariado e das equipes de serviço, em que se destacaram tantos jovens.


4. Somos 3.010 delegados, aos quais se somam convidados, equipes de serviço, imprensa e famílias que acolhem os participantes, ultrapassando cinco mil pessoas envolvidas neste Intereclesial. Dos delegados de quase todas as 272 dioceses do Brasil, 2.174 são leigos, sendo 1.234 mulheres e 940 homens; 197 religiosas, 41 religiosos irmãos, 331 presbíteros e 56 bispos, dentre os quais um da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil, além de pastores, pastoras e fiéis dessa Igreja, da Igreja Metodista, da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil e da Igreja Unida de Cristo do Japão. O caráter pluriétnico, pluricultural e plurilinguístico de nossa Assembléia encontra-se espelhado no rosto das 38 nações indígenas aqui presentes e no de irmãos e irmãs de nove países da América Latina e do Caribe, de cinco da Europa, de um da África, de outro da Ásia e da América do Norte. Queremos ressaltar a presença marcante da juventude de todo o Brasil por meio de suas várias organizações.

5. “Sejam benvindos/as nesta terra de muitos rios, igarapés e de muitas matas, onde está a Arquidiocese de Porto Velho, que se faz hoje a Casa das Comunidades Eclesiais de Base”. Assim, fomos recebidos, na celebração de abertura pela equipe da celebração e por Dom Moacyr Grechi, com muita música e canto, ao cair da noite, ao lado dos trilhos da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré que lembra para os trabalhadores, que a construíram e para os indígenas e migrantes nordestinos, o sofrido ciclo da borracha na Amazônia. Foram evocadas ali e, seguidamente nos dias seguintes, as palavras sábias do provérbio africano: “Gente simples, fazendo coisas pequenas, em lugares pouco importantes, consegue mudanças extradordinárias”.


6. Pelas mãos de representantes dos povos indígenas, dos quilombolas, seringueiros, ribeirinhos, posseiros e de migrantes do campo e da cidade foram plantadas ao lado do altar, três grandes tochas. Nelas, foram acesas milhares de velas dos participantes, cujas luzes se espalharam pelos degraus da esplanada, enquanto ouvíamos o canto do Cristo dos Seringais: “Na densa floresta vai um caminheiroCristo seringueiro a seringa a cortar... “. Os versos eram entrecortados pelo refrão: “E vem a esperança que surja a bonança, Não seja explorado o suor na balança”. “E vem a esperança que surja a mudança. E o homem refaça com Deus a aliança”.


7. Com o apito da sirene da Madeira-Mamoré, o trem das CEBs retomou sua caminhada, reunindo-se no dia seguinte, na grande plenária do PORTO, aclamado pela Assembléia, “PORTO DOM HELDER CAMARA”, pelo centenário do seu nascimento (1909-2009) e em resgate de sua profética atuação. Iniciamos esse primeiro dia, dedicado ao VER, partindo do grito profético da terra e dos povos da Amazônia, símbolos da humanidade, na sua rica diversidade, deixando-nos guiar na celebração pelo som dos maracás, tambores e flautas e pela dança de louvor a Deus de nossos irmãos e irmãs indígenas. Dali, partimos para os locais dos mini-plenários de 250 participantes, nas paróquias e escolas. Eles levavam os nomes de doze RIOS da bacia amazônica: Madeira, Juruá, Purus, Oiapoque, Guamá, Tocantins, Tapajós, Itacaiunas, Guaporé, Gurupi, Araguaia e Jari.

8. Divididos nos Rios em 12 CANOAS, com duas dezenas de participantes cada uma, partilhamos as experiências, gritos e lutas das comunidades em relação à nossa Casa comum, a partir do bioma amazônico e dos outros biomas do Brasil (cerrado, caatinga, pantanal, pampas,mata atlântica e manguezais da zona costeira), da América Latina e do Caribe. Vimos nossa Casa ameaçada pelo desmatamento, com o avanço da pecuária, das plantações de soja, cana, eucalipto e outras monoculturas, sobre áreas de florestas; pela ação predatória de madeireiras, pelas queimadas, poluição e envenenamento das águas, peixes e humanos pelo mercúrio dos garimpos, pelos rejeitos das mineradoras e pelo lixo nas cidades. Encontra-se ameaçada também pelo crescente tráfico de drogas, de mulheres e crianças e pelo extermínio de jovens provocado pela violência urbana.

9. Somamos nosso grito ao das populações locais, para que a Amazônia não seja tratada como colônia, de onde se retiram suas riquezas e amazonidades, em favor de interesses alheios, mas que seja vista em pé de igualdade, no concerto das grandes regiões irmãs, com sua contribuição específica em favor da vida dos povos, em especial de seus 23 milhões de habitantes, para que tenham o suficiente para viver com dignidade.

10. Fazemos um apelo para que os governantes sejam sensíveis ao grito que brota do ventre da Terra e, pautados por uma ética do cuidado, adotem uma política de contenção de projetos que agridem a Amazônia e seus povos da floresta, quilombolas, ribeirinhos, migrantes do campo e da cidade, numa perspectiva que efetivamente inclua os amazônidas, como colaboradores verdadeiros na definição dos rumos da Amazônia.


11. Tomamos consciência também de nossas responsabilidades em relação ao reto uso da água, da terra, do solo urbano e à superação do consumismo, respondendo ao apelo, para que todos vivamos do necessário, para que ninguém passe necessidade.


12. Constatamos, com alegria, a multiplicação de iniciativas em favor do meio ambiente, como a de humildes catadores de material reciclável, no meio urbano, tornando-se profetas da ecologia e as de economia solidária, agricultura orgânica e ecológica. Saudamos os muitos sinais de uma “Terra sem males”, fazendo-nos crescer na esperança de que “outro mundo é possível, necessário e urgente”.


13. De tarde, realizamos a Caminhada dos Mártires, em direção ao local onde o rio Madeira foi desviado e em cujo leito seco, ao som dos estampidos das rochas dinamitadas, está sendo concretada a barragem da hidroelétrica. Celebrou-se ali Ato Penitencial por todas as agressões contra a natureza e a vida humana. Defronte às pedreiras que acolhiam as águas das cachoeiras de Santo Antônio, agora totalmente secas, ao lado da primeira capela construída na região, foram proclamadas as Bem-aventuranças evangélicas (Mt 5, 1-12), sinal da teimosa esperança dos pequenos, os preferidos de Deus.


14. No segundo dia, prosseguimos com o VER, com uma pincelada sobre a conjuntura atual na esfera sócio-política e econômica, apresentada por Pedro Ribeiro de Oliveira, na perspectiva das mulheres, por Julieta Amaral da Costa e do ponto de vista ecológico, por Leonardo Boff. Atendendo ao convite de Jesus: “Vinde e vede” (Jo, 1, 39), após a pergunta dos discípulos, “Mestre, onde moras?” (Jo 1, 38), partimos em grupos, em visita às muitas realidades locais: populações indígenas, comunidades afro-descendentes, ribeirinhas, extrativistas, grupos vivendo em assentamentos rurais ou em áreas de ocupação urbana; bairros da periferia; hospitais, prisões, casas de recuperação de pessoas com dependência química e ainda a trabalhos com menores ou pessoas com deficiência. O retorno foi rico na partilha de experiências, nas quais descobrimos sinais de vida nova. Reiteramos que os projetos dos grandes, principalmente as barragens das usinas hidroelétricas,as usinas nucleares geradoras de lixo atômico que põe em risco a população local, são projetos do capital transnacional que não favorecem os pequenos. Apoiados na sabedoria milenar dos povos indígenas, nos animamos a repetir com eles: “Nunca deixaremos de ser o que somos”. Nós, como CEBs no meio dos simples e pequenos, reafirmamos nossa teimosa opção pelos pobres e pelos jovens, proclamada há trinta anos em Puebla, resistindo e lutando para superar nossas dificuldades, sustentados pela fé no Deus que se revelou a nós como Trindade, a melhor comunidade.

15. No terceiro dia, as celebrações da manhã aconteceram nos rios, resgatando memórias da espiritualidade dos povos da região e das experiências colhidas no caminho missionário percorrido no dia anterior, nas visitas às muitas realidades eclesiais e sociais de Rondônia. A oração foi alentada pela promessa do Êxodo: “Decidi vos libertar... vos farei subir dessa terra para uma terra fértil e espaçosa, terra, onde corre leite e mel” (Ex. 3, 8). Em cada canoa, os relatos iam revelando uma igreja preocupada com a justiça social e a defesa da vida nos testemunhos de gente simples em todos aqueles lugares visitados. Esses relatos aqueceram nosso coração e nos desafiaram a perseverar na caminhada das CEBs.

16. À tarde, fomos tocados por vários testemunhos. Em primeiro lugar, pela sentida oração dos Xerente do Tocantins que celebraram seu ritual pelos mortos, homenageando o amigo e missionário, Pe. Gunter Kroemer. Dom José Maria Pires, arcebispo emérito da Paraíba, retomou em sua história a trajetória dos negros no Brasil, suas dores, resistências e esperanças de um mundo melhor, nos seus Quilombos da liberdade. Marina Silva, senadora pelo Acre e ex-ministra do Meio Ambiente, contou sua eu caminhada de menina analfabeta do seringal para a cidade de Rio Branco e de lá para São Paulo, mas principalmente sua incessante busca, a partir da fé herdada de sua avó, alimentada pela experiência das CEBs, da leitura da Palavra de Deus e pelo exemplo de Chico Mendes, de bem viver e de colocar-se publicamente a serviço, em favor do povo amazônida. Por fim, depois da apresentação de Dom Tomás Balduíno, em que ele ressaltou o papel de Dom Pedro Casaldáliga da Prelazia de São Félix do Araguaia na fundação, junto com outros, do CIMI, da CPT e de Pastorais Sociais, acompanhamos pelo vídeo seu testemunho e nos emocionamos com suas palavras de esperança e confiança em Jesus e na utopia do seu Reinado.

17. Neste dia, ocorreu também o encontro da Pastoral da Juventude de todo o Brasil e outro também muito significativo entre bispos, assessores e Ampliada Nacional das CEBs. Momento fecundo do estreitamento de laços e abertura a novos passos em nossa caminhada, em que foi expressa a alegria e alento trazidos pela presença significativa de tantos bispos. Desse encontro, os bispos presentes resolveram enviar sua palavra às comunidades:

Palavras dos Bispos às CEBs
18. “Os 56 bispos participantes do Intereclesial, reunidos na sexta-feira à noite com os assessores e os membros da Ampliada Nacional das CEBs, avaliaram muito positivamente o Intereclesial, destacando especialmente a seriedade e o empenho dos participantes no debate da temática do encontro, a espiritualidade expressa nas bonitas celebrações diárias nos “rios”, o clima sereno e fraterno e o grande envolvimento das comunidades das dioceses do regional Noroeste da CNBB na organização e realização do encontro.
A presença de 331 padres que participam do Intereclesial, levo os bispos a exprimirem o desejo de que, neste ano sacerdotal, todos os padres do Brasil renovem o compromisso de acompanhar as CEBs, empenhadas em testemunhar os valores do Reino, como discípulas e missionárias.
Constatando que, a partir da Conferência de Aparecida, as CEBs ganharam reconhecimento e novo alento em todo o continente, os bispos tiveram também palavras de apoio e incentivo para a continuação da caminhada das comunidades no Brasil, reforçadas pelo presidente da CNBB, Dom Geraldo Lyrio Rocha.
Diante da agressão continuada da Amazônia, juntamente com todos os participantes do encontro, manifestam sua preocupação com a construção da barragem de Santo Antônio e Jirau no Rio Madeira, os projetos de outras barragens no Xingu, Tapajós, Araguaia e noutros rios e a continuada devastação da floresta pelo avanço da pecuária, das plantações de soja e cana, e da extração ilegal de madeira”.
Nas diferenças, o mesmo Deus que nos convoca para a Justiça e a Paz

19. Na manhã do último dia, fomos guiados pelo texto do Apocalipse: “O anjo mostrou para mim, um rio de água viva... O rio brotava do trono de Deus e do cordeiro...; de cada lado do rio estão plantadas árvores da vida... suas folhas servem para curar as nações” (Ap 22, 1-2). Bebemos no manancial da fé que nos une a todos e todas, na única família humana, como filhos e filhas da mesma Mãe-Terra, a Pacha-Mama dos povos andinos, a Terra sem Males dos Povos Guarani, na busca, sonho e construção do Reino de Deus anunciado por Jesus.


20. Juntos, representantes das Religiões Indígenas e dos Cultos Afro-brasileiros, de Judeus, Cristãos Ortodoxos, Católicos e Evangélicos, Muçulmanos, de mulheres e homens de boa vontade e de todas as crenças, no diálogo e respeito à diversidade da teia da vida, acolhemos os gritos da Amazônia e de todos os biomas e reafirmamos nossa solidariedade e compromisso com a justiça geradora da paz.


21. Caminhamos como povo de Deus que conquista a Terra Prometida e a torna espaço de fartura e fraternura, acolhendo todas as expressões da vida.


22. Comprometemo-nos a fortalecer as lutas dos movimentos sociais populares: as dos povos indígenas, pela demarcação e homologação de suas terras e respeito por suas culturas; as dos afro-descendentes, pelo reconhecimento e demarcação das terras quilombolas; as das mulheres, por sua dignidade e igualdade e avanço em suas articulações locais, nacionais e internacionais; as dos ribeirinhos pela legalização de suas posses; as dos atingidos pelas barragens, pelo direito à terra equivalente, restituição de seus meios de sobrevivência perdidos e indenização por suas benfeitorias; as dos sem terra, apoiando-os em suas ocupações e em sua e nossa luta pela reforma agrária, contra o latifúndio e os grileiros; as dos Movimentos Ecológicos, contra a devastação da natureza, pela defesa das águas e dos animais.


23. Queremos defender e apoiar o movimento FLORESTANIA, no respeito à agrobiodiversidade e aos valores culturais, sociais e ambientais da Amazônia.


24. Assumimos também o compromisso de respaldar modelos econômicos alternativos na agricultura, na produção de energias limpas e ambientalmente amigáveis; de participar na luta sindical, reforçando a ação dos sindicatos do campo e da cidade, com suas associações e cooperativas e sua luta contra o desemprego, com especial atenção à juventude.


25. Convocamos a todos nós para o trabalho político de base, para a militância em movimentos sociais e partidos ligados às lutas populares; para participar nas lutas por políticas públicas ligadas à educação, saúde, moradia, transporte, saneamento básico, emprego, reforma agrária e para tomar parte nos conselhos de cidadania, nas pastorais sociais, no movimento pela não redução da maioridade penal, no Grito dos Excluídos, nas iniciativas do 1º. de Maio e das Semanas Sociais.


26. Comprometemo-nos ainda a fortalecer e multiplicar nossas Comunidades Eclesiais de Base, criando comunidades eclesiais e ecológicas de base nos bairros das cidades e na zona rural, promovendo a educação ambiental em todos os espaços de sua atuação; fortalecendo a formação bíblica; incentivando uma Igreja toda ela ministerial, com ministérios diversificados confiados a leigas e leigos; assumindo seu protagonismo, como sujeitos privilegiados da missão; fortalecendo o diálogo ecumênico e inter-religioso e superando a intolerância religiosa e os preconceitos.


27. Queremos, a partir das CEBs, repensar a pastoral urbana, como um dos grandes desafios eclesiais, assumir o testemunho e a memória dos nossos mártires e empenhar-nos na Missão Continental proposta pela V Conferência do Episcopado Latino-americano e Caribenho, em Aparecida. Rumo ao XIII Intereclesial no Ceará.


28. Acompanhados pelas comunidades e famílias que nos receberam e caravanas de todo o Regional, celebramos a Eucaristia, presença sempre viva do Crucificado/Ressuscitado, comprometendo-nos com todos os crucificados de nossa sociedade, com suas lutas por libertação, para construirmos outro mundo possível, como testemunhas da Páscoa do Senhor, acompanhados pela proteção e benção da Mãe de Deus, celebrada no Círio de Nazaré e invocada na região amazônica, com outros tantos nomes; no Brasil, com o título de Aparecida, e na nossa América, com o de Virgem de Guadalupe.


29. Escolhida a Igreja do Crato, que irá acolher, nas terras do Pe. Cícero, o XIII Intereclesial, recolocamos nos trilhos o trem das CEBs, rumo ao Ceará, enviando a vocês, irmãos e irmãs das comunidades, nosso abraço fraterno, e cheio de revigorada esperança.


Amém! axé! auere! aleluia!

sexta-feira, 10 de julho de 2009

Superamos a educação neoliberal?



Existe uma indagação que se faz presente em nosso atual momento histórico: Superamos a educação neoliberal fomentada nos anos 90 pelas políticas públicas compensatórias dos governos de centro-direita e neo-conservadora no Brasil? A reflexão que fazemos gira em torno deste debate, principalmente nestes tempos de critica política ao modelo neoliberal até mesmo por parte daqueles que no passado implantaram o sistema. Para se entender esta complexa temática torna-se necessário a relação entre poder, política e educação. Por todos os lados, nestes dias eleitorais, o grande debate acerca da educação se aflora no Brasil. No entanto, percebe-se a existência de dois lados neste debate, duas visões diferenciadas em relação a finalidade da educação e sua real abrangência. O único ponto de convergência entre os dois lados é a consideração da importância da educação para a promoção da cidadania. A primeira visão pode-se chamar de civil democrática. A segunda visão pode-se chamar de produtivista.
A visão civil democrática da educação encara a educação de uma forma universal e a escola se encontra no particular das realidades humanas e sociais onde se aplica uma formação voltada para a promoção da cidadania, o exercício dos direitos sociais e os fundamentos da democracia. É uma educação centrada na figura do educando não-proprietário, não-consumidor, aqueles/as que pertencem às camadas mais pobres da sociedade. O objetivo central é proporcionar a este educando/a a consciência para que se engajem nos movimentos coletivos da sociedade civil em busca de sua cidadanização. Neste perspectiva educacional não há dicotomia entre formação para a cidadania e formação profissional. Segundo Paul Singer "o laço que une os procederes educativos é o respeito e a preocupação pela autonomia do educando, portanto pela auto-formação de sua consciência e pela sua gradativa capacitação para se libertar da tutela do educador e poder prosseguir, sozinho ou em companhia de seus pares, sua auto-educação". Neste visão civil democrática podemos perceber que o educador indica caminhos para o educando conseguir se libertar de tudo aquilo que o prende, até mesmo, sua relação com o educador.
A visão produtivista da educação pensa a escola como preparação de indivíduos ao mercado de trabalho, ou seja, a função social da escola é inserir indivíduos na divisão social do trabalho. De certa forma, há uma tendência economicista nesta visão que busca como finalidade última a acumulação do capital humano. Este indivíduo é visto como potencial para a produção que deve ter o esforço em buscar a capacitação que o insira no mundo produtivo. Pode-se perceber nesta visão uma forte tendência para formar o indivíduo livre dos movimentos coletivos, ou seja, um ser humano sozinho que possa servir aos ideais do Estado, do sistema e dos que dominam os meios de produção, sem questionar e sim defender os mesmos ideais. Como na Grécia antiga, onde o escravo era uma espécie de extensão de seu dono, aqui o indivíduo é uma espécie de extensão dos ideais daqueles que dominam os meios de produção e dos que possuem o monopólio do capital. A lógica educacional se afirma como termômetro da elevação social dos indivíduos a partir do momento em que há um aumento da produtividade, o que eleva a produção social e extermina-se a pobreza.
Diante da globalização em todas as partes do mundo, as transformações político-econômicas ocorridas desde o final da década de 80 tiveram profundas repercussões na América Latina, especificamente no Brasil. Tinha-se no Brasil um problema particular: o gigantismo da inflação que nos áureos anos da desestruturação econômica chegava aos 30% mês até a invenção do Plano Real pelo então ministro da fazenda Fernando Henrique Cardoso que teve o apoio do FMI (Fundo Monetário Internacional).
Este pseudo-sucesso da estabilidade econômica que hoje gira em torno dos 5% ao ano, levou alguns intelectuais e muitos políticos a considerarem as políticas neoliberais capazes de solucionar todos os males econômicos e sociais dos países adeptos ao novo sistema. Contudo, não podemos esquecer que o Brasil sofreu desgaste social, econômico e político ao adotar as medidas impostas pelo FMI aos países que cultuavam o projeto neoliberal. Países como a Bolívia, a Venezuela, a Argentina, o México e o Brasil sofreram golpes econômicos ao implantar este modelo que via no ajuste estrutural a solução dos problemas de controle da inflação.
Hoje, está evidente que o neoliberalismo é bom para o capital e ruim para os trabalhadores porque não apresenta resposta para as questões sociais. O governo FHC ficou devendo uma política social consistente que tivesse compromissos claros com as questões sociais. Deixou de ser social-democrata para se tornar um "neoliberal envergonhado".
Evidentemente, que o governo Lula deu passos significativos para o rompimento com este modelo neoliberal, mas precisa avançar ainda mais na formulação de políticas econômicas solidárias que venham superar o alto índice de desigualdade social no Brasil.
No que se refere a educação, também houve uma tentativa, se bem que frustrada, de implantação do neoliberalismo. Com o fortalecimento da unidade escolar e a descentralização dos recursos públicos no governo FHC criou-se um currículo básico nacional e se deu ênfase à educação a distancia, ambos com profundos problemas ainda a serem resolvidos. No governo Lula aprofundou-se os vínculos entre Estado e sociedade civil, prova disso foram as políticas afirmativas das Cotas e do Prouni. Mas ainda precisamos avançar na superação das políticas neoliberais da gestão anterior, entre as quais destaco os desafios firmados no pacto educacional entre a CNTE (Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação) com o governo FHC no então Plano Decenal de Educação para Todos:
1) A implementação de um currículo básico nacional que respeite a diversidade cultural e regional do país. Neste sentido, temos que avançar na formulação de políticas de autonomia das escolas que, por meio de seus projetos político-pedagógicos, devem construir o núcleo diversificado do currículo a partir de suas próprias necessidades e especificidades.
2) Um piso salarial de no mínimo US$ 300 dólares que possa valorizar os profissionais da educação em seu todo. Neste sentido, tramita no Congresso Nacional a Lei que estabelece o Piso Salarial Nacional para todos os Estados da Federação.
3) E, por fim, uma definição clara do que cabe a cada esfera do governo em relação a educação.
No caso do governo FHC optou-se por uma perigosa descontinuidade administrativa no que se refere a educação. Devido as grandes mobilizações em torno do direito à educação, garantiu-se o direito para a maioria da população, mas ainda de má qualidade nas escolas públicas. O MEC, no governo FHC era e ainda é o órgão gestor de políticas afirmativas para facilitar o trabalho dos estados e municípios. E, no governo FHC, com o ministro Paulo Renato apresentou as seguintes opções as quais considero paliativas:
a) Campanha de mobilização: Educação como prioridade Nacional.
b) Implantação de Parâmetros Curriculares Nacionais.
c) Programa de Descentralização de recursos com repasse dos recursos direto para as escolas.
d) Programa do livro didático.
Devemos dar um destaque positivo para o lançamento do projeto que formalizou o Fundo de Desenvolvimento do Ensino Fundamental e a Valorização do Professor, antigo FUNDEF. No atual governo, tramita no Congresso Nacional a Lei do FUNDEB, que atingirá não somente o Ensino Fundamental, mas toda a Educação Básica. Diante dessa política afirmativa, muitas lições podem ser retiradas dessas inovações e experiências, pois apontam para um projeto educacional que supera dois problemas que estão na base da chamada crise educacional brasileira, a saber: a divisão entre o conceito de ensino público e ensino privado; e, a descentralização e desburocratização do sistema de ensino ainda não construído em sua totalidade.
Para superar a educação neoliberal implementada no Brasil nos anos 80 e 90, precisamos urgentemente formar na perspectiva da cidadania ativa. Numa época onde o pluralismo político torna-se um valor universal com a crescente onda da globalização da economia e das comunicações de um lado, e por outro lado, a emergência do poder local, tudo desponta num outro sistema de ensino realmente possível, cidadão e critico. De antemão, precisa-se afirmar a máxima de que a educação é dever do Estado e superar a idéia da privatização do ensino público e do Estado Mínimo. Mas, também é dever de todos e todas. Com tal conscientização é possível pressionar ainda mais o Estado para que cumpra seu dever de garantir a educação pública de qualidade. Neste contexto, é que surgem os projetos como o Projeto da Escola Cidadã do Instituto Paulo Freire que visa formar as pessoas para a cidadania ativa e para o desenvolvimento sustentável. Sabemos que não se muda a história sem conhecimento e muitos menos se muda 500 anos de história em simples 4 anos. Tudo é processo. Por isso, a necessidade de educar para o conhecimento da co-responsabilidade dos direitos sociais fazendo com que as pessoas se tornem sujeitas de suas histórias e que possam intervir no mercado como sujeitos e não como povo sujeitado, domesticado, coisificado. Neste sentido, o mercado precisa se sujeitar à cidadania.
O nosso apartheid social não será superado com melhor distribuição de renda ou com solidariedade caritativa das classes médias. Será por meio da preparação de jovens para o trabalho profissional e intelectual, com uma educação de qualidade, integral, pública, renovada e, acima de tudo, uma escola comunitária.
Daí a necessidade de duas grandes proposições pedagógicas, a saber: a pedagogia do conflito e a pedagogia da práxis. A teoria pedagógica deve servir de guia para a prática educacional. Foi com essa intenção que Paulo Freire, Sérgio Guimarães e Moacir Gadotti reuniram-se para escrever o livro: Pedagogia: diálogo e conflito. Refletiu-se sobre a nossa situação concreta. Evidentemente que a pedagogia do diálogo contribui para a educação, uma outra educação, pós-neoliberal. Desde os tempos de Sócrates, o diálogo era compreendido como relação privilegiada entre duas pessoas em igualdade de condições.
A Pedagogia do Diálogo é histórica e se encontra em evolução. Seus principais defensores sofrem influencias do pensamento de sua época e das condições históricas da prática pedagógica libertadora. Entre eles, encontra-se Paulo Freire, que oferece a melhor compreensão dessa nova compreensão do diálogo, como podemos notar: o diálogo do oprimido, onde se encontram dois sujeitos (opressor e oprimido) que buscam apenas o significado das coisas, é um encontro que se realiza na práxis (ação + reflexão).
É neste sentido, da busca incondicional por uma nova educação para o século XXI, que acreditamos estar em processo de desestabilização do paradigma neoliberal. Já existem indícios deste momento novo, o surgimento de uma era pós-neoliberal. A educação brasileira ainda precisa avançar muito. Acabar com os mandos e desmandos daqueles que se encontram no poder é uma delas, pois sem gestão democrática nas escolas não se ensinará aos educandos o novo mundo, a nova educação, o novo tempo que queremos.

Claudemiro Godoy do Nascimento
Filósofo e Teólogo. Mestre em Educação/Unicamp. Doutorando em Educação/UnB. Professor da Universidade Federal do Tocantins – UFT/Campus de Arraias.
E-mail:
claugnas@uft.edu.br

terça-feira, 7 de julho de 2009

Bento XVI e Barak Obama: novas perspectivas de diálogo com o islã



Faustino Teixeira

Os meses de maio e junho de 2009 vão ficar marcados na história como sinais de uma nova perspectiva de diálogo do Ocidente com o islã. Dois acontecimentos particulares marcam esse novo caminho: a viagem do papa Bento XVI na Terra Santa (08 a 15 de maio) e o discurso de Barak Obama na Universidade de Al azhar, no Cairo (Egito), no dia 04 de junho de 2009. Há uma feliz coincidência entre essas duas iniciativas dialogais com respeito ao islã. São marcos de um novo tempo, bem distinto daquele marcado pela idéia de “choque de civilizações”, defendida por Samuel Huntington e aplicado pela política de George Busch. Como tão bem mostrou Edward Said em artigos singulares, a idéia de “choque de civilizações” acaba mobilizando o “lado mortífero” dos nacionalismos. As culturas e civilizações não são monolíticas ou homogêneas, mas pontuadas por intercâmbios, trocas e aprendizados fundamentais. Na verdade, elas afirmam-se mais profundamente quando entram em parceria com os outros, com os diferentes. O grande desafio do tempo atual é saber “hospedar o outro”, deixar-se marcar pelo aprendizado da diferença.
Nada mais necrófilo do que encerrar as civilizações e as identidades em cápsulas enclaustradas, expurgadas da dinâmica viva que marca e anima a história humana. Como mostrou Edward Said, a história não é somente palco de guerras imperiais e de religião, mas também espaço de “trocas, fertilização mútua e compartilhamento”. O islã tem sido um “trauma duradouro” para o Ocidente. Durante séculos veio identificado com o terror, a devastação e o demoníaco. Nos últimos tempos, com o episódio da derrubada das Torres Gêmeas, em setembro de 2001, esse temor se expandiu, criando um círculo vicioso de resistência e hostilidades contra os muçulmanos do mundo inteiro.
A recente viagem do papa Bento XVI à Terra Santa, sinaliza uma mudança de perspectiva com respeito mesmo a certos posicionamentos que marcaram o início de seu pontificado, como o caso do discurso na Universidade Regensburg, em setembro de 2006. Essa viagem ocorre numa nova conjuntura, onde as relações com o islã tinham sido reaquecidas por importantes gestos de aproximação como a Mensagem Interconfessional de Amã, (2005) e a carta das 138 lideranças muçulmanas dirigida ao papa e outras lideranças religiosas mundiais. Também em âmbito do Vaticano, visualizava-se uma nova perspectiva geopolítica, com o retorno da autonomia do Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-Religioso, e a nomeção do cardeal Jean-Louis Tauran, em junho de 2007, para o cargo de presidente desse dicastério romano: um hábil diplomata profissional que poderia favorecer um novo rumo para a dinâmica de cooperação com o islã.
Preparada com um particular cuidado, a viagem do papa mostrou-se dinâmica e supreendente para os que acompanham a conjuntura eclesiástica nos últimos 40 anos. Com respeito à delicada situação de relação da igreja católica com o islã, a atuação do papa foi de abertura inusitada. Diante do rei da Jordânia, Abdullah II, o papa fala de seu “profundo respeito pela comunidade muçulmana” e de sua esperança num novo incremento nas relações entre cristãos e muçulmanos. Um ponto comum entre as duas tradições foi muito incentivado: de vinculação entre o mandamento do amor a Deus e do amor fraterno. Na Cúpula da Rocha, um dos três lugares mais sagrados para os muçulmanos, o papa enaltece a “ecumene abraâmica”, que deve reunir as três grandes tradições monoteístas em favor da compaixão universal. Sublinha o desafio essencial do empenho em favor da superação da incompreensão que marcou o passado em vista de um projeto comum de afirmação de um mundo de fraternidade e justiça. Quanto ao diálogo inter-religioso, o papa fala sobre a importância da comunhão na diversidade. Em sua visita à Cisjordânia, em Belém, defende com ênfase o Estado palestino e presta solidariedade aos refugiados do campo de Aida. Lança criticas contundentes contra o imponente “muro do apartheid”, construído para isolar os refugiados, separando famílias e obstruindo a vida. O grande mote foi o da busca da paz, em todos os sentidos.
O discurso de Barak Obama vai num sentido semelhante. Sua intenção era de selar “um novo começo entre os Estados Unidos e os muçulmanos em todo o mundo”. A perspectiva dialogal é clara: “É preciso que haja um esforço sustentado para ouvirmos uns aos outros; aprendermos uns com os outros; respeitarmos uns aos outros, e buscar um terreno comum”. O presidente americano reconhece o patrimônio de arte, humanismo e tolerância que marcam a trajetória do islã ao longo da história: “a cultura islâmica nos deu arcos majestosos e torres que se elevam ao céu; poesia atemporal e musica preciosa, caligrafia elegante e lugares de contemplação pacífica”. Em sua fala, rejeita o “espectro do choque de civilizações”, que se viu reforçado com os ataques de 11 de setembro, provocando uma problemática identificação entre islã e violência. Assim como Bento XVI, o presidente americano defendeu a criação de um Estado palestino e questionou os assentamentos israelenses, que estariam solapando os esforços em favor da paz.
Tomou também a defesa dos refugiados palestinos, encerrados nos campos da Cisjordânia e da Faixa de Gaza, sofrendo “humilhações diárias”. Sinaliza em seu discurso que uma tal situação mostra-se “intolerável”. Rica também sua defesa da liberdade religiosa: “É esse espírito de que precisamos hoje. As pessoas em todos os paises devem ser livres para escolher e viver sua fé baseadas na persuasão de suas mentes, corações e almas. Essa tolerância é essencial para que a religião floresça”.
São discursos convergentes num tempo marcado pelas afirmações identitárias agressivas e excludentes. Há muito o que refletir sobre tudo isso. Talvez seja um marco de sensibilidade alternativa que vem surgindo e que deve contagiar a todos com uma alegria e esperança singulares, na luta em favor da construção de um outro mundo possível. Há que ampliar essas fileiras.

Fonte:
http://amaivos.uol.com.br/amaivos09/noticia/noticia.asp?cod_Canal=66&cod_noticia=12652

domingo, 5 de julho de 2009

Carta de Hugo Blanco: Bagua



Hugo Blanco


Bagua

Começo assinalando uma diferençaa entre a "modernidade" e a cosmovisão indígena:
O mundo civilizado vê o passado como algo superado. "Primitivo" tem implicância pejorativa. O moderno, o último, é o melhor.
Em meu idioma, o quechua, "Ñaupaq" significa "adiante" e ao mesmo tempo "passado". "Qhepa" significa "posterior", no lugar e no tempo.
Agora vemos que "o progresso" está levando à extinção da espécie humana, através do esquentamento global e de muitas outras formas de ataque à natureza.

Quem são os povos amazônicos?

A população amazônica peruana abarca 11% da população do país. Habita a mais extensa das três regiões naturais do Perú: o norte, o centro e o sul orientais. Fala dezenas de línguas e está composta por dezenas de nacionalidades.
Os habitantes da selva sul-americana são os indígenas menos contaminados pela "civilização", cuja etapa atual é o capitalismo neoliberal.
Não foram conquistados pelo incanato, tampouco os invasores espanhóis os dominaram. O indígena serrano rebelde Juan Santos Atawallpa, ao ser acossado pelas tropas espanholas, retirou-se para a selva, no seio desses povos, em um cuja língua havia aprendido; as forças coloniais não conseguiram vencê-lo.
Na época da exploração da borracha, o capitalismo ingressou na selva, onde reduziu à escravidão e massacrou as populações nativas; por essa razão, muitas delas se mantêm até hoje em isolamento voluntário, não desejam nenhum contato com a "civilização".
Os irmãos amazônicos não compartem os preconceitos de origem religioso do "mundo civilizado" de cobrir o corpo com trapos, ainda que faça um calor intenso. A forte ofensiva moral dos missionários religiosos e as leis que defendem esses preconceitos conseguiram que alguns deles cubram partes do corpo, especialmente quando vão às cidades.
Sentem-se integrantes da Mãe Natureza e a respeitam profundamente. Quando têm que cultivar, não semeiam um produto. Despejam um lugar do bosque, põem nele diferentes plantas de distintas contexturas, de diferentes ciclos vitais, juntas, imitando a natureza. Um palto ou abacate e, misturado com ele, uma abóbora, ao lado uma bananeira, milho, yuca (mandioca), uma palmeira de frutos comestíveis. Após um tempo, devolvem esse lugar à natureza e abrem outro lugar para o cultivo.
Saem para a caça e a coleta; quando vêem algo digno de ser caçado, o fazem; passam por seu cultivo, se vêem que algo está maduro, o recolhem, se notam que devem fazer algum acerto, o fazem; depois de um tempo, regressam a sua vivenda; não se pode afirmar se estiveram passeando ou trabalhando.
Bebem a água de rios e arroios e também se alimentam de peixes.
Inclusive os indígenas serranos, mais contaminados pela "civilização", os qualificam de ociosos; não queren "progredir", só querem viver bem.
Habitam choças coletivas. Não há "partidos" nem votações, sua organização social e política é a comunidade. Não manda o chefe, manda a personagem coletiva, a comunidade.
Eles vivem aí desde milênios antes da invasão europeia, milênios antes da constituição do Estado peruano, que jamais os consultou para elaborar suas leis, com as quais agora os ataca, pretendendo exterminá-los.

As empresas multinacionais

Essa vida aprazível como parte da natureza agora se vê agredida pela voracidade das empresas multinacionais: extratoras de petróleo, gás e minerais. Depredadoras dos bosques.
A essas empresas, como reza a religião neoliberal, não lhes importa a agressão à natureza nem a extinção da espécie humana, o único que lhes interesa é a obtenção da maior quantidade de dinheiro possível no menor tempo possível.
Envenenam a água dos rios, arrasam as árvores convertendo-as em madeira. Matam a selva amazônica, mãe dos nativos amazônicos. Isso é também matá-los.
Há abundante legislação peruana que os protege; entre outras, o convênio 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que é lei de nível constitucional, pois foi aprovada pelo Congresso. Esse convênio estipula que qualquer disposição sobre os territórios indígenas deve ser consultada com as comunidades. Também existem leis de proteção ao meio-ambiente.
Mas a legislação peruana é apenas um pequeno obstáculo para as grandes companhias que, mediante o suborno, logram por todo o Estado Peruano a seu serviço: Presidente da República, maioria parlamentar, Poder judicial, Forças Armadas, Polícia, etc. Os meios de comunicação também estão em suas mãos.
A serviço dessas empresas, que são seus amos, Alan García elaborou a teoría do "cachorro do hortelão". Assinala que os pequenos camponês ou as comunidades indígenas, como não têm grandes capitais para investir, devem deixar a passagem livre para as grandes companhías depredadoras da natureza, como as companhias mineiras na serra e as extratoras de hidrocarburetos na selva. Em todo o território nacional, devem deixar a passagem livre para as grandes companhias agro-industriais, que matam o solo com o monocultura e os agrotóxicos, e que trabalham produtos de exportação e não para o mercado interno. Segundo ele, essa é a política que se necessita para que o Peru progrida.
Para implementar essa política, obteve do Poder Legislativo a autorização para legislar, segundo disse, para adequar-nos ao Tratado de Livre Comércio (TLC) com os EEUU.
Essa legislação foi uma catarata de decretos-lei contra a organização comunal dos indígenas da serra e da selva, que estorva o saqueio imperialista, e abriu as portas à depredação da natureza com o envenenamento dos rios, a esterilização do solo com a monocultura agro-industrial, com o uso de agrotóxicos e o arrasamento da selva com a extração de hidrocarburetos e madeira.
Por falta de espaço não farei uma análise desses decretos-lei; quem o requeira que busque outras fontes.


Reação indígena

Naturalmente, indígenas da serra e da selva reagiram contra esse ataque e realizam muitas valentes lutas.
Mas é indubitável que os indígenas menos contaminados, os que melhor conservam os princípios indígenas de amor à natureza, de coletivismo, de "mandar obedecendo", do "bem viver", são os amazônicos, que estão à frente das lutas.
A maior organização dos indígenas amazônicos é a Asociação Inter-étnica da Selva Peruana (AIDESEP), que tem bases no norte, no centro e no sul da amazônia peruana.
Exigem a derrogatória dos decretos-lei que afetam sua vida impulsionando a contaminação de rios e a derrubada de bosques.
Seu método de luta consiste na interrupção de vias de transporte terrestre, interrupção do transporte fluvial, muito usados pelas empresas multinacionais, a tomada de instalações, a tomada de campos de aviação. Quando vem a repressão, retiram-se denunciando que o governo o que quer é repressão e não diálogo.
Em agosto do ano passado, obtiveram um triunfo, logrando que o Congresso derrogasse dois decretos-lei anti-amazônicos.
Este ano, iniciaram sua luta em 9 de abril. O governo, com manobras, evitou debater com eles. E, com mais manobras, evitou que o parlamento discutisse a inconstitucionalidade de um decreto-lei que a comissão parlamentar encarregada de estudá-lo achou anticonstitucional.

5 de junho

O 5 de junho, dia mundial do meio ambente, foi eleito por Alan García para desafogar sua raiva anti-ecológica contra os defensores da Amazônia,
Usou o corpo policial especializado na repressão aos movimentos sociais, a Direção de Operações Especiais (DIROES).
Foram atacados os irmãos awajun e wampis que bloqueavam a estrada, próximo à povoação de Bagua. Às 5 da manhã, começou o massacre, desde helicópteros e por terra. Não se sabe quantos são os mortos. Os policiais não permitiam o socorro aos feridos, que levavam presos, nem o recolhimento dos cadáveres pelos familiares.

Passo a palavra a Juan, que esteve em Bagua:

Por assuntos netamente laborais, no día de ontem tive a oportunidade e o "privilégio" de estar por algunas horas nas cidades de Bagua Chica e Bagua Grande; o ambiente que se respira é tenebroso, as "histórias" que se contam são macabras e até inverossímeis, mas as pessoas que as contam são pessoas que viveram o terror, são testemunhas privilegiadas da outra realidade que o Peru oficial, os meios de comunicação, estão tratando de ocultar, porque tive a oportunidade de ver vários repórteres de canais como o 2, o 4, o 5, o 7, o 9 etc. etc., mas não se diz nada do que as pessoas, testemunhas presenciais, repetem com insistência e até o cansaço da matança que se fez na sexta-feira 05.
Dizem os baguinos, praticamente 100% dos com quem conversei, produzidos os enfrentamentos, controlada a situação, os cadáveres dos nativos ficaram largados por toda a estrada próxima e nas imediações da Curva do Diabo; a polícia tomou o controle, de imediato se declarou o toque de queda, começou o empilhamento dos cadáveres, a cremação em plena estrada, outros foram levados a lugares não determinados, nem localizados, embolsados e levados aos helicópteros da polícia que em número de até 3 apoiaram o operativo. Muitos desses cadáveres de humildes peruanos foram jogados nos ríos Marañón e Utcubamba, os mestiços de Bagua Chica y Bagua Grande estimam em um mínimo de 200 a 300 mortos civis.
Dizem que os homens não choram ou não devem chorar, sou um homem de fato e direito, em minha vida adulta só chorei em três oportunidades, quando faleceram meus pais e dois de meus irmãos mais velhos, mas à noite vendo a reportagem de inimigos íntimos e recordando o que tetstemunhei durante o dia e a tarde de ontem, lhes confesso que me puz a chorar como uma criança.
Para mim não há distinção entre os mortos bons e os maus, tanto os nativos e os policiais são seres humanos, os únicos culpados desse horrendo crime contra a humanidade são os políticos, muito especialmente o APRA e os fujimoristas.
Amigos e compatriotas, não sejamos indiferentes à dor de nossos irmãos nativos amazônicos, façamos chegar nosso protesto aos meios de comunicação que manipulam, escondem e tergiversam a informação, peçamos que os responsáveis políticos do governo aprista sejam sancionados, que os decretos em sua totalidade sejam derrogados. Agora!!!

Muito obrigado por haver lido minha experiência.

A Associação Pró Direitos Humanos (APRODEH) relata: "Familiares e amigos buscam pessoas que poderiam encontrar-se refugiadas. Vão buscá-los em Bagua Grande, Bagua Chica e no quartel Militar El Milagro e não as encuentram". Chama a atenção sobre "a pouca ou nenhuma informação que dão as autoridades aos familiares". Ademais, Aprodeh informou a existência de 133 detidos e 189 feridos.
Mencionou também que as pessoas detidas no quartel El Milagro se encontram nessa instalação militar há 7 dias sem uma ordem de detenção que respalde essa privação da libertade. Comprovaram-se maltratos a alguns detidos.
Os irmãos amazônicos se defenderam com lanças e flechas; depois usaram as armas arrebatadas aos agressores. A ira fez que tomassem uma instalação petroleira, na qual capturaram um grupo de policiais, que conduziram à selva; justiçaram alguns deles.
A população mestiça urbana de Bagua, indignada com o massacre, assaltou o local do APRA, o partido do governo, e escritórios públicos, queimando seus veículos. A polícia assassinou vários moradores, entre eles crianças.
O governo decretou a suspensão das garantias e o toque de recolher a partir das 3 p.m.
Amparados por essas medidas, os policiais entravam nas casas para capturar nativos refugiados nelas. Muitos deles tiveram que se refugiar na igreja.
Não se sabe o número de presos e estes não podem ter o auxílio de advogados.
Fala-se de centenas de desaparecidos.

Solidariedade

Afortunadamente a solidaridade é comovedora.
No Peru, organizou-se uma frente de solidaridade.
No dia 11 houve manifestações de protesto pelo massacre em várias cidades do país: Em Lima, que tradicionalmente se encontra de costas para o Peru profundo, fala-se de 4,000 pessoas que marcharam sob a ameaça de 2.500 policiais; houve enfrentamento próximo ao local do Congresso da República. Em Arequipa, mais de 6 mil; na zona de La Joya houve bloqueio da estrada Panamericana. Em Puno, houve paralização de atividades, se atacou a sede do partido do governo. Houve manifestações em Piura, Chiclayo, Tarapoto, Pucallpa, Cusco, Moquegua e em muitas outras cidades.
No exterior são numerosas as ações de protesto em frente às embaixadas peruanas; temos notícias de Nova Iorque, Los Ángeles, Madri, Barcelona, Paris, Grécia, Montreal, Costa Rica, Bélgica, entre outras.
A encarregada de assuntos indígenas da ONU levantou sua voz em protesto.
Também se manifestou a Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Jornais do exterior denunciam o massacre, como La Jornada do México.
A cólera aumenta pelas declarações de Alan García à imprensa europeia de que os nativos não são cidadãos de primeira categoria.
A selva continua em movimento em Yurimaguas, na zona Machiguenga do Cusco e em outras regiões.
Os irmãos amazônicos e os que os apoiam exigem a derrogatória dos decretos-lei 1090, 1064 e outros, que abrem as portas à depredação da selva.
Apesar de que a comissão do parlamento encarregada do tema tenha ditado a derrogatória de alguns decretos-lei por serem anticonstitucionais, a Câmara optou por não discuti-los e declará-los "em suspenso", como queria o APRA. Aos 7 congressistas que protestaram por essa irregularidade os suspenderam por 120 dias, de modo que a ultradireita do parlamento (APRA, Unidad Nacional e o fujimorismo) terá em suas mãos a eleição da próxima mesa diretora do parlamento.
O governo criou uma "mesa de diálogo" na qual se exclui o organismo representativo dos indígenas amazônicos, AIDESEP, cujo dirigente teve que se refugiar na embaixada da Nicarágua, pois o governo o acusa dos crimes de 5 de junho ordenados por Alan García.
A luta amazônica há de continuar, exigindo o respeito à selva.
Os nativos amazônicos sabem que o que está em disputa é a sua própria sobrevivência.
Esperamos que a população mundial tome consciência de que eles estão lutando em defesa de toda a espécie humana, já que a selva amazônica é o pulmão do mundo.

13 de junho de 2009

Tradução: Sergio Granja

Fonte:
http://www.socialismo.org.br/portal/internacional/38-artigo/979-carta-de-higo-blanco-bagua

sexta-feira, 3 de julho de 2009

Ocupação Dandara, um direito constitucional



Professor Doutor José Luiz Quadros de Magalhães[1]

Desde 09 de abril de 2009, mais de mil famílias sem-casa e sem-terra resistem na Comunidade (Ocupação) Dandara, onde ocuparam cerca de 400 mil metros quadrados de terreno abandonado, no Céu Azul, região na Nova Pampulha, em Belo Horizonte, MG. Dia 09 de junho de 2009, o desembargador Tarcísio José Martins Costa, da 9ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, cancelou a decisão de outro desembargador que tinha suspendido uma Liminar de reintegração de pose e reabilitou a Liminar de reintegração de posse em nome da construtora Modelo, autorizando assim que a Polícia faça o despejo das mais de 4 mil pessoas pobres que estão lá. O povo não tem para onde ir, tem direito de permanecer na posse do terreno abandonado há 40 anos e está disposto a resistir a uma tentativa de despejo. Isso pode causar um massacre em plena capital mineira.

Tramita na 20ª Vara Cível da Comarca de Belo Horizonte uma Ação de Reintegração de posse com pedido de liminar proposta pela agravada onde está escrito que sua propositura se justifica “em face de uma operação orquestrada por pessoas que se dizem integrantes de movimento sem terra – MST”.

Os termos da petição mostram por meio de nomeações e expressões toda uma carga de preconceitos que encobrem os reais fatos que fundamentam os direitos fundamentais neste caso envolvidos. Para o caso não interessa se são ou não integrantes do MST, pois todas as pessoas têm direito à dignidade, a moradia, trabalho, alimentação, direitos que não podem ser suprimidos por um “suposto” direito de propriedade que se perdeu pelo não cumprimento da função social da propriedade. O direito de propriedade como direito absoluto há muito não existe mais, em nenhum ordenamento jurídico do mundo. Desde que as pessoas perceberam, em diversos lugares e em diversos momentos, que a terra e os bens naturais do planeta são limitados, e que um direito de propriedade que se fundamentava nos antigos argumentos naturalizantes do liberalismo econômico não mais se sustenta diante das necessidades humanas e da igualdade jurídica, o direito de propriedade passou as ser condicionado ao cumprimento de função social.
A dignidade humana é a base dos ordenamentos constitucionais democráticos do final do século XX e do século XXI e não mais as fundamentações egoístas e individualistas de um direito liberal que acabou na primeira guerra mundial, e que se sustenta apenas na cabeça de algumas pessoas desavisadas ou de pessoas que querem sustentar seus privilégios como se direitos fossem.
Os ordenamentos constitucionais democráticos que se constroem hoje no mundo, incluindo a nossa Constituição de 1988 trazem um sistema coerente de normas jurídicas que se fundamentam nos direitos humanos constitucionais entre eles os direitos sociais ao trabalho, justa remuneração, saúde, moradia, educação, função social da propriedade rural e urbana, liberdade, igualdade jurídica, democracia popular, entre outros. Não há hierarquia entre estes direitos, mas sim complementaridade. Estes direitos são indivisíveis e devem ser compreendidos como direitos históricos que se realizam diante de casos concretos complexos. Deixamos de lado, portanto, toda visão compartimentalizada, naturalizada ou descontextualizada do Direito.
Podemos acrescentar mais: o Direito não pode ser mais instrumento de dominação onde a propriedade se colocava como o centro do sistema jurídico. A finalidade deste ordenamento democrático fundado nos direitos humanos é a vida com dignidade e liberdade, uma vez que não há liberdade possível na miséria. Por isto que os direitos fundamentais (direitos humanos na perspectiva constitucional) são indivisíveis.

A propriedade não é e não pode ser mais importante do que a vida digna e livre. Isto não tem nenhum sentido nas ordens constitucionais democráticas atuais. Logo, fatos que eram comuns no passado não podem ser hoje tolerados: em nome de uma propriedade usada para a especulação, não utilizada para nenhum fim social (função social), retirar legítimos ocupantes que lutam por direitos constitucionais de forma democrática participativa, como exigem as democracias atuais. Não há fundamento jurídico para que o Estado (que pertence ao povo) por meio do Judiciário (que pertence ao povo, pois é republicano) e da Polícia (que deve garantir a vida das pessoas e jamais ameaçar a vida de uma coletividade em nome de uma propriedade que deixou de existir por não cumprir sua função social) retire estas pessoas (mais de 1.000 famílias sem-casa e sem-terra) da ocupação Dandara.

Pensemos, pois, em termos constitucionais:
a) A constituição é um sistema coerente de normas;
b) A base da Constituição são os direitos fundamentais;
c) Os direitos fundamentais são indivisíveis, ou seja, não há liberdade sem dignidade e vice-versa.
d) Decorrente das constatações anteriores, podemos perceber que os direitos fundamentais não são hierarquizados “a priori” e que a base destes direitos é a dignidade das pessoas com liberdade;
e) A propriedade, há quase cem anos, deixou de ser a base do direito constitucional;
f) Logo, não podemos, jamais, em nome da propriedade, ameaçar a vida de quem quer que seja;
g) Logo não pode a polícia, órgão constitucional de proteção do direito humano à segurança, ser usada para agir contra a segurança das pessoas pondo em risco a integridade e a vida das pessoas. A vida digna e livre é fundamento de toda ordem constitucional democrática atual;
h) Podemos acrescentar ainda que ninguém está obrigado a cumprir ordens ilegais e inconstitucionais e que os responsáveis por estas ordens devem ser responsabilizados;
i) Finalmente: qualquer ordem judicial não pode jamais escolher entre um outro direito fundamental se todos os direitos envolvidos puderem ser preservados diante do caso concreto;
j) Em caso de escolha não há como se afastar o alicerce do direito constitucional democrático que é a vida com dignidade em nome da propriedade, ainda mais de uma propriedade não utilizada;
k) Não há no caso da ocupação Dandara nenhuma justificativa para se comprometer a VIDA de milhares pessoas em nome de um direito de propriedade que jamais cumpriu sua função social que, portanto, não existe mais.

É muito importante que paremos imediatamente interpretações jurídicas legalistas, descontextualizadas e inconstitucionais, que ameaçam a vida e a integridade das pessoas. O direito constitucional contemporâneo é pela vida com dignidade e nosso ordenamento condiciona toda a nossa ordem econômica e social aos princípios dos direitos fundamentais. As normas infra-constitucionais não podem ser interpretadas/aplicadas contra a constituição.
Não é possível ignorar os princípios constitucionais na solução dos casos concretos. Não só uma lei pode ser inconstitucional, mas sua interpretação e aplicação também, quando aplicadas contra os princípios e normas constitucionais.
A finalidade de nosso ordenamento legal constitucional é a liberdade com dignidade e segurança de todas as pessoas e não apenas dos proprietários ricos como foi nos séculos XVIII e XIX e boa parte do século XX. Romper com uma matriz superada teoricamente e superada na prática pelas transformações sociais, mas que ainda habita alguns discursos jurídicos, é fundamental para que finalmente sejamos capazes de construir no Brasil uma verdadeira ordem republicana fundada na igualdade perante a lei e no respeito à constituição e logo aos direitos fundamentais de todas as pessoas iguais. Isto é a República que ainda estamos por conquistar: um espaço constitucional de respeito à vida, à dignidade e a segurança com igualdade de direitos sem privilégios relativos à origem ou posição social e econômica; cargo ou função; cor, sobrenome, etnia, gênero ou opção sexual, ou qualquer outra diferença que as sociedades historicamente produziram ou venham a produzir.

Belo Horizonte, 15 de junho de 2009.

José Luiz Quadros de Magalhães,
Doutor em Direito Constitucional, professor da UFMG e da PUC Minas, autor de inúmeros livros e artigos, grande defensor dos Direitos Humanos,
E-mail:
ceede@uol.com.br
[1] Doutor em Direito Constitucional, professor da UFMG e da PUC Minas, autor de inúmeros livros e artigos, grande defensor dos Direitos Humanos, E-mail: ceede@uol.com.br

quarta-feira, 1 de julho de 2009

Media Provisória 458 oficializa a grilagem da Amazônia



A Coordenação Nacional da Comissão Pastoral da Terra, CPT, se junta ao clamor nacional diante de mais uma agressão ao patrimônio público, ao meio ambiente e à reforma agrária.
No dia 4 de junho de 2009, o Senado Federal aprovou a MP 458/2009, já aprovada com alterações pela Câmara dos Deputados, e que agora vai à sanção presidencial. É a promoção da “farra da grilagem”, como se tem falado com muita propriedade.
Com o subterfúgio de regularização de áreas de posseiros, prevista na Constituição Federal, o governo federal, em 11 de fevereiro de 2009 baixou a MP 458/2009 propondo a “regularização fundiária” das ocupações de terras públicas da União, na Amazônia Legal, até o limite de 1.500 hectares. Esta regularização abrange 67,4 milhões de hectares de terras públicas da União, ou seja, terras devolutas já arrecadadas pelo Estado e matriculadas nos registros públicos como terras públicas e que pela Constituição deveriam ser destinadas a programas de reforma agrária. Desta forma a Medida Provisória 458, agora às vésperas de ser transformada em lei, regulariza posses ilegais. Beneficia, sobretudo, pessoas que deveriam ser criminalmente processadas por usurparem áreas da reforma agrária, pois, de acordo com a Constituição, somente 7% da área ocupada por pequenas propriedades de até 100 hectares (55% do total das propriedades) seriam passiveis de regularização. Os movimentos sociais propuseram que a MP fosse retirada e em seu lugar se apresentasse um Projeto de Lei para que se pudesse ter tempo para um debate em profundidade do tema, levando em conta a função social da propriedade da terra. O Governo Federal, entretanto, descartou qualquer discussão com os representantes dos trabalhadores do campo e da floresta.
Esta oficialização da grilagem da Amazônia está chamando a atenção de muitos pela semelhança com o momento histórico da nefasta Lei de Terras de 1850, elaborada pela elite latifundiária do Congresso do Império, sancionada por D. Pedro, privatizando as terras ocupadas. Hoje é um presidente republicano e ex-operário quem privatiza e entrega as terras da Amazônia às mesmas mãos que se tinham apoderado delas de forma ilegal e até criminosa.
Esta proposta de lei, que vai para a sanção do Presidente Lula, pavimenta o espaço para a expansão do latifúndio e do agronegócio na Amazônia, bem ao gosto dos ruralistas. Por isto não foi sem sentido a redução aprovada pela Câmara dos Deputados de dez para três anos no tempo em que as terras regularizadas não poderiam ser vendidas e a regularização de áreas para quem já possui outras propriedades e para pessoas jurídicas. Daqui a três anos nada impede que uma mesma pessoa ou empresa adquira novas propriedades, acumulando áreas sem qualquer limite de tamanho. Foi assim que aconteceu com as imensas propriedades que se formaram na Amazônia, algumas com mais de um milhão de hectares, beneficiadas com os projetos da SUDAM.
Ironia do destino, Lula, que em 1998 afirmou que “se for eleito, resolverei o problema da reforma agrária, com uma canetada”, ao invés de executar a reforma agrária prometida, acabou com uma canetada propondo a legalização de 67 milhões de hectares de terras griladas na Amazônia, um bioma que no atual momento de crise climática mundial aguda grita por preservação para garantir a sobrevivência do planeta.
O mesmo presidente que, em entrevista à Revista Caros Amigos, em novembro de 2002 dizia: “Não se justifica num país, por maior que seja, ter alguém com 30 mil alqueires de terra! Dois milhões de hectares de terra! Isso não tem justificativa em lugar nenhum do mundo! Só no Brasil. Porque temos um presidente covarde, que fica na dependência de contemplar uma bancada ruralista a troco de alguns votos” acabou sendo o refém desta bancada, pior ainda, recorreu à senadora Kátia Abreu, baluarte da bancada ruralista, inimiga número um da reforma agrária, para a aprovação da medida no Senado. Já cedera à pressão dos ruralistas aprovando a Lei dos Transgênicos. Não atualizou os índices de produtividade estabelecidos há mais de 30 anos atrás, o que poderia possibilitar o acesso a novas áreas para reforma agrária. Não se empenhou na aprovação da proposta de emenda constitucional PEC 438/01 que expropria as áreas onde se flagre a exploração de trabalho escravo. Além disso, promoveu à condição de “heróis nacionais” os usineiros e definiu como empecilhos ao progresso as comunidades tradicionais, os ambientalistas e seus defensores.
Lula que, com o Programa Fome Zero, teve a oportunidade de realizar um amplo processo de reforma agrária, transformou-o, porém, em um cartão do Bolsa Família que a cada mês dá umas migalhas a quem poderia estar produzindo seu próprio alimento e contribuindo para alimentar a nação.
Os movimentos sociais do campo, inclusive a CPT, vem defendendo há anos, por uma questão de sabedoria e bom senso, um limite para a propriedade da terra em nosso País. Mas o que vemos é exatamente o contrário. Cresce a concentração de terras, enquanto que milhares de famílias continuam acampadas às margens das rodovias à espera de um assentamento que lhes dê dignidade e cidadania, pois, como bem afirmaram os bispos e pastores sinodais que subscreveram o documento Os pobres possuirão a terra: “A política oficial do país subordina-se aos ditames implacáveis do sistema capitalista e apóia e estimula abertamente o agronegócio”.
Goiânia, 09 de junho de 2009.


Dom Ladislau Biernaski
Presidente da Comissão Pastoral da Terra (CPT)

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