quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

MST: profecia que incomoda


Frei Gilvander Moreira[1]

No dia 28 de setembro de 2009, integrantes do MST - Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - ocuparam a Fazenda Capim, que abrange os municípios de Iaras, Lençóis Paulista e Borebi, região central do estado de São Paulo. A área faz parte do chamado Núcleo Monções, um complexo acima de 30 mil hectares divididos em várias fazendas e que pertencem à União. A fazenda Capim, com mais de 2,7 mil hectares, foi grilada pela transnacional Sucocítrico CUTRALE, uma das maiores empresas produtora de suco de laranja do mundo. O MST destruiu dois hectares de laranjeiras
[2] para neles plantar alimentos básicos como feijão e milho. A ação teve como objetivo chamar a atenção para o fato de uma terra pública ter sido grilada por uma grande empresa e assim pressionar o Poder Judiciário a decidir, já que, há anos, o INCRA[3] entrou com ação para ser imitido na posse destas terras que são da União.
As primeiras ocupações na região aconteceram há 14 anos. Algumas fazendas foram arrecadadas e hoje são assentamentos, como o de Zumbi dos Palmares. A maioria das terras, porém, ainda está nas mãos de grandes grupos econômicos. A CUTRALE instalou-se lá há poucos anos. Sabia que as terras eram griladas, mas esperava, porém, que houvesse regularização fundiária a seu favor.
A mídia - latifúndio da comunicação - que ao invés de informar, desinforma - esbravejou contra o MST condenando-o. Após uns dez minutos de imagens e depoimentos acusando o MST, o Jornal Nacional da TV gLOBO, em dez segundos, fez referência a uma nota do MST. Isso se chama, em globalês, ouvir o outro lado. Alguns senadores(as), deputados(as) e outros tantos "ilustres" representantes do agronegócio (grande negócio que gera morte para parte do povo brasileiro e vultosos lucros para uma minoria) e do status quo capitalista vociferaram contra os Sem Terra na “defesa das laranjas da Cutrale”, desculpa esfarrapada para construir uma cortina de fumaça diante das justas reivindicações do MST. Vandalismo? Violência? Terrorismo? Arruaça? Atentado à democracia? (Que tipo de democracia?) As expressões acima foram bombardeadas contra o MST, mas é necessário perguntar: Quem, de fato, pratica violência social há séculos neste país? Quem atenta contra a democracia? O MST ou CUTRALE? Diga o que tu fazes e com quem andas, que direi quem tu és.
A ação do MST e o ódio cuspido pelos poderosos acordaram em mim profecias bíblicas dos profetas Elias, Amós, Miqueias e do galileu de Nazaré.
Antes de passar a palavra aos profetas da Bíblia, permito-me perguntar: Quantos de nós já se dispôs a fazer a experiência de viver sob lonas e gravetos – em condições similares aos bichos no meio do mato, ou em condições piores do que nas favelas? Quem de nós já viveu à beira das estradas, em lugares ermos e remotos, sujeito a ataques noturnos repentinos? Quantos já permaneceram num acampamento do MST por mais do que um dia, observando o que comem (e, sobretudo, o que deixam de comer), o que lhes falta, como são suas condições de vida? Quantos já viram o desespero das mães procurando, aos gritos, pelos filhos enquanto o acampamento arde em fogo às 3 da madrugada, atacado por jagunços?
Sentindo-me na pele dos Sem Terra, convido você para visitar algumas profecias bíblicas de Elias, Amós, Miqueias e Jesus de Nazaré, na esperança de que possam iluminar nossas consciências e aquecer nossos corações para discernirmos bem e comprometermos de fato com a causa dos pobres que, com fé libertadora, lutam pela terra sem males.
Em meados do século XIX a.C., o profeta Elias ferveu o sangue de indignação quando ouviu e viu que o rei Acab, a primeira dama Jezabel e latifundiários estavam reforçando a latifundiarização da terra prometida pelo Deus da vida ao povo Sem Terra, filhos/as de Abraão e Sara. A terra para o povo da Bíblia é herança de Deus, deve ser passada de pai para filho para usufruto; jamais ser considerada uma mercadoria. “Javé me livre de vender a herança de meus pais” (I Rs 21,3), respondeu Nabot, um pequeno agricultor, ao receber uma proposta indecorosa do rei que desejava comprar seu sítio para anexá-lo ao grande latifúndio que já tinha acumulado. O rei Acab se irritou com a resistência de Nabot. Zezabel, rainha adepta do ídolo Baal, manipulou a religião e a justiça para roubar a terra do sitiante. Caluniou, criminalizou e demonizou Nabot que, com o beneplácito do poder judiciário, foi condenado à pena de morte na forma de apedrejamento. Morte que mata aos poucos. Hoje, o “apedrejamento” aos empobrecidos acontece por meio de calúnias, humilhações e, muitas vezes, com o veredicto da justiça. Mais de 6 milhões de indígenas e outros 6 milhões de negros já foram Nabot no Brasil.
Mas, a opressão dos pobres e o sangue dos mártires suscitam profetas. O profeta Elias, ao ouvir que o rei Acab estava invadindo o pequeno sítio de Nabot, após o ter matado, em alto e bom som, profetizou: “Você matou, e ainda por cima está roubando? Por isso, assim diz Javé (Deus solidário e libertador): No mesmo lugar em que os cães lamberam o sangue de Nabot, lamberão também o seu. Farei cair sobre você a desgraça” (I Rs 21,19.21). Acab desencadeou uma grande perseguição ao profeta Elias, que fugiu, mas refez sua opção pelo Deus da vida e continuou a luta ao descobrir que não estava sozinho na luta. Outros 7 mil profetas conspiravam com ele e ao lado dele. Elias inspirou Eliseu, que inspirou Jesus de Nazaré, que inspira milhões de pessoas cristãs pelo mundo afora,. Acab teve morte parecida com a do general Garrastazu Médici, que morreu com 27 quilos carcomido por um câncer.
Por volta de 760 a.C., o profeta Amós, camponês sem-terra, insurge contra a injustiça social. Em Am 4,1-3, do coração de Amós brada: “OUVI esta palavra, vacas de Basã, que estais sobre monte de Samaria, que oprimis os fracos, que esmagais os excluídos, que dizeis aos vossos senhores: “Trazei-nos o que beber!”. O Senhor Javé jurou, pela sua santidade: sim, dias virão sobre vós, em que vos carregarão com ganchos e a vossos descendentes com arpões (de pesca).”
A expressão “vacas de Basã” adquire um sentido mais verdadeiro dentro da cultura bíblica se o termo “vacas” não for utilizado em relação a mulheres, mas a homens, aqueles que quiseram ser como os touros de Basã, que pela sua força se tornaram “vacas”, com conotação depreciativa.
Na profecia de Amós está uma crítica veemente e contundente aos agentes e mecanismos de exploração e opressão dos camponeses empobrecidos sob o (dês)governo expansionista do rei Jeroboão II e sob as condições de um incremento de relações de empréstimos e dívidas entre pessoas do próprio povo no século VIII a.C.. Amós tem consciência de que o problema fundamental da injustiça reinante na sociedade não é fruto somente de fraquezas pessoais, mas tem como causa motriz estruturas sócio-econômico-político-cultural e religiosas que engrenam uma máquina de moer pessoas.
Camponês de origem, o profeta Miqueias captou os sussurros do Deus da vida em fins do século VIII a.C., quando o território de seu povo estava sendo devastado pelos assírios imperialistas. Para Miqueias, a cobiça e as injustiças sociais deixam Deus possuído por uma ira santa. “São vocês os inimigos do meu povo: de quem está sem o manto (como os Sem Terra de hoje), vocês exigem a veste; vocês expulsam da felicidade de seus lares as mulheres do meu povo (como milhares de meninas que são empurradas para a prostituição infanto-juvenil), e tiram dos filhos a liberdade que eu lhes tinha dado para sempre (como a juventude que, jogada nas garras do narcotráfico, está sendo dizimada pela guerra civil não declarada.). (Miq 2,8-9).
Após libertar das garras dos faraós no Egito e marchar 40 aos pelo deserto, o povo oprimido da Bíblia conquista a terra prometida que estava em mãos de grileiros cananeus, os territórios foram sorteados fraternalmente, para que cada família tivesse o seu lote. Fizeram reforma agrária. Mas após alguns séculos, os enriquecidos, pouco a pouco, vão invadindo cada vez mais campos e territórios. Assim, multidões de sem-terra são jogados na miséria, impossibilitados de ter a sua parte na terra do povo de Deus.
Vindo da roça, Miqueias, ao chegar à capital Jerusalém, se defronta com os enriquecidos e com políticos e religiosos profissionais e os acusa de roubar casas e campos para se tornarem latifundiários. “Ai daqueles que, deitados na cama, ficam planejando a injustiça e tramando o mal! É só o dia amanhecer, já o executam, porque têm o poder em suas mãos. Cobiçam campos, e os roubam.” (Miq 2,1-2).
Miqueias mostra que a riqueza deles se baseia na miséria de muitos e tem como alicerce a carne e o sangue do povo. “Essa gente tem mãos habilidosas para praticar o mal: o príncipe exige, o juiz se deixa comprar, o grande mostra a sua ambição. E assim distorcem tudo. O melhor deles é como espinheiro, o mais correto deles parece uma cerca de espinhos! O dia anunciado pela sentinela, o dia do castigo chegou: agora é a ruína deles.” (Miq 7,3-4).
O galileu de Nazaré se tornou Cristo, filho de Deus. Como camponês, deve ter feito muitos calos nas mãos, na enxada e na carpintaria, ao lado do seu pai José. Os evangelhos fazem questão de dizer que Jesus nasceu em Belém, (em hebraico, “casa do pão” para todos), cidade pequena do interior. “És tu Belém a menor entre todas as cidades, mas é de ti que virá o salvador”, diz o evangelho de Mateus. (Mt 2,6).
Enfim, os tempos são outros, mas uma engrenagem de moer vidas está em pleno funcionamento. Intuo que as profecias de Elias, Amós, Miqueias e de Jesus de Nazaré estão vivas no ensinamento e na prática revolucionária do MST, hoje. Por isso o MST é profecia que incomoda. Quem tem ouvidos para ouvir, ouça! Não é justo deixar a CUTRALE plantando mais de 1 milhão de pés de laranja para exportação, enquanto milhões de Sem Terra são humilhados nos campos e nas favelas das grandes cidades.
EM TEMPO: O MST não tem a força dos enriquecidos: o capital; não tem a força do Estado: armas e poder para fazer as leis e interpretá-las segundo seus interesses. Mas o MST tem a força e a luz divina, tem a paixão por uma utopia que não se apaga: ver libertados os filhos e filhas da mãe terra que geme e clama para ser partilhada e não pode mais continuar sendo seqüestrada em poucas mãos gananciosas. A família que é o MST sabe que deve amar os pobres se colocando ao lado deles para com eles lutar contra as opressões e por direitos humanos, em especial os direitos para uma existência mínima como se alimentar e morar. Sabe também que para amar os opressores precisa retirar deles as armas da opressão. A grilagem de terra, feita pela CUTRALE e por tantas outras empresas e latifundiários, é arma mortífera que precisa ser superada. Logo, lutar por reforma agrária e pelo fim do latifúndio é amar o próximo que é a classe trabalhadora camponesa.
O Brasil foi um dos últimos países do mundo a abolir a escravidão. Seremos o último país a fazer a reforma agrária? O MST é hoje o negro amarrado no tronco, que a turma que se deleita com os prazeres capitalistas chicoteia com prazer e volúpia. O MST é Canudos redivivo e atomizado em pleno século XXI. O MST incomoda a tantos: ele, ao contrário de quem está contaminado pelo vírus da idolatria do mercado, ousa desafiar as convenções: ele é o membro rebelde de nossa sociedade que transgride o tabu e destrói o totem. Portanto, em termos psicanalíticos podemos dizer: os “soldados” do latifúndio para restituir a ordem capitalista/ patriarcal e para aplacar a inveja reprimida, tem que punir o MST, que é “o outro”.

[1] Mestre em Exegese Bíblica, professor de Teologia Bíblica, assessor da CPT, CEBI, SAB, CEBs e Via Campesina; e-mail: gilvander@igrejadocarmo.com.brwww.gilvander.org.br
[2] Três mil pés de laranjas. A CUTRALE plantou em latifúndio grilado mais de 1 milhão de pés de laranja.
[3] Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária.

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Laranjas e Gente


A imagem aérea de um trator derrubando uma fila de pés de laranja em um gigantesco laranjal parece chocar mais certos setores da sociedade do que a visão de milhares de pessoas sem terra e suas famílias acampadas precariamente sob tendas de plástico preto na beira de várias estradas brasileiras.

Não pretendo dizer com isso que os fins justifiquem os meios, mas após o choque inicial do poder da imagem disseminada pelos meios que costumam demonizar a luta pela terra, é bom procurar se informar do que realmente aconteceu e quais as motivações que geraram o ato perturbador.
Desde o dia 28 de setembro, 250 famílias de sem terra estavam acampadas na fazenda onde a Cutrale, uma das maiores empresas do agronegócio brasileiro, planta laranjas. O objetivo da ação era denunciar a ocupação irregular de terras da União pela Cutrale. O MST afirma que a empresa plantou laranjas na fazenda como forma de legitimar a grilagem de área pública. A produtividade da fazenda não poderia esconder a grilagem como ato ilegal e criminoso.
Muito bem. Esta é a versão do MST e cabe verificar se corresponde à verdade. O Incra confirma que já luta há três anos pela recuperação da fazenda ocupada pela Cutrale, assegurando que pertence à União. De acordo com o instituto, a fazenda integra um conjunto de terras públicas da União que constituíam o antigo Núcleo Colonial Monção.
Ainda segundo o Incra, o Núcleo Colonial Monção tem sua origem há 100 anos. Foi criado a partir de um grupo de fazendas compradas pela União ou recebidas em pagamento de dívidas da Companhia de Colonização São Paulo/Paraná. Essas fazendas somavam aproximadamente 40 mil hectares, nos municípios de Agudos, Lençóis Paulista, Borebi, Iaras e Águas de Santa Bárbara.
A primeira ocupação na região ocorreu em 1995, e dois anos depois o Incra reivindicou a fazenda Capivara, em Iaras, obtendo 30% do imóvel como tutela antecipada,o que resultou, em 1998, na criação do assentamento Zumbi dos Palmares. Em 2007, a Justiça Federal garantiu ao Incra os 8 mil hectares totais da fazenda.
Verifica-se com isso, que a disputa por estas terras tem mais de 10 anos, e a Cutrale se instalou nelas há cerca de cinco anos. Ou seja, tinha conhecimento de que o governo as considerava públicas e mesmo assim levou adiante o seu projeto de plantio de laranjas. Apesar da origem centenária do núcleo, a Cutrale informa que tem a posse legal das terras. Depois que a Justiça concedeu a reintegração de posse à Cutrale, no último dia 29, portanto um dia após a destrição dos pés de laranja, o Incra entrou com petição na Justiça Federal contra a decisão, com base no argumento de que a área de 40 mil hectares pertence à União.
O que se deduz, então, é que a Cutrale plantou suas laranjas em terras reivindicadas pela União para efeito de reforma agrária. Nesse sentido, a lutado MST é duplamente justa. Primeiro, como denúncia de grilagem em terras públicas e depois pela própria terra para assentar trabalhadores.
Pode se questionar a forma de ação do MST, mas sem ela não teria vindo à tona a ocupação e uso ilegal de terras públicas. A bancada ruralista no Congresso aproveitou rapidamente a comoção causada pelas imagens para aprovar relatório da senadora e latifundiária Kátia Abreu abrandando as exigências de produtividade para que uma fazenda não seja desapropriada para reforma agrária.
Em outra frente de ação, tenta ressuscitar uma CPI para investigar os repasses de recursos públicos a entidades ligadas ao MST. Se o Congresso brasileiro realmente se interessa em saber o que se passa no campo poderia criar uma CPI para verificar a legalidade de todas as propriedades agrícolas do país e exigir sua imediata devolução em caso de grilagem.
ESCLARECIMENTOS SOBRE ÚLTIMOS EPISÓDIOS VEICULADOS PELA MÍDIA
Sexta feira
9/9/2009
Diante dos últimos episódios que envolvem o MST e vêm repercutindo na mídia, a direção nacional do MST vem a público se pronunciar.
1. A nossa luta é pela democratização da propriedade da terra, cada vez mais concentrada em nosso país. O resultado do Censo de 2006, divulgado na semana passada, revelou que o Brasil é o país com a maior concentração da propriedade da terra do mundo. Menos de 15 mil latifundiários detêm fazendas acima de 2,5mil hectares e possuem 98 milhões de hectares. Cerca de 1% de todos os proprietários controla 46% das terras.
2. Há uma lei de Reforma Agrária para corrigir essa distorção histórica. No entanto, as leis a favor do povo somente funcionam com pressão popular. Fazemos pressão por meio da ocupação de latifúndios improdutivos e grandes propriedades, que não cumprem a função social, como determina a Constituição de 1988. A Constituição Federal estabelece que devem ser desapropriadas propriedades que estão abaixo da produtividade, não respeitam o ambiente, não respeitam os direitos trabalhistas e são usadas para contrabando ou cultivo de drogas.
3. Também ocupamos as fazendas que têm origem na grilagem de terras públicas,como acontece, por exemplo, no Pontal do Paranapanema e em Iaras (empresa Cutrale), no Pará (Banco Opportunity) e no sul da Bahia (Veracel/Stora Enso).São áreas que pertencem à União e estão indevidamente apropriadas porgrandes empresas, enquanto se alega que há falta de terras para assentar trabalhadores rurais sem terras.
4. Os inimigos da Reforma Agrária querem transformar os episódios que aconteceram na fazenda grilada pela Cutrale para criminalizar o MST, os movimentos sociais, impedir a Reforma Agrária e proteger os interesses do agronegócio e dos que controlam a terra.
5. Somos contra a violência. Sabemos que a violência é a arma utilizada sempre pelos opressores para manter seus privilégios. E, principalmente, temos o maior respeito às famílias dos trabalhadores das grandes fazendas quando fazemos as ocupações. Os trabalhadores rurais são vítimas da violência. Nos últimos anos, já foram assassinados mais de 1,6 mil companheiros e companheiras, e apenas 80 assassinos e mandantes chegaram aos tribunais. São raros aqueles que tiveram alguma punição, reinando a impunidade, como no caso do Massacre de Eldorado de Carajás.
6. As famílias acampadas recorreram à ação na Cutrale como última alternativa para chamar a atenção da sociedade para o absurdo fato de que umas das maiores empresas da agricultura - que controla 30% de todo suco de laranja no mundo - se dedique a grilar terras. Já havíamos ocupado a área diversas vezes nos últimos 10 anos, e a população não tinha conhecimento desse crime cometido pela Cutrale.
7. Nós lamentamos muito quando acontecem desvios de conduta em ocupações, que não representam a linha do movimento. Em geral, eles têm acontecido por causada infiltração dos inimigos da Reforma Agrária, seja dos latifundiários ou da policia.
8. Os companheiros e companheiras do MST de São Paulo reafirmam que não houve depredação nem furto por parte das famílias que ocuparam a fazenda da Cutrale. Quando as famílias saíram da fazenda, não havia ambiente de depredações, como foi apresentado na mídia. Representantes das famílias que fizeram a ocupação foram impedidos de acompanhar a entrada dos funcionários da fazenda e da PM, após a saída da área. O que aconteceu desde a saída das famílias e a entrada da imprensa na fazenda deve ser investigado.
9. Há uma clara articulação entre os latifundiários, setores conservadores do Poder Judiciário, serviços de inteligência, parlamentares ruralistas e setores reacionários da imprensa brasileira para atacar o MST e a Reforma Agrária. Não admitem o direito dos pobres se organizarem e lutarem. Em períodos eleitorais, essas articulações ganham mais força política, como parte das táticas da direita para impedir as ações do governo a favor da Reforma Agrária e "enquadrar" as candidaturas dentro dos seus interesses de classe.
10. O MST luta há mais de 25 anos pela implantação de uma Reforma Agrária popular e verdadeira. Obtivemos muitas vitórias: mais de 500 mil famílias de trabalhadores pobres do campo foram assentados. Estamos acostumados a enfrentaras manipulações dos latifundiários e de seus representantes na imprensa. À sociedade, pedimos que não nos julgue pela versão apresentada pela mídia. No Brasil, há um histórico de ruptura com a verdade e com a ética pela grande mídia, para manipular os fatos, prejudicar os trabalhadores e suas lutas e defender os interesses dos poderosos. Apesar de todas as dificuldades, de nossos erros e acertos e, principalmente, das artimanhas da burguesia, a sociedade brasileira sabe que sem a Reforma Agrária será impossível corrigir as injustiças sociais e as desigualdades no campo. De nossa parte, temos o compromisso de seguir organizando os pobres do campo e fazendo mobilizações e lutas pela realização dos direitos do povo à terra, educação e dignidade.
São Paulo, 9 de outubro de 2009
DIREÇÃO NACIONAL DO MST

ESCLARECIMENTOS SOBRE AS ACUSAÇÕES CONTRA O MST – Coordenação do MST de São Paulo
Diante da repercussão dos últimos episódios que envolvem o MST,queremos esclarecer os fatos e questionar algumas "verdades" apresentadasna mídia burguesa sobre a ocupação da fazenda grilada pela multinacional Cutrale, no interior de São Paulo.
A ocupação
No dia 28 de setembro, cerca de 250 famílias sem terra ocuparam pelaterceira vez uma área de aproximadamente 3 mil hectares, grilada pela empresa transnacional de sucos Cutrale. A mobilização pretendia fazerpressão para que o governo federal agilizasse a retomada das áreasgriladas (pertencentes a União) e efetuasse o assentamento das famíliasacampadas na região.
Logo após a ocupação, os trabalhadores rurais iniciaram a organizaçãodo acampamento. Como forma de denúncia, as famílias derrubaram cerca de 3mil pés de laranja - que representam o grilo - para, no lugar, plantaralimentos. Alimentos estes que poderiam ser produzidos se lá não tivessemmais de um milhão de pés de laranja.
Se, neste momento, por conta das imagens repetidas exaustivamente e daausência das informações da situação da luta pela terra na região,parte da sociedade e daqueles que sempre apoiaram nossa luta, reprovam essaforma de protesto, afirmamos que compreendemos e que estamos a disposiçãopara quaisquer esclarecimentos.
Somos os primeiros e mais interessados em fazer com que as terrasagrícolas realmente produzam alimentos. No entanto, não podemos nos calarenquanto terras públicas continuarem sendo utilizadas em benefícioprivado; enquanto milhares de famílias sem terra continuarem vivendo nabeira de estradas, debaixo de lonas pretas. A produtividade da área nãopode esconder que a Cutrale grilou terras públicas. Aos olhos dapopulação, por mais impactantes que sejam, as imagens não podem ocultarque uma multinacional extrai riqueza de terras griladas. Mais do quesomente esclarecer os fatos, é preciso entender a complexidade e adimensão da luta pela terra naquela região.
O MST está presente na região de Iaras desde 1995. Ao passo que oenfrentamento aos latifúndios ia avançando, mais famílias se organizavamnos acampamentos - algumas delas já acampadas há quase dez anos. Com aconfirmação de que o Complexo Monções, uma área de mais de 100 milhectares, é terra pública pertencente a União, uma pequena parte delefoi destinado a Reforma Agrária e algumas famílias assentadas. Mas aindaexistem 450 famílias a espera de terra.
Por que elas não são assentadas nos outros 90 mil hectares restantes?
Será que é por que todas as áreas que ainda poderiam ser retomadas sãoterras públicas que estão sendo utilizadas indevidamente por grandesempresas multinacionais como a Cutrale?
É dever do Incra e do governo federal arrecadar terras públicas,patrimônio do povo brasileiro, para atender as famílias sem terra, semque seja necessário ir ao extremo da necessidade humana em permanecer maisde 10 anos sob lonas, na chuva, no frio, no sol forte em beiras deestradas, para nelas produzir alimentos saudáveis e fazer cumprir afunção social prevista na Constituição.
Aliado a tudo isso, há também a forte atuação do Poder Judiciáriopara emperrar o processo de Reforma Agrária. É preciso chamar a atençãopara a decisão da Justiça Federal de Ourinhos (SP) que, em agosto,decretou a extinção do processo em que o Incra reclama a fazenda comoterra pública. A Justiça alegou que o Incra, órgão federal responsávelpela execução da Reforma Agrária, é ilegítimo para reivindicar a área. Quem poderá fazê-lo então?
Esperamos que essa decisão judicial, um exemplo dos entraves existentespara impedir o avanço da Reforma Agrária em nosso país, seja revertidanas instâncias superiores do Poder Judiciário. Queremos saber por que umafazenda grilada não pode ser destinada a Reforma Agrária?
A depredação da fazenda
Repudiamos a versão construída para responsabilizar o MST peladepredação da fazenda. Admitimos que, assim como derrubamos pés delaranja, fizemos algumas pichações para deixar registrado o nossoprotesto contra a grilagem da área. Porém, estamos sofrendo acusações equeremos esclarecer que:
Destruição e roubo das casas: logo após a ocupação, em acordo com ostrabalhadores que moram na fazenda, as casas foram desocupadas e trancadas. Mais tarde, alguns deles decidiram retirar seus pertences de dentro da área. Em todas as nossas ocupações sempre respeitamos os trabalhadores ezelamos por sua segurança.
Depredação de tratores: uma empresa com esse porte possui oficinamecânica dentro das fazendas e, portanto, faz a manutenção das suasmáquinas dentro da própria área. As imagens mostram tratores e peçasque já estavam abandonadas e desmontadas antes das famílias chegarem lá. Quem tem que responder pelo estado dos equipamentos é a Cutrale e não o MST.
Roubo de combustíveis e venenos: como seria possível as famílias furtarem 15 mil litros de combustíveis e toneladas de veneno sendoescoltadas pela PM e transportadas em cima de uma carroceria de caminhão?
Essas acusações são infundadas. Como tudo isso poderia ter sido feitopor famílias que estiveram o tempo todo cercadas pelas tropas da PoliciaMilitar, sempre munida de câmeras filmadoras, com apoio de helicópteros eque no despejo foram colocadas em cima de dois caminhões da própriamultinacional Cutrale?
Não cometemos aqueles atos de vandalismos e exigimos que os mesmo sejamidentificados e punidos. Se às vezes acontecem excessos isolados em nossasocupações, buscamos avaliá-los e corrigi-los. Diante do conflitoestabelecido na hora do despejo, os integrantes do MST não puderamacompanhar a entrada da PM na fazenda após a desocupação. O querealmente aconteceu após a saída das famílias acampadas?
Por que tendo recebido imagens da destruição dos pés de laranja aindano dia 28 de setembro, somente no dia 5 de outubro a Rede Globo resolveuexibi-las e fazer de forma tão apelativa?
Os representantes do agronegócio e a bancada ruralista precisavam dealgum argumento que justificasse mais uma tentativa de instalação de umanova CPI contra o MST. Com isso, a verdadeira intenção, é inviabilizar aatuação de um movimento social que há 25 anos luta pela terra no Brasil.
Convidamos toda a sociedade, cidadãos e cidadãs brasileiros, autoridadese parlamentes, para visitar a região, a área ocupada, conversar com asfamílias acampadas e tirar as suas conclusões.
São Paulo, 9 de outubro de 2009.
MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA
DIREÇÃO ESTADUAL/ SP

sábado, 21 de novembro de 2009

NOTA PÚBLICA DA CPT: Mais uma vez a Mídia e os ruralistas investem contra o MST


A Coordenação Nacional da CPT vem a público para manifestar sua estranheza diante do “requentamento” por toda a grande mídia de um fato ocorrido na segunda feira da semana passada, 28 de setembro, e que foi noticiado naquela ocasião, mas que voltou com maior destaque, uma semana depois, a partir do dia 5 de outubro até hoje.
Trata-se do seguinte: no dia 28 de setembro, integrantes do MST ocuparam a Fazenda Capim, que abrange os municípios de Iaras, Lençóis Paulista e Borebi, região central do estado de São Paulo. A área faz parte do chamado Núcleo Monções, um complexo de 30 mil hectares divididos em várias fazendas e que pertencem à União. A fazenda Capim, com mais de 2,7 mil hectares, foi grilada pela Sucocítrico Cutrale, uma das maiores empresas produtora de suco de laranja do mundo, para a monocultura de laranja. O MST destruiu dois hectares de laranjeiras para neles plantar alimentos básicos. A ação tinha por objetivo chamar a atenção para o fato de uma terra pública ter sido grilada por uma grande empresa e pressionar o judiciário, já que, há anos, o Incra entrou com ação para ser imitido na posse destas terras que são da União.
As primeiras ocupações na região aconteceram em 1995. Passados mais de 10 anos, algumas áreas foram arrecadadas e hoje são assentamentos. A maioria das terras, porém, ainda está nas mãos de grandes grupos econômicos. A Cutrale instalou-se há poucos anos, 4 ou 5 mais ou menos. Sabia que as terras eram griladas, mas esperava, porém, que houvesse regularização fundiária a seu favor.
As imagens da televisão, feitas de helicóptero, mostram um trator destruindo as plantas. As reações, depois da notícia ser novamente colocada em pauta, vieram inclusive de pessoas do governo, mas, sobretudo, de membros da bancada ruralista que acusam o movimento de criminoso e terrorista.
A quem interessa a repetição da notícia, uma semana depois?
No mesmo dia da ação dos sem-terra foi entregue aos presidentes do Senado e da Câmara, um Manifesto, assinado por mais de 4.000 pessoas, entre as quais muitas personalidades nacionais e internacionais, declarando seu apoio ao MST, diante da tentativa de instalação de uma CPMI para investigar os repasses de recursos públicos a entidades ligadas ao Movimento. Logo no dia 30, foi lido em plenário o requerimento para sua instalação, que acabou frustrada porque mais de 40 deputados retiraram seu nome e com isso não atingiu o número regimental necessário. A bancada ruralista se enfureceu.
A ação do MST do dia 28, que ao ser divulgada pela primeira vez não provocara muita reação, poderia dar a munição necessária para novamente se propor uma CPI contra o MST. E numa ação articulada entre os interesses da grande mídia, da bancada ruralista do Congresso e dos defensores do agronegócio, se lançaram novamente as imagens da ocupação da fazenda da Cutrale.
A ação do MST, por mais radical que possa parecer, escancara aos olhos da nação a realidade brasileira. Enquanto milhares de famílias sem terra continuam acampadas Brasil afora, grandes empresas praticam a grilagem e ainda conseguem a cobertura do poder público.
Algumas perguntam martelam nossa consciência:
Por que a imprensa não dá destaque à grilagem da Cutrale?
Por que a bancada ruralista se empenha tanto em querer destruir os movimentos dos trabalhadores rurais? Por que não se propõe uma grande investigação parlamentar sobre os recursos repassados às entidades do agronegócio, ao perdão rotineiro das dívidas dos grandes produtores que não honram seus compromissos com as instituições financeiras?
Por que a senadora Kátia Abreu (DEM-TO), declarou, nas eleições ao Senado em 2006, o valor de menos de oito reais o hectare de uma área de sua propriedade em Campos Lindos, Tocantins? Por que por um lado, o agronegócio alardeia os ganhos de produtividade no campo, o que é uma realidade, e se opõe com unhas e dentes á atualização dos índices de produtividade? Por que a PEC 438, que propõe o confisco de terras onde for flagrado o trabalho escravo nunca é votada? E por fim, por que o presidente Lula que em agosto prometeu em 15 dias assinar a portaria com os novos índices de produtividade, até agora, mais de um mês e meio depois, não o fez?
São perguntas que a Coordenação Nacional da CPT gostaria de ver respondidas.

Goiânia, 7 de outubro de 2009.
Coordenação Nacional da CPT

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

A falta que faz ao Papa um pouco de marxismo


Leonardo Boff*

A nova encíclia de Bento XVI Caritas in Veritate de 7 de julho último é uma tomada de posição da Igreja face à crise atual. O complexo das crises que atingem a humanidade e que comportam ameças severas sobre o sistema da vida e seu futuro demandaria um texto profético, carregado de urgência. Mas não é isso que recebemos senão uma longa e detalhada reflexão sobre a maioria dos problemas atuais que vão da crise econômica ao turismo, da biotecnologia à crise ambiental e projeções sobre um Governo mundial da Globalização. O gênero não é profético, o que suporia "uma análise concreta de uma situação concreta". Esta possibilitaria investir contra os problemas em tela na forma de denúncia-anúncio. Mas não é da natureza deste Papa ser profeta. Ele é um doutor e um mestre. Elabora o discurso oficial do Magistério, cuja perspectica não é de baixo, da vida real e conflitiva, mas de cima, da doutrina ortodoxa que esfuma as contradições e minimaliza os conflitos. A tônica dominante não é a da análise, mas da ética, do dever-ser.

Como não faz análise da realidade atual, extremamente complexa, o discurso magisterial permance principista, equilibrista e se define por sua indefinição. O subexto do texto, ou o não-dito no dito, remete a uma inocência teórica que inconscientemente assume a ideologia funcional da sociedade dominante. Já se nota na abordagem do tema central - o desenvolvimento - hoje tão criticado por não tomar em conta os limites ecológicos da Terra. Disso a encíclica não fala nada. A visão é de que o sistema mundial se apresenta fundamentalmente correto. O que existe são disfunções e não contradições. Esse diagnóstico sugere a seguinte terapia, semelhante a do G-20: retificações e não mudanças, melhorias e não troca de paradigma, reformas e não libertações. É o imperativo do mestre: "correção", não a do profeta:"conversão".

Ao lermos o texto, longo e pesado, terminamos por pensar: como faria bem ao atual Papa um pouco de marxismo! Este, a partir dos oprimidos, tem o mérito de desmascarar as oposições presentes no sistema atual, pôr à luz os conflitos de poder e denunciar a voracidade incontida da sociedade de mercado, competitiva, consumista, nada cooperativa e injusta. Ela representa um pecado social e estrutural que sacrifica milhões no altar da produção para o consumo ilimitado. Isso caberia ao Papa profeticamente denunciar. Mas não o faz. O texto do Magistério, olimpicamente fora e acima da situação conflitiva atual, não é ideologicamente "neutro"como pretende. É um discurso reprodutor do sistema imperante que faz sofrer a todos especialmente os pobres. Isso não é questão de Bento XVI querer ou não querer mas da lógica estrutural de seu tipo de discurso magisterial. Por renunciar a uma análise critica séria, paga um preço alto em ineficácia teórica e prática. Não inova, repete.

E ai perde uma enorme oportunidade de se dirigir à humanidade num momento dramático da história, a partir do capital simbólico de transfomação e de esperança, contido na mensagem cristã. Esse Papa não valoriza o novo céu e a nova Terra, que podem ser antecipados pelas práticas humanas, apenas conhece essa vida decadente e, por si mesma insustentável (seu pessimismo cultural) e a vida eterna e o céu que ainda virão. Afasta-se assim da grande mensagem bíblica que possui consequências políticas revolucionárias ao afirmar que a utopia terminal do Reino da justiça, do amor e da liberdade só será real na medida em que se construirem e anteciparem, nos limites do espaço e do tempo histórico, tais bens entre nós.

Curiosamente, abstraindo de laivos fideistas recorrentes ("só através da caridade cristã é possível o desenvolvimento integral"), quando se "esquece" do tom magisterial, na parte final da encíclica, introduz coisas sensatas como a reforma da ONU, a nova arquitetura econômico-financeira internacional, o conceito do Bem Comum do Globo e a inclusão relacional da família humana. Parafraseando Nietzsche:"quanto de análise crítica o Magistério da Igreja é capaz de incorporar"?

Fonte: http://www.socialismo.org.br/portal/politica/47-artigo/1029-a-falta-que-faz-ao-papa-um-pouco-de-marxismo

* Leonardo Boff é autor de Igreja: carisma e poder (Record 2005).

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

"Me recuso a dizer que perdi a esperança"


Eric Hobsbawm

O historiador Eric Hobsbawm - que tem sua trilogia (A Era das Revoluções, A Era do Capital e A Era dos Extremos) reeditada no Brasil - diz que o aniversário da queda do Muro de Berlim deveria motivar uma discussão sobre o Ocidente pós-guerra fria. Defendendo suas convicções marxistas, ele afirmou: "Me recuso a dizer que perdi a esperança". Para Hobsbawn, o capitalismo chegou ao seu limite.

Quando Eric Hobsbawm estava escrevendo "A Era do Capital" -lançado em 1975-, explicou que fazia um imenso esforço para estudar algo que não lhe agradava nem um pouco. Hoje, o historiador marxista diz ter o mesmo sentimento, "eu não gostava da burguesia vitoriana e ainda não gosto, embora apreciasse o dinamismo daquele tempo". À essa impressão, porém, vem adicionando, nos últimos anos, mais uma, a nostalgia."

Agora, quando comparo o século 19 com o 20, sinto simpatia pelo modo como aqueles homens acreditavam no progresso. Foi um século de esperança. E essa minha nostalgia cresce à medida que o tempo passa e vejo, com pessimismo, o que vem acontecendo", diz.

Hobsbawm, 92, conversou com a Folha por telefone, de Londres, justamente sobre a reedição no Brasil de sua trilogia sobre o século 19 ("A Era das Revoluções", "A Era do Capital", "A Era dos Impérios"), já um clássico da historiografia sobre o período, pela editora Paz e Terra -que também relançará em 2010 outro título do historiador, "Bandidos".

Na trilogia, Hobsbawm analisou o que chamou de "longo século 19", período que vai de 1789 a 1914. Começa com as revoluções europeias que definiram a expansão do capitalismo e do liberalismo no planeta -a Francesa e a Industrial inglesa- e vai até as vésperas da Primeira Guerra Mundial.

Apesar dos ataques que sofre por ainda defender a bandeira do comunismo, os três volumes de Hobsbawm são reimpressos todos os anos na Inglaterra, tendo sua explicação sobre o tema se imposto como uma espécie de cânone.

Hobsbawm é com frequência procurado para comentar temas do presente -algo que seus críticos tampouco perdoam. Agora, às vésperas do aniversário de 20 anos da queda do Muro de Berlim (em novembro), seu conhecimento sobre os tempos que estudou e vivenciou, assim como suas convicções políticas, são novamente trazidos ao debate."

A queda do Muro foi o fim de uma era. Não só para a Europa do Leste, mas para o mundo inteiro. O capitalismo chegou a seu limite e a a crise econômica mundial indica claramente o fim de um ciclo."

Contudo, o historiador considera que as discussões sobre o episódio estão muito centradas em tentar entender por que a experiência comunista fracassou, quando o que deveria estar na pauta é o futuro do Ocidente. Para ele, o mundo pós-Guerra Fria ainda não fez uma necessária autocrítica.

Leia trechos da entrevista que Eric Hobsbawm concedeu à Folha:

O que mais deveria ser discutido no aniversário de 20 anos da queda do Muro de Berlim?

A celebração é oportuna porque o capitalismo agora chegou a seu limite. A crise econômica mundial é o fim de um ciclo, que começou a ruir quando caiu o Muro em Berlim. No Leste Europeu, vejo dificuldade em rompimento com o legado comunista. Mas é o Ocidente quem deve refletir mais sobre o que ocorreu na Guerra Fria e o que pode ser feito para evitar um novo colapso.

As "Eras" são consideradas um exemplo de boa análise histórica dedicada a um amplo período. O sr. acha que falta ambição a historiadores hoje?

Para fazer história com uma perspectiva maior, é preciso ser um intelectual maduro. Hoje, os jovens historiadores gastam muito mais tempo em suas especializações. Quando estão aptos a dar um passo maior, hesitam. A história equivocadamente se afastou da "história total" que fazia Fernand Braudel [1902-1985].

O sr. começa "A Era dos Impérios" contando uma história autobiográfica (a do encontro de seus pais no Egito) e então propõe uma reflexão sobre história e memória. Quão diferente foi escrever este volume, que se refere a passagens mais próximas do seu olhar no tempo, do que os anteriores?

Neste livro tive de trabalhar com o que chamo de "zona de penumbra", onde se misturam nossas lembranças e tradições familiares com o que aprendemos depois sobre determinado período. Não é fácil, pois trata-se de um território de incertezas e em que há um elemento afetivo. Por outro lado, trata-se de uma oportunidade de estimular aquele que lê a pensar sobre como seu próprio passado está relacionado com a história.

Em seu novo livro ("Reappraisals"), o historiador britânico Tony Judt escreveu um ensaio sobre o senhor ("Eric Hobsbawm and the Romance of Communism"). Neste, mostra admiração por seu conhecimento, mas faz uma severa crítica: "para fazer o bem no novo século, nós devemos começar dizendo a verdade sobre o antigo. Hobsbawm se recusa a mirar o demônio na cara e chamá-lo pelo nome". Como o sr. responderia a seu colega?

A crítica de Judt não se justifica. O que ele quer é que eu diga que estava errado. Em "A Era dos Extremos", eu encaro o problema, o critico e condeno. Não tenho problemas em dizer que a Revolução Russa causou dor e sofrimento à população russa. Porém, o esforço revolucionário foi algo heroico. Uma tentativa de melhorar a sociedade como não se viu mais na história. Me recuso a dizer que perdi a esperança.

O sr. havia dito, numa entrevista ao "Independent", que havia alguns clubes dos quais não iria ser sócio nunca, referindo-se aos intelectuais ex-comunistas. Ainda pensa assim?

Não vejo problema quando um intelectual, especialmente de países do Leste Europeu, percebe que a democracia é melhor do que o sistema autoritário em que vivia. É normal a mudança de posição quando surgem fatos novos. O ex-comunista que condeno é aquele que antes militava em grupos de esquerda e que hoje tem uma bandeira única, a de ser anticomunista apenas, esquecendo-se do resto das ideias pelas quais lutava. Também me entristece ver intelectuais jovens, que não passaram pela história dessas lutas, repetindo e tentando tirar benefício desse mesmo tipo de propaganda.

A América Latina está às vésperas de comemorar, em vários países, os 200 anos do início das lutas de independência. Que análise faz do atual momento?

A dependência econômica ainda é um fato, mas politicamente a América Latina é cada vez mais livre. Washington jamais voltará a exercer a influência de antes, tampouco a apoiar golpes ou ditaduras como fez no passado. O que está acontecendo em Honduras é um sinal disso. O Brasil tem papel central nesse processo, uma vez que o México se transforma cada vez mais em apêndice dos EUA.

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Ética e Política. Discussões sobre um golpe


José M. Tojeira, SJ+

Com a chegada do presidente Zelaya a Honduras após fazer escala em El Salvador, levantou-se uma polêmica que mostra que as profundas raízes autoritárias e exageradamente nacionalistas continuam firmes, especialmente nas mentes das pessoas apegadas ao poder econômico. Diz-se, entre outras coisas, que Zelaya foi destituído legalmente, que apoiar sua passagem por El Salvador é ilegal, que o Brasil está criando problemas internacionais ao aceitá-lo em sua Embaixada e que a comunidade internacional está ofuscada e equivocada por não aceitar a Micheletti como governante legítimo.

Afirmar que Zelaya foi destituído legalmente é absurdo. Trata-se de um presidente tomado de assalto ilegalmente em sua casa, sem ordem de detenção, levado à força ao aeroporto e posto para fora do país contra o que a Constituição hondurenha ordena. Informa-se publicamente que Zelaya apresentou carta de renúncia e somente quando este negou essa versão é que foi acusado de violar a Constituição e de ter sido deposto como presidente. Não houve processo jurídico contra sua pessoa, não houve possibilidade de defesa. Tudo aconteceu após sua expulsão ilegal do país. A ilegalidade e a improcedência de sua expulsão viciam qualquer processo posterior e isso é o que move à comunidade internacional a não reconhecer a Micheletti.

A passagem de Zelaya por El Salvador é totalmente legal. É um cidadão centroamericano e pode entrar simplesmente usando sua carteira de identidade. El Salvador, além disso, continua reconhecendo-o como presidente constitucional de Honduras, da mesma forma que toda a América Latina o considera. Inclusive, favorecer seu retorno a Honduras não é mais do que favorecer uma posição de direito internacional que não somente é salvadorenha, mas da grande maioria da comunidade internacional. A esquerda nem sequer deveria recordar à direita o apoio de um setor desta última ao delinqüente Posada Carriles. Não se pode comparar um com o outro. Zelaya não é um delinquente, com ordem de captura internacional admitida por outros Estados, mas um presidente constitucional reconhecido pela comunidade internacional.

O Brasil não cria problemas a Honduras tendo Zelaya em sua embaixada. Simplesmente cumpre com o direito internacional de asilo. Ameaçar o Brasil com medidas de força, como tem feito Micheletti nesses últimos dias, exigindo em um prazo de dez dias a entrega de Zelaya, não é mais do que a continuação de ações ilegais e que desconhecem a legislação tanto hondurenha quanto internacional. Quando Zelaya quis regressar a Honduras através da fronteira com a Nicarágua, foi impedido militarmente. Romper relações diplomáticas com o Brasil é uma barbaridade a mais do regime de Micheletti.

Dizer que a comunidade internacional está equivocada simplesmente é motivo de riso. Pode-se dizer em El Salvador porque o debate interno em nosso país é de baixa qualidade intelectual; porém, fora de nossas fronteiras, seria simplesmente expor-se ao ridículo. O fechamento de emissoras e a suspensão de garantias constitucionais expressa bastante sobre quem é Micheletti mais do que as turbias defesas feitas em El Salvador.

Mais do que debater esses pontos, o que devemos fazer em El Salvador é pressionar com nossa opinião e através de nossas ações diplomáticas em favor de que haja diálogo, especialmente em torno á proposta do presidente Arias, de Costa Rica, para chegar a uma solução que evite a crispação crescente que já está começando a acontecer em Honduras. Nosso país tem razões de sobra para saber que a via da violência não soluciona os problemas nacionais. E, certamente, Zelaya foi expulso de forma violenta de seu país. Nem Zelaya deve chamar à violência, nem Micheletti deve obstinar-se a manter a violência golpista, com a qual iniciou este descalabro. Os mais pobres de Honduras são os que, no final das contas, ficam com a pior parte e carregam com a maior dor, caso as elites sejam incapazes de chegar a uma solução de diálogo. Impulsionar e exigir diálogo entre as partes é o único caminho ético.
Tradução: ADITAL
Fonte: http://www.adital.com.br/site/noticia.aspboletim=1&lang=PT&cod=41651

+ Reitor da Universidade Centroamericana (UCA).

domingo, 8 de novembro de 2009

América Latina: impasses e desafios


Frei Betto+

O presidente deposto de Honduras, Manuel Zelaya, retornou a seu país e se abrigou na embaixada do Brasil em Tegucigalpa. O Itamaraty tem a obrigação de acolhê-lo e assegurar-lhe integridade física e política. Zelaya, por sua vez, tem o dever de respeitar as normas que regem as representações diplomáticas.

O mesmo Brasil que deu refúgio aos generais Stroessner e Oviedo, do Paraguai, não pode, agora, favorecer golpistas militares de Honduras e entregar Zelaya às feras. Será também uma afronta à tradição hospitaleira do Brasil o STF repatriar Cesare Battisti para os cárceres italianos.

A América Latina vive seu melhor momento em décadas: com exceção de Honduras, não há ditaduras militares no Continente; os governantes neoliberais, fieis aos receituários do FMI e do Banco Mundial, foram rechaçados pelo voto popular; hoje temos governos democrático-populares que se comprometem a promover reformas de estrutura pelas vias pacífica e democrática.

O que há de novo na América Latina? Samuel Huntington, relator da Comissão Trilateral - nefasta conspiração imperialista da década de 1970 -, admitiu que, em nosso Continente, a democracia, tal qual o figurino que agrada a Casa Branca, só perduraria se excluísse a participação de parcela do povo.

O que há de novo é que os excluídos - indígenas, camponeses, sem-terra, negros, desempregados, famílias de baixa renda - agora insistem em seu protagonismo político. Prova disso é que um metalúrgico governa o Brasil; um indígena, a Bolívia; um ex-guerrilheiro, a Nicarágua; uma ex-presa política, o Chile; outro ex-preso político, o Uruguai; um sociólogo de esquerda, o Equador; um militar revolucionário, a Venezuela; um jornalista apoiado por ex-guerrilheiros, El Salvador; um ex-arcebispo da Teologia da Libertação, o Paraguai.

Não se sabe o que há de novo no reino da Dinamarca, mas é certo que há algo de novo em torno da linha do Equador. Dos 34 países da América Latina, em 15 há presença, em seus governos, de políticos alinhados com o Fórum de São Paulo - organismo que, há décadas, articula, no Continente, grupos e partidos de esquerda e/ou progressistas.

Os países da região tratam de criar mecanismos de intercâmbio comercial e unidade política, como a Alba, o Unasul, a Telesul, o Banco do Sul. Apenas os governos da Colômbia e do Peru destoam desse processo, submissos ainda à dependência ianque.

O desafio, agora, é evitar que os governos progressistas sejam cooptados pelo neoliberalismo. É preciso que a América Latina, que abriga o único país socialista do mundo - Cuba -, tenha consciência de suas potencialidades. Muito antes que os EUA criassem suas primeiras universidades, Harvard e William & Mary, já funcionavam a de San Marcos, no Peru, e a de Santo Domingo, na República Dominicana. As duas, aliás, fundadas pela Ordem Dominicana.

No entanto, entre nós, hoje, a escolaridade média é de 7 anos, e de cada 10 estudantes de ensino médio, apenas 1 termina o curso. A mortalidade infantil média no Continente é de 50 em cada 1.000 nascidos vivos, enquanto na Ásia é de apenas 10.

É decepcionante constatar a avidez que certos governantes latino-americanos demonstram frente às ofertas do mercado de armas. Nossos inimigos principais, que precisam ser duramente combatidos, são ainda a fome, a insalubridade, a falta de saúde, de educação, de moradia e de cultura.

Se os atuais governantes democrático-populares não forem capazes de empreender as reformas prometidas em suas campanhas, e se deixarem envolver pelo canto das sereias neoliberais, ecoados por partidos conservadores interessados apenas em sugar parcelas de poder, a desigualdade social, ainda gritante, servirá de caldo de cultura para o ressurgimento de conflitos armados.

A decepção dos pobres, se resulta em desespero nos casos pessoais, engendra sementes de revolta ao adquirir caráter social.

No Brasil, a entrada de Marina Silva, ex-ministra do Meio Ambiente, na disputa presidencial pode significar um alerta e uma promessa. O alerta, a de que o governo Lula foi positivo, mas não o suficiente para implementar reformas estruturais e promover o desenvolvimento sustentável.

A promessa, de que é possível, sim, assegurar a governabilidade graças ao apoio dos movimentos sociais, sem ceder ao que há de mais arcaico, corrupto e conservador na política brasileira.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Entre a Constituição e a coligação


Frei Betto
(Publicado no Correio Brasiliense, 11/09/2009)


O governo Lula encontra-se num dilema hamletiano: respeitar a Constituição e desagradar o maior partido de sua coligação eleitoral, o PMDB, ou agradar os correligionários de José Sarney e desrespeitar a Constituição.
A Constituição Brasileira de 1988 traz, no bojo, inegável caráter social. Falta ao Executivo e ao Legislativo passá-lo do papel à realidade. Uma das exigências constitucionais é a revisão periódica — a cada 10 anos — dos índices de produtividade da terra. Eles são utilizados para classificar como produtivo ou improdutivo um imóvel rural e agilizar, com transparência, a desapropriação das terras para efeito de reforma agrária.
Os índices atuais são os mesmos desde 1975! Os novos seriam calculados com base no período de produção entre 1996 e 2007, respaldados por estudos técnicos do IBGE, da Unicamp e da Embrapa. Os índices também serviriam de parâmetro para analisar a produtividade em assentamentos rurais.
Inúmeros ruralistas, latifundiários e empresários do agronegócio não querem nem ouvir falar de revisão dos índices de produtividade. É o reconhecimento implícito de que predominam no Brasil grandes propriedades rurais improdutivas e que, portanto, segundo a Constituição, deveriam ser desapropriadas para beneficiar a reforma agrária.
Na quarta, 12 de agosto de 2009, dirigentes do MST e ministros do governo Lula reuniram-se em Brasília. O MST havia promovido, nos dias anteriores, uma série de manifestações, consciente de que governo é que nem feijão, só funciona na panela de pressão. Além de reivindicar a revisão dos índices de produtividade da terra, o MST, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG) e a Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar (FETRAF) querem a reposição do corte de R$ 550 milhões feito este ano no orçamento do Incra, quantia destinada à obtenção de terras para a reforma agrária.
O representante do Ministério da Fazenda declarou que a crise é grave, a arrecadação diminuiu entre 30% e 50% no primeiro semestre deste ano, e que o governo tem dificuldades de repor o orçamento do Incra, embora conste da lei orçamentária aprovada pelo Congresso.
Os trabalhadores rurais querem apenas que se cumpra a lei. É impossível acreditar que o Ministério da Fazenda não tenha recursos. Se fosse verdade, não teria desonerado impostos de outros setores da sociedade, como a indústria automobilística, cujo IPI mereceu desoneração de cerca de R$ 20 bilhões, e o depósito à vista dos bancos, que possibilitou a eles reter, em seus cofres, R$ 80 bilhões. O governo tem dinheiro, mas reluta em investir na reforma agrária e na pequena agricultura.
A reforma agrária viria modernizar o capitalismo brasileiro. Inclusive conter os reflexos da crise financeira mundial no setor agrícola. No Brasil, a crise afetou a produção de soja, algodão e milho, e reduziu o preço das commodities e a taxa de lucro dos produtores rurais. Mas quem pagou a conta foram os trabalhadores rurais assalariados. Cerca de 300 mil ficaram desempregados.
O agronegócio é o modelo de produção que expulsa mão de obra porque adota a mecanização intensiva. Que rumo tomaram os desempregados? Vieram engrossar o cinturão de favelas em torno das cidades, viver de bicos, enquanto seus filhos são tentados e assediados pela criminalidade. Por que o governo não assentou essa gente?
O Brasil é, hoje, o maior consumidor mundial de agrotóxicos. Na safra passada, jogaram 713 milhões de toneladas de veneno sobre o nosso solo, a nossa água e os nossos alimentos. Enquanto aumentam as exportações, aumenta também a produção de alimentos contaminados, responsáveis pela maior incidência de enfermidades letais, como o câncer. É preciso mudar o atual modelo agrícola, prejudicial ao meio ambiente e à agricultura familiar.
O prazo dado pelo presidente Lula para a revisão dos índices de produtividade da terra expirou em 2 de setembro, sem que o Planalto se posicionasse. A decisão sobre a atualização havia sido tomada em 18 de agosto, numa reunião de Lula com ministros, da qual não participou o ministro da Agricultura, Reinhold Stephanes. Na ocasião, foi estipulado um prazo de 15 dias.
A portaria de revisão dos índices precisa ser assinada por Stephanes e pelo ministro Guilherme Cassel, do Desenvolvimento Agrário, a tempo de entrar em vigor em 2010. Segundo a assessoria do Ministério do Desenvolvimento Agrário, Cassel rubricou a medida um dia após a promessa feita por Lula, e a encaminhou a Stephanes.
O ministro da Agricultura, pressionado pela bancada do seu partido, o PMDB, já se manifestou publicamente contrário à proposta e não assinou a portaria. Resta ao presidente Lula decidir-se entre a Constituição, que ele assinou como constituinte e tem por obrigação respeitar, e o setor do PMDB que ainda encara o Brasil como um imenso latifúndio dividido entre a casa-grande e a senzala.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

A Teologia da Libertação: Leonardo Boff e Frei Betto


Michael Löwy *

Os cristãos comprometidos socialmente são um dos componentes mais ativos e importantes do movimento altermundista; particularmente, porém não somente na América Latina e especialmente no Brasil, país que acolheu as primeiras reuniões do Fórum Social Mundial (FSM). Um dos iniciadores do FSM, Chico Whitaker, membro da "Comissão Justiça e Paz" da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), pertence a esta esfera de influência, o mesmo que o sacerdote belga François Houtart, amigo e professor de Camilo Torres, promotor da revista Alternatives Sud, fundador do "Centro Tricontinental" (CETRI) e uma das figuras intelectuais mais influentes do Fórum.
Podemos datar o nascimento dessa corrente, que poderíamos denominar como "cristianismo da libertação" no começo dos anos 60, quando a Juventude Universitária Católica brasileira (JUC), alimentada pela cultura católica francesa progressista (Emmanuel Mounier e a revista Esprit, o padre Lebret e o movimento "Economia y Humanismo", o Karl Marx do jesuíta J.Y. Calvez), formula por primeira vez, em nome do cristianismo, uma proposta radical de transformação social. Esse movimento se estende depois a outros países do continente e encontra, a partir dos anos 70, uma expressão cultural, política e espiritual na "Teologia da Libertação".
Os dois principias teólogos da libertação brasileiros, Leonardo Boff e Frei Betto, estão, portanto, entre os precursores e inspiradores do altermundismo; com seus escritos e suas palavras participam ativamente nas mobilizações do "movimento dos movimentos" e nos encontros do Fórum Social Mundial. Se sua influencia é muito significativa no Brasil, onde muitos militantes dos movimentos sociais, tais como sindicatos, MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) e movimentos de mulheres provêm de comunidades eclesiais de base (CEBs) conhecidas na Teologia da Libertação, seus escritos também são muito conhecidos entre os cristãos de outros países, tanto da América Latina quando do resto do mundo.
Se houvesse que resumir a idéia central da Teologia da Libertação em uma só frase, seria "opção preferencial pelos pobres".
Qual é a novidade? Por ventura, a Igreja não esteve sempre, caritativamente, atenta ao sofrimento dos pobres? A diferença -capital- é que o cristianismo da libertação já não considera os pobres como simples objetos de ajuda, compaixão ou caridade, mas como protagonistas de sua própria história, artífices de sua própria libertação. O papel dos cristãos comprometidos socialmente é participar na "longa marcha" dos pobres rumo à "terra prometida" -a liberdade-, contribuindo para sua organização e emancipação sociais.
O conceito de "pobre" tem, obviamente, um profundo alcance religioso no cristianismo; porém, corresponde também a uma realidade social essencial no Brasil e na América Latina: a existência de uma imensa massa de despossuídos, tanto nas cidades quanto no campo, que não são todos proletários ou trabalhadores. Alguns sindicalistas cristãos latino-americanos falam de "pobretariado" para descrever essa classe de deserdados que não somente são vítimas da exploração, mas, sobretudo, são vítimas da exclusão social pura e simples.
O processo de radicalização das culturas católicas do Brasil e América Latina que desembocou na criação da Teologia da Libertação não vai desde a cúpula da Igreja para irrigar sua base, nem a base popular vai à cúpula (duas versões que se encontram nos discursos dos sociólogos ou historiadores do fenômeno); mas da periferia rumo ao centro. As categorias ou setores sociais do âmbito religioso que serão o motor da renovação são todos, de alguma forma, marginais ou periféricos com relação à instituição: movimentos, leigos da Igreja e seus capelães; expertos leigos, sacerdotes estrangeiros, ordens religiosas. Em alguns casos, o movimento alcança o "centro" e consegue influir nas Conferências Episcopais (particularmente no Brasil), em outros casos fica bloqueado nas "margens" da instituição.
A pesar de que existem divergências significativas entre os teólogos da libertação, na maioria de seus escritos encontramos repetidos os temas fundamentais que constituem uma saída radical da doutrina tradicional e estabelecida das Igrejas Católica e Protestante:
-Uma implacável acusação moral e social contra o capitalismo como sistema injusto e iníquo, como forma de pecado estrutural.-O uso do instrumento marxista para compreender as causas da pobreza, as contradições do capitalismo e as formas da luta de classes.-A opção preferencial a favor dos pobres e a solidariedade com sua luta de emancipação social.-O desenvolvimento de comunidades cristãs de base entre os pobres como a nova forma da Igreja e como alternativa ao modo de vida individualista imposto pelo sistema capitalista.-A luta contra a idolatria (não o ateísmo) como inimigo principal da religião, isto é, contra os novos ídolos da morte, adorados pelos novos faraós, pelos novos Césares e pelos novos Herodes: O consumismo, a riqueza, o poder, a segurança nacional, o Estado, os exércitos; em poucas palavras, "a civilização cristã ocidental".
Examinemos mais de perto os escritos de Leonardo Boff e de Frei Betto, cujas idéias contribuíram, sem dúvida, à formação da cultura político-religiosa do componente cristão do altermundismo.
O livro de Leonardo Boff -na época, membro da ordem franciscana,- Jesus Cristo libertador, (Petrópolis, Vozes, 1971), pode ser considerado como a primeira obra da Teologia da Libertação no Brasil. Essencialmente, trata-se de uma obra de exegese bíblica; porém um dos capítulos, possivelmente o mais inovador, intitulado "Cristologia desde América Latina", expressa o desejo de que a Igreja possa "participar de maneira crítica no arrranque global de libertação que a sociedade sul-americana conhece hoje". Segundo Boff, a hermenêutica bíblica de seu livro está inspirada pela realidade latino-americana, o que dá como resultado "a primazia do elemento antropológico sobre o eclesiástico, do utópico sobre o efetivo, do crítico sobre o dogmático, do social sobre o pessoal e da ortopráxis sobre a ortodoxia"; aqui se anunciam alguns dos temas fundamentais da Teologia da Libertação [1].
Personagem carismático, com uma cultura e uma criatividade enormes, ao mesmo tempo místico franciscano e combatente social, Boff converteu-se no principal representante brasileiro dessa nova corrente teológica. Em seu primeiro livro já encontramos referencias ao "Princípio Esperança", de Ernst Bloch, porém, progressivamente, no curso dos anos 70, os conceitos e temas marxistas cada vez mais aparecem em sua obra até converter-se em um dos componentes fundamentais de sua reflexão sobre as causas da pobreza e a prática da solidariedade com a luta dos pobres por sua libertação.
Rechaçando o argumento conservador que pretende julgar o marxismo pelas práticas históricas do chamado "socialismo real", Boff constata, não sem ironia, que o mesmo que o Cristianismo não se identifica com os mecanismos da Santa Inquisição, o marxismo não tem porque se equiparar aos "socialismos" existentes, que "não representam uma alternativa desejável por conta de sua tirania burocrática e pelo sufocamento das liberdades individuais". O ideal socialista pode e deve assumir outras formas históricas [2]
Em 1981, Leonardo Boff publica o livro "Igreja, Carisma e Poder", uma reviravolta na história da Teologia da Libertação: por primeira vez desde a Reforma protestante, um sacerdote católico coloca em xeque, de maneira direta, a autoridade hierárquica da Igreja, seu estilo de poder romano-imperial, sua tradição de intolerância e dogmatismo -simbolizada durante vários séculos pela Inquisição, pela repressão de toda crítica vinda de baixo e o rechaço da liberdade de pensamento. Denuncia também a pretensão de infalibilidade da Igreja e o poder pessoal excessivo dos papas, que compara, não sem ironia, com o poder do secretário geral do Partido Comunista soviético.
Convocado pelo Vaticano em 1984 para um "colóquio" com a Santa Congregação para a Doutrina da Fé (antes, o Santo Ofício), dirigida pelo Cardenal Ratzinger, o teólogo brasileiro não abaixa a cabeça, nem nega retratar-se; permanece fiel a suas convicções e Roma o condena a um ano de "silencio obsequioso"; finalmente, frente à multiplicação dos protestos no Brasil e em outros lugares, a sansão foi reduzida em vários meses. Dez anos mais tarde, cansado do hostigamento, das proibições e das exclusões de Roma, Boff abandona a ordem dos franciscanos e a Igreja, sem, no entanto, abandonar sua atividade de teólogo católico.
A partir dos anos 90, interessa-se cada vez mais pelas questões ecológicas que aborda com o espírito de amor místico e franciscano pela natureza e com uma perspectiva de crítica radical do sistema capitalista. Será o objeto do livro Dignitas Terrae. Ecologia: grito da terra, grito dos pobres, (S. Paulo, Ática, 1995) e escreve inúmeros ensaios filosóficos, éticos e teológicos que abordam esta problemática. Segundo Leonardo Boff, o encontro entre a Teologia da Libertação e a ecologia é resultado de uma constatação: "A mesma lógica do sistema dominante de acumulação e da organização social que conduz à exploração dos trabalhadores, leva também à pilhagem de nações inteiras, e, finalmente, à degradação da natureza".
Portanto, a Teologia da Libertação aspira a uma ruptura com a lógica desse sistema, uma ruptura radical que aponta a "libertar os pobres, os oprimidos e os excluídos, as vítimas da voracidade da acumulação injustamente distribuída e libertar a Terra, essa grande vítima sacrificada pela pilhagem sistemática de seus recursos, que põe em risco o equilíbrio físico, químico e biológico do planeta como um todo". O paradigma opressão / libertação aplica-se, pois, para ambas: as classes dominadas e exploradas por um lado; e a Terra e suas espécies vivas, por outro [3].
Amigo próximo de Leonardo Boff (publicaram alguns livros juntos), Frei Betto é, sem dúvida, um dos mais importantes teólogos da libertação do Brasil e da América Latina e um dos principais animadores das CEBs (Comunidades Eclesiais de Base). Dirigente nacional da Juventude Estudantil Católica (JEC) no início dos anos 60, Carlos Alberto Libânio Christo (seu nome verdadeiro) começou sua educação espiritual e política com Santiago Maritain, Emmanuel Mounier, o padre Lebret e o grande intelectual católico brasileiro Alceu Amoroso Lima, porém, durante sua atividade militante na União Nacional dos Estudantes (UNE), descobriu O Manifesto Comunista e A Ideologia Alemã. Quando entrou como noviço na ordem dos dominicanos, em 1965, naquela época um dos principias focos de elaboração de uma interpretação liberacionista do cristianismo, já havia tomado firmemente a resolução de consagrar-se à luta da revolução brasileira [4].
Impressionado com a pobreza do mundo e pela ditadura militar estabelecida em 1964, incorpora-se a uma rede de dominicanos que simpatizam ativamente com a resistência armada contra o regime. Quando a repressão se intensificou, em 1969, socorreu a inúmeros revolucionários, ajudando-os a esconder-se ou a cruzar a fronteira para o Uruguai ou para a Argentina. Essa atividade custou-lhe cinco anos de prisão, de 1969 a 1973.
Em um livro fascinante publicado no Brasil e reeditado mais de dez vezes, Batismo de Sangue. Os dominicanos e a morte de Carlos Marighella (Río de Janeiro, Ed. Bertrand, 1987), traça o retrato do dirigente do principal grupo revolucionário armado, assassinado pela polícia em 1969, bem como o de seus amigos dominicanos presos nas rodas da repressão e destroçados pela tortura. O último capítulo está consagrado à trágica figura de Frei Tito de Alencar, tão cruelmente torturado pela polícia brasileira que jamais recobrou seu equilíbrio psíquico: libertado da prisão e exilado na França, sofreu uma aguda mania de perseguição e cometeu suicídio em 1974.
As Cartas da Prisão de Betto, publicadas em 1977, mostram seu interesse pelo pensamento de Marx, a quem designava, para burlar a censura política, "o filósofo alemão". Em uma carta de outubro de 1971 a uma amiga, abadesa beneditina, observava: "a teoria econômico-social do filósofo alemão não teria existido sem as escandalosas contradições sociais provocadas pelo liberalismo econômico, que o conduziram a percebê-las, analisá-las e estabelecer princípios capazes de sobrepô-los" [5].
Depois de sua libertação da prisão, em 1973, Frei Betto consagrou-se à organização das comunidades de base. Durante os anos seguintes publicou vários folhetos que, em linguagem simples e inteligível, explicavam o sentido da Teologia da Libertação e o papel das CEBs. Logo, converteu-se em um dos principais dirigentes dos encontros intereclesiais nacionais, onde as CEBs de todas as regiões do Brasil intercambiam suas experiências sociais, políticas e religiosas. Em 1980 organizou o 4º Congresso internacional dos Teólogos do Terceiro Mundo.
Desde 1979 Betto é responsável pela Pastoral Operária de São Bernardo do Campo, cidade industrial do subúrbio de São Paulo, onde nasceu o novo sindicalismo brasileiro. Sem vincular-se a nenhuma organização política, não escondia suas simpatias pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Após a vitória eleitoral do candidato do PT, Luis Inácio Lula da Silva, em 2001, foi designado pelo novo presidente para dirigir o Programa "Fome Zero"; no entanto, descontente com a orientação econômica do governo, prisioneiro dos paradigmas neoliberais, demitiu-se de seu posto dois anos depois.
Enquanto alguns teólogos tentam reduzir o marxismo a uma "mediação sócio-analítica", Betto defende, em seu ensaio de 1986, Cristianismo e Marxismo, uma interpretação muito mais ampla da teoria marxista que inclui a ética e a utopia: "o marxismo é, sobretudo, uma teoria da práxis revolucionária (...). A prática revolucionária sobrepõe-se ao conceito e não se esgota na análise estritamente científica porque, necessariamente, inclui dimensões éticas, místicas e utópicas (...). Sem essa relação dialética teoria-práxis, o marxismo se esclerosa e se transforma em ortodoxia acadêmica perigosamente manipulável pelos que controlam os mecanismos do poder". Esta última frase é, sem dúvida, uma referencia crítica a URSS e aos países do socialismo real que constituem, em sua maneira de ver, uma experiência deformada por sua "ótica objetivista", sua "tendência economicista" e, sobretudo, por sua "metafísica do Estado".
Betto e Boff, como a imensa maioria dos teólogos da libertação, não aceitam a redução, tipicamente liberal, da religião a um "assunto privado" do indivíduo. Para eles, a religião é um assunto eminentemente público, social e político. Essa atitude não é necessariamente uma oposição à laicidade; de fato, o cristianismo da libertação situa-se nas antípodas do conservadorismo clerical: -Predicando a separação total entre a Igreja e o Estado e a ruptura da cumplicidade tradicional entre o clero e os poderosos.-Negando a idéia de um partido ou um sindicato católico e reconhecendo a necessária autonomia dos movimentos políticos e sociais populares.-Rechaçando toda idéia de regresso ao "catolicismo político" pré-crítico e sua ilusão de uma "nova cristandade".-Favorecendo a participação dos cristãos nos movimentos ou partidos populares seculares.
Para a Teologia da Libertação não existe contradição entre essa exigência de democracia moderna e secular e o compromisso dos cristãos no âmbito político. Trata-se de dois enfoques diferentes da relação entre religião e política: desde o ponto de vista institucional é imprescindível que prevaleça a separação e a autonomia; porém, no âmbito ético-político o imperativo essencial é o compromisso.
Levando em consideração essa orientação eminentemente prática e combativa, não é de se estranhar que muitos dos dirigentes e ativistas dos movimentos sociais mais importantes dos últimos anos -desde 1990-, fossem formados na América Latina segundo as idéias da Teologia da libertação. Podemos dar como exemplo o MST, um dos movimentos mais impressionantes da história contemporânea do Brasil, por sua capacidade de mobilização, seu radicalismo, sua influência política e sua popularidade (além de ser uma das principais forças da organização do Fórum Social Mundial). A imensa maioria dos dirigentes ou ativistas do MST procedem das CEBs ou da Pastoral da Terra: sua formação religiosa, moral, social e, em certa medida, política, efetuou-se nas filas da "Igreja dos pobres". No entanto, desde sua origem, nos anos 70, o MST optou por ser um movimento leigo, secular e autônomo e independente com relação á Igreja. A imensa maioria de seus militantes é católica; porém, também há evangélicos e não crentes (poucos). A doutrina (socialista!) e a cultura do MST não fazem referência ao cristianismo; porém, podemos dizer que o estilo de militância, a fé na causa e a disposição ao sacrifício de seus membros, muitos têm sido vítimas de assassinatos e até de matanças coletivas durante os últimos anos, têm, provavelmente, fontes religiosas.
As correntes e os militantes cristãos que participam no movimento altermundista são muito diversos -ONGs, militantes dos sindicatos e partidos de esquerda, estruturas próximas à Igreja- e não partilham das mesmas escolhas políticas. Porém, a imensa maioria se reconhece nas grandes linhas da Teologia da Libertação, tal como a formularam Leonardo Boff, Frei Betto, Clodovis Boff, Hugo Assmann, Dom Tomás Balduino, Dom Helder Camara, Dom Pedro Casaldáliga, e tantos outros conhecidos e menos conhecidos, e partilham sua crítica ética e social do capitalismo e seu compromisso pela libertação dos pobres.
BIBLIOGRAFIA
Leonardo Boff, Jesus Christ Libérateur, Paris, Cerf, 1985.L. Boff, Eglise, Charisme et Pouvoir, Bruxelles, Lieu Commun 1985.L. Boff, O caminhar da Igreja com os oprimidos, Petrópolis, Vozes, 1988, 3a edição, prefacio de Darcy Ribeiro.L. Boff, "Je m’explique" (entrevistas con C. Dutilleux), Paris, Desclée de Brouwer, 1994.L. Boff, Dignitas Terrae. Ecologia: grito da terra, grito dos pobres, S.Paulo, Ática, 1995.L. Boff, "Libertação integra: do pobre e da terra", in A teologia da libertação. Balanço e Perspectivas, S.Paulo, Ática, 1996.Fr. Fernando, Fr. Ivo, Fr. Betto, O canto na fogueira. Cartas de três dominicanos quando em cárcere político, Petrópolis, Vozes, 1977.Frei Betto, Cristianismo e Marxismo, Petrópolis, Vozes, 1986.Frei Betto, Batismo de Sangue. Os dominicanos e a morte de Carlos Marighella, Rio de Janeiro, Editora Bertrand, 1987.Théologies de la libération. Documents et debats, Paris, Le Cerf, 1985.Michael Löwy, La guerre des dieux. Religion et politique en Amerique Latine, Paris, Ed. du Felin, 1998.
NOTAS:
[1] L. Boff, Jesus Christ Libérateur, París, Cerf, 1985, pp. 51-55. Ibid. p. 275.[2] L.Boff, "Libertação integra: do pobre et da terra", in A teologia da libertação. Balanço e Perspectivas, S.Paulo, Ática, 1996, pp. 115, 124-128.[3] Entrevista de Frei Betto con el autor, 13-09-1988.[4] Fr. Fernando, Fr. Ivo, Fr. Betto, O canto na fogueira. Cartas de três dominicanos quando em cárcere político, Petrópolis, Vozes, 1977, pp. 39 e 120.[5] Frei Betto, Cristianismo e Marxismo, Petrópolis, Vozes, 1986, pp. 35-37.


* Sociólogo. É um dos principias investigadores do mundo sobre o marxismo latino-americano. Reside em Paris, onde é diretor de investigações no "Centre National de la Recherche Scientifique" (CNRS)

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Bifurcação na Justiça



Por Boaventura de Sousa Santos (FSP, 10/06/2008)

Ao contrário do que se pode pensar, a justiça histórica tem menos a ver com o passado do que com o futuro.


ENTENDE-SE por bifurcação a situação de um sistema instável em que uma alteração mínima pode causar efeitos imprevisíveis e de grande porte. Penso que o sistema judicial brasileiro vive neste momento uma situação de bifurcação.
O Brasil é um dos países latino-americanos com mais forte tradição de judicialização da política. Há judicialização da política sempre que os conflitos jurídicos, mesmo que titulados por indivíduos, são emergências recorrentes de conflitos sociais subjacentes que o sistema político em sentido estrito (Congresso e governo) não quer ou não pode resolver. Os tribunais são, assim, chamados a decidir questões que têm um impacto significativo na recomposição política de interesses conflitantes em jogo.
Neste momento, o país atravessa um período alto de judicialização da política. Entre outras ações, tramitam no STF a demarcação do território indígena Raposa/Serra do Sol, a regularização dos territórios quilombolas e as ações afirmativas vulgarmente chamadas cotas. Muito diferentes entre si, esses casos têm em comum serem emanações da mesma contradição social que atravessa o país desde o tempo colonial: uma sociedade cuja prosperidade foi construída à base da usurpação violenta dos territórios originários dos povos indígenas e com recurso à sobreexploração dos escravos que para aqui foram trazidos.
Por essa razão, no Brasil, a injustiça social tem um forte componente de injustiça histórica e, em última instância, de racismo antiíndio e antinegro. De tal forma que resulta ineficaz e mesmo hipócrita qualquer declaração ou política de justiça social que não inclua a justiça histórica. E, ao contrário do que se pode pensar, a justiça histórica tem menos a ver com o passado que com o futuro. Estão em causa novas concepções de país, soberania e desenvolvimento. Desde há 20 anos, sopra no continente um vento favorável à justiça histórica. Desde a Nicarágua, em meados dos anos 80 do século passado, até a discussão em curso da nova Constituição do Equador, têm vindo a consolidar-se as seguintes idéias.
Primeira, a unidade do país se reforça quando se reconhece a diversidade das culturas dos povos e das nações que o constituem. Segunda, os povos indígenas nunca foram separatistas. Pelo contrário, nas guerras fronteiriças do século 19, deram provas de um patriotismo que a história oficial nunca quis reconhecer. Hoje, quem ameaça a integridade nacional não são os povos indígenas; são as empresas transnacionais, com sua sede insaciável de livre acesso aos recursos naturais, e as oligarquias, quando perdem o controle do governo central, como bem ilustra o caso de Santa Cruz de la Sierra (Bolívia).
Terceira, dado o peso de um passado injusto, não é possível, pelo menos por algum tempo, reconhecer a igualdade das diferenças (interculturalidade) sem reconhecer a diferença das igualdades (reconhecimentos territoriais e ações afirmativas).
Quarta, não é por coincidência que 75% da biodiversidade do planeta se encontra em territórios indígenas ou de afrodescendentes. Pelo contrário, a relação desses povos com a natureza permitiu criar formas de sustentabilidade que hoje se afiguram decisivas para a sobrevivência do planeta. É por essa razão que a preservação dessas formas de manejo do território transcende o interesse desses povos. Interessa ao país no seu conjunto e ao mundo. Pela mesma razão, o reconhecimento dos territórios tem de ser em sistema contínuo, pois doutro modo desaparecem as reservas e, com elas, a identidade cultural dos indígenas e a própria biodiversidade. Esses são os ventos da história e da justiça social no atual momento do continente. Ao longo do século 20, não foi incomum que instâncias superiores do sistema judicial atuassem contra os ventos da história, e quase sempre os resultados foram trágicos. Nos anos 30, a Suprema Corte dos EUA procurou bloquear as políticas do "New Deal" do presidente Roosevelt, o que impediu a recuperação econômica e social que só a Segunda Guerra Mundial permitiu. No início dos anos 70, o Superior Tribunal do Chile boicotou sistematicamente as políticas do presidente Allende que visavam a justiça social, a reforma agrária, a soberania sobre os recursos naturais, fortalecendo assim as forças e os interesses que ganharam com o seu assassinato.
Em momentos de bifurcação histórica, as decisões do STF nunca serão formais, mesmo que assim se apresentem. Condicionarão decisivamente o futuro do país. Para o bem ou para o mal.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

As dores do pós-colonialismo



Por Boaventura Sousa Santos
(Publicado na Folha de São Paulo em 21/08/2006)

O Brasil parece finalmente estar a passar do período da pós-independência para o período pós-colonial. A entrada neste último período dá-se pela constatação de que o colonialismo, longe de ter terminado com a independência, continuou sob outras formas, mas sempre em coerência com o seu princípio matricial: o racismo como uma forma de hierarquia social não intencional porque assente na desigualdade natural das raças. Esta constatação pública é o primeiro passo para se iniciar a viragem descolonial, mas esta só ocorrerá se o racismo for confrontado por uma vontade política desracializante firme e sustentável. A construção dessa vontade política é um processo complexo, mas tem a seu favor convenções internacionais e, sobretudo, a força política dos movimentos sociais protagonizados pelas vítimas inconformadas da discriminação racial. Para ser irreversível, a viragem descolonial tem de ocorrer no Estado e na sociedade, no espaço público e no espaço privado, no trabalho e no lazer, na educação e na saúde.
A modernidade ocidental foi simultaneamente um processo europeu, dotado de mecanismos poderosos, como a liberdade, igualdade, secularização, inovação científica, direito internacional e progresso; e um processo extra-europeu, dotado de mecanismos não menos poderosos, como o colonialismo, racismo, genocídio, escravatura, destruição cultural, impunidade, não-ética da guerra. Um não existiria sem o outro. Por terem sido concedidas aos descendentes dos colonos europeus e não aos povos originários ou aos para aqui trazidos pela escravatura (com exceção do Haiti), as independências latino-americanas legitimaram o novo poder por via dos mecanismos do processo europeu para poderem continuar a exercê-lo por via dos mecanismos do processo extra europeu. Assim se naturalizou um sistema de poder, até hoje em vigor, que, sem contradição aparente, afirma a liberdade e a igualdade e pratica a opressão e a desigualdade.
Assentes neste sistema de poder, os ideais republicanos da democracia e da igualdade constituem uma hipocrisia sistêmica. Só quem pertence à raça dominante tem o direito (e a arrogância) de dizer que a raça não existe ou que a identidade étnica é uma invenção. O máximo de consciência possível desta democracia hipócrita é diluir a discriminação racial na discriminação social. Admite que os negros e os indígenas são discriminados porque são pobres para não ter de admitir que eles são pobres porque são negros e indígenas. Uma democracia de muito baixa intensidade. A sua crise final começa no momento em que as vítimas da discriminação se organizam para lutar contra a ideologia que os declara ausentes e as práticas que os oprimem enquanto presenças desvalorizadas. Os agentes destas lutas distinguem-se dos seus antecessores por duas razões. Em primeiro lugar, empenham-se na luta simultânea pela igualdade e pelo reconhecimento da diferença. Reivindicam o direito de ser iguais quando a diferença os inferioriza e o direito de ser diferentes quando a igualdade os descaracteriza. Em segundo lugar, apostam em soluções institucionais dentro e fora do Estado para que o reconhecimento dos dois princípios seja efetivo. Daí a luta pelos projetos de Lei de Cotas e do Estatuto da Igualdade Racial. O alto valor democrático destes projetos de lei reside na ideia de que o reconhecimento da existência do racismo só é legítimo quando visa a eliminação do racismo. É o único antídoto eficaz contra os que têm o poder de desconhecer ou negar o racismo para o continuarem a praticar impunemente.
Estes projetos de lei, se aprovados e aplicados, darão ao Brasil uma nova autoridade moral e um novo protagonismo político no plano internacional. No plano interno, será possível a construção de uma coesão social sem a enorme sombra do silêncio dos excluídos. Para que tal ocorra, os movimentos sociais não podem confiar demasiado na vontade dos governantes, dado que eles são produtos do sistema de poder que naturalizou a discriminação racial. Para que eles sintam a vontade de se descolonizarem é necessário pressioná-los e mostrar-lhes que o seu futuro colonial tem os dias contados. Esta pressão não pode ser obra exclusiva do movimento negro e do movimento indígena. É necessário que o MST, os movimentos de direitos humanos, sindicais, feministas, ecológicos se juntem à luta, no entendimento de que, no momento presente, a luta pelas cotas e pela igualdade racial condensa, de modo privilegiado, as contradições de que nascem todas as outras lutas em que estão envolvidos
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