quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Bifurcação na Justiça



Por Boaventura de Sousa Santos (FSP, 10/06/2008)

Ao contrário do que se pode pensar, a justiça histórica tem menos a ver com o passado do que com o futuro.


ENTENDE-SE por bifurcação a situação de um sistema instável em que uma alteração mínima pode causar efeitos imprevisíveis e de grande porte. Penso que o sistema judicial brasileiro vive neste momento uma situação de bifurcação.
O Brasil é um dos países latino-americanos com mais forte tradição de judicialização da política. Há judicialização da política sempre que os conflitos jurídicos, mesmo que titulados por indivíduos, são emergências recorrentes de conflitos sociais subjacentes que o sistema político em sentido estrito (Congresso e governo) não quer ou não pode resolver. Os tribunais são, assim, chamados a decidir questões que têm um impacto significativo na recomposição política de interesses conflitantes em jogo.
Neste momento, o país atravessa um período alto de judicialização da política. Entre outras ações, tramitam no STF a demarcação do território indígena Raposa/Serra do Sol, a regularização dos territórios quilombolas e as ações afirmativas vulgarmente chamadas cotas. Muito diferentes entre si, esses casos têm em comum serem emanações da mesma contradição social que atravessa o país desde o tempo colonial: uma sociedade cuja prosperidade foi construída à base da usurpação violenta dos territórios originários dos povos indígenas e com recurso à sobreexploração dos escravos que para aqui foram trazidos.
Por essa razão, no Brasil, a injustiça social tem um forte componente de injustiça histórica e, em última instância, de racismo antiíndio e antinegro. De tal forma que resulta ineficaz e mesmo hipócrita qualquer declaração ou política de justiça social que não inclua a justiça histórica. E, ao contrário do que se pode pensar, a justiça histórica tem menos a ver com o passado que com o futuro. Estão em causa novas concepções de país, soberania e desenvolvimento. Desde há 20 anos, sopra no continente um vento favorável à justiça histórica. Desde a Nicarágua, em meados dos anos 80 do século passado, até a discussão em curso da nova Constituição do Equador, têm vindo a consolidar-se as seguintes idéias.
Primeira, a unidade do país se reforça quando se reconhece a diversidade das culturas dos povos e das nações que o constituem. Segunda, os povos indígenas nunca foram separatistas. Pelo contrário, nas guerras fronteiriças do século 19, deram provas de um patriotismo que a história oficial nunca quis reconhecer. Hoje, quem ameaça a integridade nacional não são os povos indígenas; são as empresas transnacionais, com sua sede insaciável de livre acesso aos recursos naturais, e as oligarquias, quando perdem o controle do governo central, como bem ilustra o caso de Santa Cruz de la Sierra (Bolívia).
Terceira, dado o peso de um passado injusto, não é possível, pelo menos por algum tempo, reconhecer a igualdade das diferenças (interculturalidade) sem reconhecer a diferença das igualdades (reconhecimentos territoriais e ações afirmativas).
Quarta, não é por coincidência que 75% da biodiversidade do planeta se encontra em territórios indígenas ou de afrodescendentes. Pelo contrário, a relação desses povos com a natureza permitiu criar formas de sustentabilidade que hoje se afiguram decisivas para a sobrevivência do planeta. É por essa razão que a preservação dessas formas de manejo do território transcende o interesse desses povos. Interessa ao país no seu conjunto e ao mundo. Pela mesma razão, o reconhecimento dos territórios tem de ser em sistema contínuo, pois doutro modo desaparecem as reservas e, com elas, a identidade cultural dos indígenas e a própria biodiversidade. Esses são os ventos da história e da justiça social no atual momento do continente. Ao longo do século 20, não foi incomum que instâncias superiores do sistema judicial atuassem contra os ventos da história, e quase sempre os resultados foram trágicos. Nos anos 30, a Suprema Corte dos EUA procurou bloquear as políticas do "New Deal" do presidente Roosevelt, o que impediu a recuperação econômica e social que só a Segunda Guerra Mundial permitiu. No início dos anos 70, o Superior Tribunal do Chile boicotou sistematicamente as políticas do presidente Allende que visavam a justiça social, a reforma agrária, a soberania sobre os recursos naturais, fortalecendo assim as forças e os interesses que ganharam com o seu assassinato.
Em momentos de bifurcação histórica, as decisões do STF nunca serão formais, mesmo que assim se apresentem. Condicionarão decisivamente o futuro do país. Para o bem ou para o mal.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

As dores do pós-colonialismo



Por Boaventura Sousa Santos
(Publicado na Folha de São Paulo em 21/08/2006)

O Brasil parece finalmente estar a passar do período da pós-independência para o período pós-colonial. A entrada neste último período dá-se pela constatação de que o colonialismo, longe de ter terminado com a independência, continuou sob outras formas, mas sempre em coerência com o seu princípio matricial: o racismo como uma forma de hierarquia social não intencional porque assente na desigualdade natural das raças. Esta constatação pública é o primeiro passo para se iniciar a viragem descolonial, mas esta só ocorrerá se o racismo for confrontado por uma vontade política desracializante firme e sustentável. A construção dessa vontade política é um processo complexo, mas tem a seu favor convenções internacionais e, sobretudo, a força política dos movimentos sociais protagonizados pelas vítimas inconformadas da discriminação racial. Para ser irreversível, a viragem descolonial tem de ocorrer no Estado e na sociedade, no espaço público e no espaço privado, no trabalho e no lazer, na educação e na saúde.
A modernidade ocidental foi simultaneamente um processo europeu, dotado de mecanismos poderosos, como a liberdade, igualdade, secularização, inovação científica, direito internacional e progresso; e um processo extra-europeu, dotado de mecanismos não menos poderosos, como o colonialismo, racismo, genocídio, escravatura, destruição cultural, impunidade, não-ética da guerra. Um não existiria sem o outro. Por terem sido concedidas aos descendentes dos colonos europeus e não aos povos originários ou aos para aqui trazidos pela escravatura (com exceção do Haiti), as independências latino-americanas legitimaram o novo poder por via dos mecanismos do processo europeu para poderem continuar a exercê-lo por via dos mecanismos do processo extra europeu. Assim se naturalizou um sistema de poder, até hoje em vigor, que, sem contradição aparente, afirma a liberdade e a igualdade e pratica a opressão e a desigualdade.
Assentes neste sistema de poder, os ideais republicanos da democracia e da igualdade constituem uma hipocrisia sistêmica. Só quem pertence à raça dominante tem o direito (e a arrogância) de dizer que a raça não existe ou que a identidade étnica é uma invenção. O máximo de consciência possível desta democracia hipócrita é diluir a discriminação racial na discriminação social. Admite que os negros e os indígenas são discriminados porque são pobres para não ter de admitir que eles são pobres porque são negros e indígenas. Uma democracia de muito baixa intensidade. A sua crise final começa no momento em que as vítimas da discriminação se organizam para lutar contra a ideologia que os declara ausentes e as práticas que os oprimem enquanto presenças desvalorizadas. Os agentes destas lutas distinguem-se dos seus antecessores por duas razões. Em primeiro lugar, empenham-se na luta simultânea pela igualdade e pelo reconhecimento da diferença. Reivindicam o direito de ser iguais quando a diferença os inferioriza e o direito de ser diferentes quando a igualdade os descaracteriza. Em segundo lugar, apostam em soluções institucionais dentro e fora do Estado para que o reconhecimento dos dois princípios seja efetivo. Daí a luta pelos projetos de Lei de Cotas e do Estatuto da Igualdade Racial. O alto valor democrático destes projetos de lei reside na ideia de que o reconhecimento da existência do racismo só é legítimo quando visa a eliminação do racismo. É o único antídoto eficaz contra os que têm o poder de desconhecer ou negar o racismo para o continuarem a praticar impunemente.
Estes projetos de lei, se aprovados e aplicados, darão ao Brasil uma nova autoridade moral e um novo protagonismo político no plano internacional. No plano interno, será possível a construção de uma coesão social sem a enorme sombra do silêncio dos excluídos. Para que tal ocorra, os movimentos sociais não podem confiar demasiado na vontade dos governantes, dado que eles são produtos do sistema de poder que naturalizou a discriminação racial. Para que eles sintam a vontade de se descolonizarem é necessário pressioná-los e mostrar-lhes que o seu futuro colonial tem os dias contados. Esta pressão não pode ser obra exclusiva do movimento negro e do movimento indígena. É necessário que o MST, os movimentos de direitos humanos, sindicais, feministas, ecológicos se juntem à luta, no entendimento de que, no momento presente, a luta pelas cotas e pela igualdade racial condensa, de modo privilegiado, as contradições de que nascem todas as outras lutas em que estão envolvidos
.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Justiça Social e Justiça Histórica



Boaventura de Sousa Santos[1] (FSP, 26/08/2009, p. A3)

Ao regressar de férias, o STF enfrenta uma questão crucial para a construção da identidade do Brasil pós-constituinte: é possível adotar um sistema de ações afirmativas para ingresso nas universidades públicas que destine parte das vagas a negros e indígenas?
Ao rejeitar o pedido de liminar em ação movida pelo DEM visando suspender a matrícula dos alunos, o ministro Gilmar Mendes sugeriu que a resposta fosse dada em razão do impacto das ações afirmativas sobre um dos elementos centrais do constitucionalismo moderno: a fraternidade.
Perguntou se se estaria abrindo mão da ideia de um país miscigenado e adotando o conceito de nação bicolor, que opõe "negros" a "não negros", e se não haveria forma mais adequada de realizar "justiça social" -por exemplo, cotas pelo critério da renda.
Situar o juízo de constitucionalidade no horizonte da fraternidade é uma importante inovação no discurso do Supremo.
Mas, assim como o debate sobre a adoção de ações afirmativas baseadas na cor da pele não pode ser dissociado do modo como a sociedade brasileira se organizou racialmente, o debate sobre a concretização da Constituição não pode desprezar as circunstâncias históricas nas quais ela se insere.
Como já escrevi nesta seção, o ideário da fraternidade nas revoluções europeias caminhou de par com a negação da fraternidade fora da Europa ("As dores do pós-colonialismo", 21/8/06). No "novo mundo", a prosperidade foi construída à base da usurpação violenta de territórios originários dos povos indígenas e da sobre-exploração dos escravos para aqui trazidos.
Por essa razão, no Brasil, a injustiça social tem forte componente de injustiça histórica e, em última instância, de racismo anti-índio e antinegro ("Bifurcação na Justiça", 10/6/08).
Em contraste com outros países (EUA), o Brasil apresenta um grau bem maior de miscigenação.
A questão é saber se esse maior grau de miscigenação foi suficiente para evitar a persistência de desigualdades estruturais associadas à cor da pele e à identidade étnica, ou seja, se o fim do colonialismo político acarretou o fim do colonialismo social.
Os indicadores sociais dizem que essas desigualdades persistem. Por exemplo, um estudo recente divulgado pela Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República mostra que o risco de ser assassinado no Brasil é 2,6 vezes maior entre adolescentes negros do que entre brancos.
Falar em fraternidade no Brasil significa enfrentar o peso desse legado, grande desafio para um país em que muitos tomam a ideia de democracia racial como dado, não como projeto.
Mas, se o desafio for enfrentado pelas instituições sem que se busque diluir o problema em categorias fluidas como a de "pobres", o país caminhará não só para a consolidação de uma nova ordem constitucional, no plano jurídico, como também para a construção de uma ordem verdadeiramente pós-colonial, no plano sociopolítico.
Ao estabelecer um sistema de ações afirmativas para negros e indígenas, a UnB oferece três grandes contributos para essa transição.
Em primeiro lugar, o sistema de educação superior recusa-se a reproduzir as desigualdades que lhe são externas e mobiliza-se para construir alternativas de inclusão de segmentos historicamente alijados das universidades em razão da cor da pele ou identidade étnica.
Segundo, a adoção dessas alternativas não acarreta prejuízo para a qualidade acadêmica. Ao contrário, traz mais diversidade, criatividade e dinamismo ao campus ao incluir novos produtores e modos de conhecer.
Terceiro, apesar de levantarem reações pontuais, como a do DEM, ações afirmativas baseadas na cor da pele ou identidade étnica obtêm um elevado grau de legitimidade na comunidade acadêmica. Basta ver como diversos grupos de pesquisa e do movimento estudantil se articularam em defesa do sistema da UnB quando ele foi posto em causa.
Para o estudo das reformas universitárias, é fundamental que o programa da UnB possa completar o ciclo de dez anos previsto no plano de metas da instituição.
A resposta a ser adotada pelo STF é incerta. O tribunal poderá desprezar a experiência da UnB sob o receio de que ela dissolva o mito de um país fraterno, porque mais miscigenado do que outros. Mas o tribunal também poderá entender que o programa da UnB, ao reconhecer a existência de grupos historicamente desfavorecidos, é, ao contrário, uma tentativa válida de institucionalizar uma fraternidade efetiva. Somente a segunda resposta permite combinar justiça social com justiça histórica.

[1] 68, sociólogo português, é professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal). É autor, entre outros livros, de "Para uma Revolução Democrática da Justiça" (Cortez, 2007).

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Encontro Intereclesial das CEBs e ecologia



O 12º Encontro Intereclesial das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) aconteceu entre os dias 21 e 25 de julho, em Porto Velho, RO, e teve como tema “CEBs – Ecologia e Missão” e o lema é “Do ventre da terra, o grito que vem da Amazônia”. Depois do Fórum Social Mundial (FSM), do III Fórum Mundial de Teologia e Libertação, que aconteceram ambos em Belém, no começo deste ano, agora foi a vez do Encontro das CEBs acontecer na região amazônica.
Este encontro teve algumas novidades, que não podem passar desapercebidas. A primeira, é justamente o tema do Encontro: a ecologia. Para tratar desse assunto, nada mais apropriado do que mergulhar na região amazônica. É a primeira vez que a questão ecológica emerge como tema principal dos Encontros. Vê-se nisso uma sensibilidade e uma abertura das comunidades eclesiais para uma questão que é relativamente nova, mas que granjeou, em pouco tempo, a atenção de todos. A escolha desse tema significa uma mudança em relação aos temas anteriormente tratados, como lembra o teólogo José Oscar Beozzo: “Neste Intereclesial na Amazônia, a ênfase deslocou-se para os diferentes desafios no campo ecológico e o empenho dos integrantes das CEBs nos movimentos ecológicos, seja nos que respondem aos cinco clamores da Amazônia (grito dos povos indígenas, ribeirinhos, imigrantes; o grito da terra; o grito das águas e o grito das florestas), seja nos que vêm das outras grandes regiões do país”, disse na entrevista especial à IHU On-Line.
Referindo-se à questão do tema do Encontro, Luiz Ceppi, um dos organizadores, destacou a pertinência e a amplitude do mesmo: “Temos que refletir sobre qual é o nosso jeito de trabalhar para não entrarmos, como a maioria entra, no sistema de consumo, ferindo a mãe terra só para possuir um pouco mais. Se, pelo menos, as pessoas que participarem voltarem às suas regiões dizendo que a terra é uma mãe que precisa ser cuidada, o resultado já será ótimo”.
A consciência sobre a questão ecológica foi se criando e fortalecendo dentro da Igreja ao longo dos últimos anos. As Semanas Sociais Brasileiras – especialmente a partir da segunda, que aconteceu em julho de 1995 – vão testemunhando essa emergência. Já em 1992, o Setor Pastoral Social da CNBB publica o livretinho “A Igreja e a questão ecológica” que recolhe as reflexões realizadas no Seminário sobre “Ecologia e Desenvolvimento”, realizado pela CNBB naquele mesmo ano. Mas, antes disso, a Campanha da Fraternidade de 1979, com o lema “Preserve o que é de todos”, já trata do assunto.
Pode-se dizer que 30 anos depois, o tema, marginal, no começo, foi progressivamente ganhando relevância dentro da Igreja à medida que também foi se transformando em um assunto vetorial da nossa sociedade, num contexto de crise civilizacional, em que os modos de produção e de consumo, assentados sobre uma visão de crescimento econômico ilimitado e infinito, estão dando sinais de esgotamento.
“Na pauta das discussões está o equívoco de uma civilização que contrapõe desenvolvimento e natureza, gerando um desequilíbrio que prioriza o primeiro à custa da degradação da segunda. Num dos pratos dessa falsa balança, estão as empresas e corporações que mercantilizam e esgotam a terra, e também estão os governos federal, estaduais e municipais, com obras gigantescas que privilegiam os grandes e sacrificam os pequenos. Vista como uma zona de sintropia – para usar uma expressão dos especialistas – a Amazônia assiste à depredação da riqueza e da beleza de suas águas, biodiversidade e energia (os três maiores alvos do sistema capitalista que vigora como pensamento único em muitos gabinetes)”, reflete Jelson Oliveira, professor de Filosofia da PUCPR, agente da CPT-PR e assessor do 12º Encontro Intereclesial das CEBs.
Uma segunda novidade está no fato de o Encontro ter proporcionado uma imersão na realidade local. A programação contemplou um dia de visitas para que as mais de três mil pessoas pudessem mergulhar no mundo amazônico. “As pessoas partiram para se encontrar com comunidades ribeirinhas, com comunidades extrativistas, da periferia da cidade, com comunidades afro-descendentes e indígenas, com ocupações urbanas e assentamentos rurais. Foram também aos hospitais, às prisões, a casas de recuperação de pessoas com dependência química ou com deficiência, para visitar gente que sofre. Os participantes puderam tomar o pulso diretamente da realidade amazônica”, lembra o José Beozzo.
A iniciativa foi louvada pelo padre Beozzo. “Nunca aconteceu nos outros intereclesiais de se dedicar um dia inteiro para as pessoas tomarem contato com as realidades locais. Ninguém voltará com um discurso abstrato, mas, sim, com uma experiência muito concreta de algumas dessas realidades da região amazônica. Oferecer essa oportunidade aos delegados e à própria população local foi extremamente importante e rico”, destacou.
O enorme desconhecimento que recobre a região amazônica justifica essa ação, assim como a colocação em prática do método das CEBs, o ver-julgar-agir. Como disse dom Moacir Grechi, arcebispo de Porto Velho, “a Amazônia só é conhecida folcloricamente ou por interesses econômicos. O povo, em geral, não conhece a região, do bispo até o coroinha. Está sendo muito importante receber essas pessoas, principalmente a gente do povo, participando de diálogos, de visitas a grupos indígenas, a comunidades rurais, de periferia, prisões, hospitais”.
Ou, como destacou outra vez o padre Beozzo, “os organizadores souberam introduzir todos os delegados no coração da experiência dessa região, começando pela celebração de abertura, que foi no início da estrada de ferro Madeira-Mamoré, em cuja construção no coração da floresta amazônica, milhares de pessoas morreram. Ela marcou o auge do ciclo da borracha na região amazônica que arrastou para a região meio milhão de migrantes nordestinos, em especial cearenses tangidos pelas grandes secas e fome que se abateram sobre a região”.
Ver a realidade dos povos amazônicos e ver como está sendo tratada a natureza. Sob este aspecto torna-se extremamente interessante a leitura de alguns dos relatos que foram feitos por quem esteve por lá e viu. Fazemos menção ao relato feito por Antonio Cechin e Jacques Alfonsin, respectivamente irmão marista e advogado, quando de sua visita ao Rio Madeira, na altura das obras da hidrelétrica Santo Antonio.
A imersão teve o sentido de não apenas fazer ver a realidade, mas também ouvir os gritos que do interior desta realidade sobem. E, como explica dom Moacir Grechi, são “muitos” os gritos que vêm da Amazônia. “Aqui os gritos são muitos: é o grito das populações indígenas dizimadas e das suas terras exploradas – a madeira de lei das terras indígenas é roubada vergonhosamente sem que ninguém seja punido, pelo contrário; depois temos a problemática dos rios contaminados pelo mercúrio; temos o problema da criação extensiva de gado, e com isso é a floresta que cai; tem a soja, câncer da nossa região, que está subindo, e a mata cai e o ambiente se vai. Não se pode dizer que a Amazônia está urbanizada quando a metade da população não tem água tratada, não tem esgoto, não tem nem sanitário, às vezes. Esses são os gritos da Amazônia. Mas há também um grito de reação, de esperança, nada de desgraça definitiva.”
O ver e o ouvir a realidade, implicam na denúncia das violações, destruições e sofrimentos perpetrados contra todos os seres vivos e que ameaçam o equilíbrio da Terra, nossa “Casa comum”. “Vimos nossa Casa ameaçada pelo desmatamento, com o avanço da pecuária, das plantações de soja, cana, eucalipto e outras monoculturas, sobre áreas de florestas; pela ação predatória de madeireiras, pelas queimadas, poluição e envenenamento das águas, peixes e humanos pelo mercúrio dos garimpos, pelos rejeitos das mineradoras e pelo lixo nas cidades. Encontra-se ameaçada também pelo crescente tráfico de drogas, de mulheres e crianças e pelo extermínio de jovens provocado pela violência urbana”, destaca a Carta às Irmãs e aos Irmãos das CEBs e a todo o Povo de Deus.
Esses gritos foram sistematizados em cinco gritos no decorrer do Encontro, como mostra o Jelson Oliveira: o grito dos povos, o grito da terra, o grito das águas, o grito das florestas e o grito da cidade. Cada um desses gritos foi ouvido, acolhido, refletido, e objeto de compromissos, pelo que se pode depreender da Carta do Encontro.
Um terceiro elemento a ser destacado deste Encontro é a presença marcante dos grupos indígenas. Estiveram presentes 38 nações indígenas. A sua presença é importante na medida em que representam um contraponto à nossa cultura ocidental. Aprender com a sua cultura implica em relativizar aspectos da nossa e encontrar caminhos comuns de cuidado, que abrangem a vida em sua totalidade.
A Amazônia está se convertendo na última fronteira de exploração de recursos naturais. Por isso, de acordo com o sociólogo Pedro Ribeiro de Oliveira, os problemas de outras partes do Brasil estão sendo “empurrados” para a Amazônia. Ele explica: “Agora mesmo, para tirar o Brasil de um déficit energético e aumentar exportações, o governo abre a Amazônia para as hidrelétricas, fecha os olhos ao desmatamento, faz de conta que os povos indígenas nem existem, libera as mineradoras, enfim, faz tudo por um punhado de dólares”.
Neste contexto, continua Pedro Ribeiro, “os movimentos sociais que proclamam ‘um outro mundo possível’ nos interpelam a sermos mais firmes na busca de mudanças socioeconômicas estruturais capazes de romper com a lógica do lucro que rege a economia capitalista. Olhando para nossos vizinhos, vemos que temos muito a aprender com eles”.
As CEBs têm um papel importante e indispensável, qual seja, a de avançar “na construção de uma nova forma de consciência, forma que podemos chamar de planetária por ser intimamente relacionada com a vida da Terra. Na medida em que as CEBs formulam e difundem essa consciência de sermos todos parte da grande comunidade de vida, elas criam um novo patamar de onde se pode ver a crise atual sob nova perspectiva. Em lugar de múltiplas crises, perceber uma única crise: a crise do sistema produtivista-consumista regido pela lógica do mercado capitalista”, lembra Pedro Ribeiro.
A Carta dos participantes do Encontro destacam também as ações que estão sendo desenvolvidas, muitas delas com a participação de pessoas ligadas às CEBs, com vistas a fazer frente aos desafios ecológicos: “Constatamos, com alegria, a multiplicação de iniciativas em favor do meio ambiente, como a de humildes catadores de material reciclável, no meio urbano, tornando-se profetas da ecologia e as de economia solidária, agricultura orgânica e ecológica”, faz notar a Carta.
Entretanto, não se pode esquecer de alguns contrasensos presentes na prática do dia-a-dia, conforme nos faz lembrar o padre José Beozzo: “Assistimos, porém, no final da celebração de abertura, um contrasenso em relação à preocupação ecológica do encontro. Foram distribuídos em sinal de fraterna partilha, bombons de cupuaçu e castanha do Pará. Logo depois havia um mar de papeizinhos de bombom atirados no chão, sujando todo aquele espaço da celebração. Então, os cuidados começam por não sujar a natureza, não jogar lixo no chão. É preciso reduzir o lixo e reciclá-lo da melhor forma possível. Há questões pequenas e concretas, ao lado de grandes lutas, como o desmatamento e a preservação das águas e matas”.
E concluímos esta parte da análise com as frases de dom Moacir Grechi. “Deus não planta árvores, Ele planta sementes. Assim também as Comunidades Eclesiais de Base são tão escondidas e pequenas, que nós nem damos valor a elas, humanamente falando. Mas tem um provérbio africano, que fala justamente sobre a ação das comunidades de base urbanas e das florestas, que são formadas de gente simples, fazendo coisas pequenas, em lugares não importantes, mas conseguindo mudanças extraordinárias. Elas são formiguinhas que, pouco a pouco, com seu testemunho pessoal e de comunidade, conseguem grandes feitos, como mudar a mentalidade dentro da Igreja”.
Um grito irrompeu para dentro das CEBs para que pudessem se abrir e acolher os gritos que vem da Amazônia, da questão ecológica, grito esse que quer ecoar em todos os cantos deste país e em todas as dimensões.
O encontro das sensibilidades em torno da questão ecológica por parte das CEBs e da ex-Ministra Marina Silva, que já tem o seio eclesial como fator comum anterior, permitem uma sinergia muito grande. Por essa razão, caso realmente a sua candidatura se confirmar, são grandes as chances de ela ter muitos votos cebsianos.

(
Ecodebate, 14/08/2009) publicado pelo IHU On-line, 12/08/2009 [IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Mobilizações populares



Frei Betto


Nas três Américas, apenas Brasil e Argentina jamais fizeram reforma agrária. O detalhe é que somos um país de dimensões continentais.


Desde 10 de agosto, mais de 3 mil trabalhadores sem-terra se encontram acampados em Brasília para, de novo, alertar o governo federal sobre uma questão que, outrora, foi considerada prioritária pelo PT: a reforma agrária.
O mundo gira, a Lusitana roda, e hoje muita coisa parece virada de cabeça para baixo: quem fazia oposição a Sarney o defende; quem gritava “fora Collor” o elogia; quem exigia reforma agrária exalta o agronegócio. E, apesar das políticas sociais, 31 milhões de brasileiros (as) continuam a sobreviver na miséria. E a violência dissemina o medo por nossas cidades.

A manifestação dos sem-terra reivindica do governo muito pouco, sobretudo se comparado aos incentivos oficiais concedidos a empresas que degradam a Amazônia e usineiros, que, em latifúndios, mantêm trabalhadores em regime de semiescravidão.

É urgente assentar mais de 100 mil famílias sem-terra acampadas pelo país afora, sobrevivendo em barracas de plástico preto à beira de estradas. E cuidar das 40 mil famílias assentadas virtualmente, apenas no papel, pois aguardam, há tempo, recursos para investir em habitação, infraestrutura e produção. Nos últimos seis anos foram financiadas apenas 40 mil casas no meio rural. Também as escolas rurais necessitam, urgente, de recursos.

O Brasil não tem futuro sem mudar sua estrutura fundiária. Nas três Américas, apenas Brasil e Argentina jamais fizeram reforma agrária. O detalhe é que somos um país de dimensões continentais, com 600 milhões de hectares cultiváveis.

Dois problemas crônicos encontrariam solução se nosso país não tivesse tanta terra ociosa, como se constata ao viajar por nossas estradas ou sobrevoar nosso território: o desemprego e a violência urbana. Os países desenvolvidos, como os EUA e a Europa Ocidental, com territórios bem menores que o nosso, conseguem obter alta produtividade no campo, sem que haja latifúndio. Há, sim, grande incentivo à agricultura familiar.

O governo federal deve à nação a atualização dos índices de produtividade das propriedades rurais, intocados desde 1975. Por exigência constitucional, tais índices deveriam ser revistos a cada 10 anos. Eles são utilizados para classificar como produtivo ou improdutivo um imóvel rural e agilizar, com transparência, a desapropriação das terras para efeito de reforma agrária.O Ministério do Planejamento deve às famílias sem terra o descontingenciamento de R$ 800 milhões do orçamento do Incra previsto no orçamento deste ano. Esse recurso permitirá a obtenção de terras e aplicação no passivo dos assentamentos.

Durante o período de acampamento, que se encerra no dia 21, estão previstos também debates sobre conjuntura agrária, clima e meio ambiente, energia, Previdência Social, juventude, comunicação, gênero e raça, além de atividades culturais e ato em comemoração aos 25 anos do MST.

Está marcada para amanhã a jornada nacional de lutas contra a crise, uma mobilização de trabalhadores e desempregados, em todo o país, para assegurar manutenção do emprego, melhores salários, ampliação dos direitos, redução das taxas de juros e investimentos em políticas sociais.

Dia 19, movimentos sociais, estudantis e sindicais se reunirão, em Brasília, em defesa do petróleo, para reivindicar novo marco regulatório para a produção energética do país.

E no dia 7 de setembro, em todo o Brasil, o 15º Grito dos Excluídos, promovido por várias entidades, inclusive a CNBB, terá como tema “Vida em primeiro lugar – a força da transformação está na organização popular”.

A manifestação, que imprime caráter cívico à data da independência do Brasil, tem por objetivo arrancar a população do imobilismo e ressaltar a importância de se fortalecerem os movimentos sociais para consolidar nossa democracia e conquistar soberania.

A democracia não pode se restringir a eleições periódicas, que, por enquanto, permitem inclusive a candidatura de corruptos e réus de processos comuns. À democracia política é preciso aliar a econômica, de modo a reduzir a desigualdade social que envergonha o Brasil. Só assim conquistaremos o direito de ser um povo feliz.


Frei Betto é escritor, autor de A mosca azul – reflexão sobre o poder (Rocco), entre outros livros.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

É preciso um novo modelo agrícola para o país



JOÃO PEDRO STEDILE
(Publicado no Jornal Folha de São Paulo, 10/08/2009, p. A3)

É fundamental debater isto: de qual modelo agrícola precisamos para acabar com a pobreza, distribuir renda e garantir o desenvolvimento?

OS PROBLEMAS do desenvolvimento do meio rural e da construção de uma sociedade menos desigual, que resolva os problemas da pobreza, da educação e do direito à terra, passam atualmente por duas iniciativas complementares.
De forma urgente, o governo precisa enfrentar os problemas mais agudos da pobreza no campo. O governo Lula está em dívida com a reforma agrária. Temos ao redor de 90 mil famílias acampadas à beira de estradas, passando por todo o tipo de necessidade por anos e anos.Em 2005, o governo prometeu cumprir a lei agrária e atualizar os índices de produtividade para desapropriação, que são de 1975.
Até hoje, nada mudou. Em sete anos, apenas 40 mil casas em assentamentos foram construídas com crédito público. O pior é que, por causa da crise, cortaram pela metade os recursos do Orçamento para reforma agrária neste ano.
Em segundo lugar, o MST tem procurado debater com a sociedade e com o governo a necessidade de construirmos um novo modelo de produção na agricultura.
A partir dos anos 90, com a hegemonia do capital financeiro e das empresas transnacionais, foi se implantando o modo de produzir do chamado agronegócio, totalmente dependente desses interesses.
O jeito de produzir do agronegócio está baseado em latifúndios voltados para a monocultura de cana, de café, de soja, de laranja, de algodão ou para a pecuária extensiva.Os latifundiários, proprietários de áreas com mais de mil hectares, aliaram-se a empresas transnacionais, que fornecem os insumos -sementes transgênicas, fertilizantes químicos, venenos agrícolas e máquinas.
Depois disso, conglomerados estrangeiros passam a controlar o mercado com a garantia da compra das commodities, impondo os preços. A maior parte da produção se destina ao mercado externo e, por ter que repartir o lucro, fazendeiros procuram aumentar a escala, concentrando ainda mais terra e produção. Isso é perverso para os interesses da economia nacional e do povo brasileiro.
Esse modelo se sustenta no elevado uso de agrotóxicos, em vez de mão de obra e práticas agroecológicas. Não é por nada que o Brasil se tornou o maior consumidor mundial de venenos agrícolas, que degradam o solo e contaminam as águas e os alimentos que vão para o estômago.A classe média alta é sábia e busca consumir produtos orgânicos, mas o povo não tem alternativa. Além da intoxicação, causa desequilíbrio no ambiente, com a monocultura que destrói a biodiversidade.
O agronegócio é totalmente dependente do capital financeiro. O governo terá que disponibilizar R$ 97 bilhões em crédito para produzir R$ 120 bilhões, o valor do PIB do agronegócio, que não consegue sozinho comprar os insumos e produzir. Ou seja, a poupança nacional é usada para viabilizar a produção e o lucro de latifundiários e empresas transnacionais. Esse modelo é inviável do ponto de vista econômico, pois nenhum país se desenvolveu exportando matéria-prima. Os Estados Unidos, usados como modelo, exportam apenas 12% de sua produção agrícola.
O país utiliza 200 milhões de hectares para criar 240 milhões de cabeças de boi de forma extensiva, que se destinam basicamente para a exportação, sem nenhum valor agregado.Além do problema do efeito estufa, essas exportações rendem ao redor de US$ 5 bilhões por ano. Os 7.000 operários da Embraer, que produzem aviões e peças, exportam praticamente o mesmo valor por ano.
Infelizmente, o governo Lula fez uma composição com as forças do agronegócio, com a ilusão de que sustentariam o desenvolvimento do campo. No entanto, deveria dar prioridade à reforma agrária e à pequena agricultura, deixando o agronegócio para o mercado, que tanto defendem.
Os movimentos do campo, da Via Campesina, da Contag, das pastorais sociais, que compõem o Fórum Nacional pela Reforma Agrária, defendemos que o Estado e o governo priorizem uma nova política agrícola, com base na democratização da terra, cada vez mais concentrada e valorizada.
Em segundo lugar, a prioridade deve ser a produção de alimentos sadios para o mercado interno.
Em terceiro lugar, a interiorização de pequenas e médias agroindústrias sob controle de cooperativas de trabalhadores. Aliás, é nesse tipo de atividade que deveríamos aplicar os recursos públicos do BNDES.
Em quarto lugar, o Estado deve estimular a agroecologia, que respeita o meio ambiente e preserva os bens da natureza.
Em quinto lugar, é urgente um programa de universalização da educação, em todos os níveis, para povoados do meio rural.
É isto que a sociedade precisa debater com profundidade: de qual modelo agrícola precisamos no nosso país para acabar com a pobreza, distribuir renda e garantir o desenvolvimento?

JOÃO PEDRO STEDILE, 55, economista, é integrante da coordenação nacional do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) e da Via Campesina.