segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Carta da 13ª Romaria das Águas e da Terra de Minas Gerais



Tema: “TERRAS E ÁGUAS DE MINAS PEDEM SOCORRO.”
Lema: “ESCOLHE, POIS, A VIDA.”

“Eu vi o teu clamor, a tua dor e desci para caminhar com vocês” (Êxodo 3,7-10)
Somos Romeiras e Romeiros da mãe terra e da irmã água. Viemos a Itinga, no Vale do Jequitinhonha, rica região envolvida por montanhas e solos férteis, chapadas de onde se tira riquezas, terra de pedras preciosas, frutas nativas, pequizeiros e plantas medicinais. Banhada pelo Rio Jequitinhonha - cantado em versos e prosa pelos artistas natos da região - e seus inúmeros afluentes. Somos mulheres e homens, crianças, jovens, adultos e idosos. Lutamos, trabalhamos e acreditamos que é possível construir uma sociedade onde se preserva suas histórias, culturas, tradições, valores e espiritualidade, na qual os direitos do povo sejam reconhecidos e respeitados em sua totalidade. Por tudo isso irmãs e irmãos, continuaremos caminhando, como peregrinos da esperança, construindo a esperança na luta, levando em nossas bagagens a certeza na frente e a vitória na mão. Coloquemo-nos a caminho sem a indiferença dos apressados, mas com a serenidade dos que sabem contemplar a luz e a força divinas agindo em nós e, através de nós, no mundo. Que este caminhar seja sustentado pela coragem de quem sabe aonde chegar. Nessa desafiadora viagem, possamos unir forças com tantos outros e outras em busca de “um novo céu e nova terra.” Deixemo-nos guiar por Jesus Cristo, que convoca toda humanidade para ser uma só família, de todas as culturas e todas as religiões. Porque ele é o Deus único de todos os nomes, seio da saída e do retorno.
Com a força do Deus da vida, solidário e libertador, anunciamos e defendemos:
A luta dos povos originais – quilombolas, indígenas, sertanejos, geraizeiros etc - pelo seu reconhecimento e dignidade, luta por igualdade entre homens e mulheres, luta em defesa do meio ambiente, luta por reforma agrária, por soberania e segurança alimentar, por dignidade no campo e por um semi-árido sustentável.

Denunciamos:
Os grandes projetos desenvolvimentistas baseados no fortalecimento do agronegócio ligados a grandes grupos econômicos nacionais e internacionais que promovem enormes danos sociais e ambientais através da implantação de projetos de Monoculturas de eucalipto, Grandes barragens, Exploração de minérios, Pecuária extensiva, projetos que contam com forte apoio dos poderes públicos em todas as suas esferas. Estes empreendimentos são responsáveis diretos pelo empobrecimento de nossas regiões e pela intensa degradação ambiental, violência no campo e na cidade e migração sazonal que transforma os trabalhadores camponeses em migrantes que se tornam escravos na monocultura da cana-de-açúcar: campeões de podão na modernidade da produtividade, através dos “dez mil golpes de facão” por dia, pelas 15 toneladas de cana cortada, pelas doenças e mortes causadas por este processo devastador, e pela dupla jornada de trabalho das mulheres em conseqüência desta migração.

Romeiras e Romeiros da terra e das águas, da utopia de um novo mundo, caminhemos construindo um mundo possível e necessário, para uma terra sem males, com uma economia solidária, para casa da vida plena para todos e tudo. Continuemos com a mão na massa, os pés no chão, como povo de Deus que reza, mas coloca a oração no chão da terra e da vida com nossos sonhos e esperança, que a terra e a água, dom de Deus, sejam por todos partilhados.
Que possamos ao longo do caminho apreciar a beleza da natureza e da cultura popular, acolher o gorjeio dos pássaros e os clamores dos pobres, sentir o perfume das flores e de nosso chão. Que nossos ouvidos ouçam o barulho das águas, que nossos pés sejam firmes e fortalecidos pela certeza do caminhar. Enfim, que a glória de Deus brilhe em nós e através de nós!
Com a bênção de N. Sra. da Lapa e de São Francisco (patrono da Romaria), agradecemos de coração a hospitalidade do povo de Itinga e das comunidades cristãs do município, na esperança de nos reencontrarmos em 2010 na 14a Romaria das águas e da Terra de Minas Gerais, na Diocese de Januária, na cidade de Januária, no Norte de Minas. Amém, aleluia, Auêre, Uai!

Itinga, 02 de agosto de 2009.

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

A ameaça das máfias


Alberto Barlocci

A crise financeira está deixando transparecer o poder financeiro das máfias. Embora se diferenciem segundo sua origem e modalidades, por máfias devemos entender tanto as clássicas organizações italianas – a camorra napolitana, n’drangheta calabresa e a máfia siciliana –, como a máfia russa, a albanesa, a turca, etc.

Diante da escassez de dinheiro, estas organizações estariam atuando como bancos informais. Na Europa há indícios de um aumento de empréstimos de agiotas de procedência mafiosa. Misha Glenny, autor de McMafia, o livro que reconstrói o sistema de negócios desses grupos afirma que há dez milhões de pessoas no Reino Unido que não podem ter acesso a empréstimos legais e se dirigem ao mercado paralelo, que é difícil de controlar.

As máfias necessitam invadir o mercado com seu dinheiro reciclado. Isso lhes permite penetrar nas atividades legais com as quais aumentam o poder acumulado através da atividade ilícita, principalmente com o narcotráfico, fonte de imensas quantidades de dinheiro. Muitas vezes, quando este fluxo ingressa no sistema legal, já foi reciclado. O jornalista italiano Roberto Saviano –que depois do sucesso de Gomorra, seu livro sobre a camorra, vive escondido e sob escolta policial–, explica que o dinheiro é lavado no Leste europeu, para depois chegar limpo ao mercado imobiliário ou ao mercado bancário ocidental. Na Escócia a camorra controla parte da atividade turística; os grandes shoppings da Grécia, Andaluzia, Kosovo e do sul da Itália foram realizados por grupos mafiosos, que logo se encarregam dos estacionamentos, transporte de mercadoria e da segurança.

SOMAS ASTRONÔMICAS

O mercado da cocaína fornece uma liquidez que permite reduzir os custos dos investimentos e da aquisição de imóveis. Em 2006 a camorra tentou comprar o clube de futebol Lazio, time romano de primeira divisão. Não é o único caso de mafiosos que atuam no esporte. Por outro lado, na Itália os capitais mafiosos controlam parte da indústria da construção e do tratamento de resíduos industriais. Este último negócio permitiu que faturassem 44 bilhões de euros em quatro anos. Dados oficiais asseguram que as três máfias italianas faturam anualmente entre 85 a 90 bilhões de euros: mais de 120 bilhões de dólares, quase o equivalente ao PIB da Bulgária, quatro vezes o do Uruguai e 7% do PIB italiano, país que integra o G8.

O problema é a ramificação do sistema mafioso, que adquire mão-de-obra e apoio popular nos bolsões de desemprego e pobreza do sul da Itália. A máfia dá trabalho, paga salários, e as famílias daqueles que trabalham para a máfia e estão presos recebem um subsídio. É um Estado dentro do Estado que compete com o poder político, exrecendo uma soberania limitada.

PETRÓLEO BRANCO

O mercado da droga, a principal fonte de renda para as máfias, está se expandindo. O Plano Colômbia, apesar do financiamento da Casa Branca, não evitou o aumento da produção da cocaína, o "petróleo branco". Isso causa um impacto geopolítico. Na África Ocidental o assassinato do presidente João Bernardo Vieira, da Guiné Bissau, esteve vinculado ao negócio da cocaína. A máfia nigeriana controla o mercado na Libéria, Serra Leoa, Guiné Bissau, Togo e Benin. A camorra teve a "gentileza" de ceder aos nigerianos uma cidade próxima de Nápoles, onde atuam com impunidade.

Se a principal porta de entrada da cocaína na Europa é a Espanha, a zona mais crítica é o Afeganistão. Ali, apesar da presença da OTAN, a produção de heroína não foi reduzida, aumentou. Os talibãs, depois de sua derrota militar, impuseram um imposto de 10% ao mercado do ópio, financiando assim sua luta contra as forças da OTAN. "Estamos diante de um fracasso da política ocidental em níveis impressionantes, numa área estrategicamente crucial", conclui Saviano; e nisto coincide com a opinião de Ahmed Rashid, jornalista paquistanês convencido de que foi um erro invadir o Iraque, em vez de estabilizar Afeganistão[i]. "A emergência do terrorismo –diz Saviano– nos distraiu do narcotráfico, quando na realidade as duas atividades se cruzam com freqüência". As máfias turcas compram a cocaína na Espanha ou na Itália e pagam-na com armas. Os atentados terroristas de 2004 que sacudiram Madri, na realidade, foram financiados com a venda de haxixe na França e Itália. Os terroristas compreenderam que a polícia espanhola era muito severa com o mercado interno, porém mais tolerante com o mercado em trânsito.

NORMAS RIGOROSAS

Para os dois autores o problema é complexo e "é bem mais complicado lutar contra a cocaína que contra a heroína. Com a primeira você trabalha, atua, conduz… é o doping da produtividade" explica Saviano. Ambos concordam que a chave é, por um lado, discutir o problema. Não é fácil, basta ver o que aconteceu com Saviano, literalmente proscrito pela camorra. A outra chave é a legislação: a existência da União Européia permitiu limitar a expansão dos negócios controlados pelas máfias, principalmente sua ramificação comercial, produzindo regras globais que impeçam os paraísos fiscais, que na realidade são paraísos fiscais para negócios ilegais.

Não convém baixar a guarda na luta contra este câncer que corrói o tecido social, econômico e político.

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Democracia cultural


Frei Betto

O homem e a mulher são os únicos seres vivos que se contrapõem à natureza. Os demais, das abelhas arquitetas aos macacos africanos que ordenam seus recursos de sobrevivência, são todos determinados pela natureza. Esse distanciamento humano frente ao mundo natural faz a realidade revestir-se de simbolismo e produz a emergência transcendental do imaginário.

Do interesse pelo fogo produzido pelo relâmpago nasce o conhecimento que desperta a consciência. Voltada sobre si mesma, a consciência humana sabe que sabe, enquanto os animais sabem, mas ignoram a reflexão. Através do símbolo e do significado, o ser humano se relaciona com a natureza, consigo mesmo, com os semelhantes e com Deus.

Nasce a cultura, o toque humano que faz do natural, arte. A vida social ganha contornos definidos e explicações categóricas. Do domínio das forças arbitrárias da natureza chega-se às armas que permitem a imposição de um grupo cultural sobre o outro. Porém, cultura é identidade e, portanto, resistência. Mesmo assim, a absolutização de sistemas ideológicos oferece o paraíso, induzindo o dominado a sentir-se excluído por não pensar pela cabeça alheia.

No Brasil colônia, os métodos de catequese cristã introduziam entre os indígenas o vírus da desagregação e, hoje, os donos dos garimpos, das madeireiras e o governo perguntam perplexos por que os povos indígenas necessitam de tanta terra se nada produzem. Os pentecostais atacam os umbandistas e certos setores da Igreja cristã olham com solene desprezo o candomblé, como se seus fiéis ainda estivessem naquele estágio primitivo da consciência religiosa que não lhes permite desfrutar a beleza do canto gregoriano ou a ortodoxia teológica do papa Ratzinger.

A queda dos governos dos países socialistas do Leste europeu assinala, não o fim do socialismo, como propaga a mídia capitalista, mas sim da absolutização de sistemas ideológicos. Desabam, com a herança estalinista, todas as estratégias de hegemonização da cultura, e a própria idéia de "evolução cultural". Não há culturas superiores, há culturas distintas. Agonizam as versões totalizadoras em todos os terrenos da produção de sentido - político, econômico e religioso.

Quem pretender ignorar os sinais dos tempos terá de apelar ao autoritarismo para infundir temor. Sabemos agora que mesmo na América Latina não há uma cultura única, mas uma multiplicidade de culturas - indígena, negra, branca, sincrética - que se explicam por seus próprios fatores internos. Essa polissemia de sistemas de sentido é uma riqueza, embora ameace o poder daqueles que imaginavam restaurar a uniformização medieval.

Há mais de 500 anos da chegada de Colombo às Américas - uma invasão genocida que alguns chamam de "encontro de culturas" - convém relembrar esses conceitos antropológicos. E agora a democracia impregna também a cultura. Cada homem e mulher, grupo étnico ou racial, descobre que pode ser produtor do próprio sentido de sua vida. O difícil é respeitar isso como valor, sobretudo nós, cristãos, que ainda não sabemos distinguir Jesus Cristo do arcabouço judaico e greco-romano que o reveste e tanto favorece o eurocentrismo eclesiástico.

Felizmente, o próprio Jesus nos ensina a diferença entre imposição e revelação. Impõe-se pervertendo a natureza do poder (Mateus 23, 1-12). Mas revelação significa "tirar o véu": ser capaz de captar os fragmentos culturais de cada povo e reconhecer as primícias evangélicas aí contidas, como afirmou o Concílio Vaticano II.

Aliás, Deus não fala latim. Prefere a linguagem do amor e da justiça. E essa dialeto toda cultura incorpora e entende.

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

12º Intereclesial das CEBs



Roberto Malvezzi (Gogó)


As caravanas das Comunidades Eclesiais de Base – CEBs - já se preparam para ir até Porto Velho, Rondônia, para o XII Intereclesial de CEBs. Jornada longa. Os ônibus da Bahia devem levar quatro dias de ida, sete dias em Rondônia e mais quatro dias de retorno. Nossas comunidades vão assumir definitivamente a dimensão ecológica da fé, num mundo em convulsão, de tragédias dantescas, globais, como as enchentes do Nordeste, como as cem mil mortes em um único dilúvio em Mianmar. Estamos diante de um desafio planetário que se faz um desafio de fé.
O local escolhido para assumir e aprofundar essa causa é a Amazônia, símbolo maior da devastação que o ser humano provoca na natureza. Nos crimes contra a natureza nada se cria, na se perde, tudo se vinga. James Lovelock costuma dizer que esse não será o fim da humanidade e nem o fim da vida no planeta, mas será um planeta pobre, tórrido, eliminando cerca de 70% da vida, inclusive das vidas humanas. Depois de se reajustar, o planeta se reorganiza de outra forma.
Na humanidade resta pouca sensibilidade real contra a fome, a sede e as injustiças. Existe muito daquela boa vontade da qual o inferno está forrado. Só o caos ecológico pode ascender alguma reação humana. A elite mundial chegou ao paraíso e não está disposta a ceder nenhuma unha de seu bem estar ao restante da humanidade.
Nossas pequenas comunidades também já não têm o “apelo” que tinham antes, quando a opção pelos pobres era moda. Hoje o modismo eclesial é a fama, o sucesso, a movimentação milionária de produtos religiosos que fazem a fortuna de pessoas e instituições. Enfim, a tal teologia da prosperidade, tão ao gosto de setores pentecostais, tanto evangélicos como católicos. Mas, o Evangelho não está sujeito a modismos. A fidelidade aos pobres, à justiça, à partilha, à solidariedade, à fraternidade, independe das circunstâncias.
Há um novo ar, uma nova clorofila, sendo respirados pelas CEBs. Eles vêm da ecologia. Muitos pastores católicos já entenderam e apóiam.
A sede de justiça é uma bem-aventurança particular das CEBs. Sem elas essa prática quase que desaparece da Igreja Católica.
De coração, desejo e peço a Deus que nossas comunidades sejam revigoradas na fé, na oração, na luta, no compromisso com a justiça e a ecologia. Serão nossa contribuição de cristãos conscientes, cidadãos, inseridos, numa crise civilizacional que já se faz presente, se aprofunda e sugere cenários terríveis.
Que Deus esteja com nossas comunidades em Rondônia. E estará.

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Réquiem para a reforma agrária



Por Plínio de Arruda Sampaio

Do Jornal Correio da Cidadania, 07/07/2009


Se o presidente Lula não vetar a lei que dá nova disciplina jurídica aos índices de produtividade dos imóveis rurais, quem ainda falar em reforma agrária estará dando a si próprio um atestado de sandice.
Índices de produtividade são medidas da eficiência no uso das terras de uma fazenda. Foram introduzidos na legislação agrária por força da Constituição de 1988 e são elementos decisivos para classificar como produtivo ou improdutivo um imóvel rural objeto de desapropriação - somente os desta categoria podem ser desapropriados para fins de reforma agrária.
A lei que disciplinou o preceito constitucional atribui aos ministros do Desenvolvimento Agrário e da Agricultura a competência para assinar uma Instrução ministerial conjunta fixando periodicamente esses índices.
A Instrução atualmente em vigência está defasada em mais de três décadas! No Brasil, como se sabe, há leis que se acatam, mas não se cumprem.
No governo FHC, o ministro Jungmann encomendou a duas instituições especializadas estudos técnicos para atualizar os índices, sem mencionar a cada uma delas o que a outra estava fazendo. O resultado foi a coincidência quase absoluta dos resultados. Nem assim a Instrução atualizadora foi assinada.
Lula herdou essa situação e teve que avocar a decisão sobre publicá-la ou não ao seu despacho porque o ministro da Agricultura negou-se a assinar o texto que lhe enviou o ministro do Desenvolvimento Agrário. Para não desagradar a bancada ruralista manteve a Instrução guardada em sua gaveta, apesar dos apelos do MST.
Sem novos índices, não há mais fazendas improdutivas nas regiões efetivamente ocupadas pela exploração agropecuária e florestal.
Mas o agronegócio, que é previdente, não quer ficar na mão de governo algum e apresentou o projeto de lei aprovado nesta semana em virtude de um "cochilo" da bancada governista.
Se o Lula sancioná-lo, a reforma agrária, que já está agonizante, morrerá de vez, pois o projeto aprovado exige que a atualização dos Índices seja feita periodicamente por uma lei do Congresso – garantia de que jamais uma atualização verdadeira será aprovada.
Porém, seguindo a mesma tática da Medida Provisória da "legalização da grilagem", o Projeto contém um "bode".
Para descobri-lo, é preciso recorrer a um exemplo: a classificação de uma fazenda como produtiva (não suscetível de desapropriação) é feita por meio da aplicação de dois índices: um mede o uso da terra; outro, a eficiência na exploração da terra utilizada.
Assim: pela lei atual, uma fazenda que tem 10.000 hectares e só cultiva 1.000 hectares, mas apresenta um índice de produtividade (quantidade de produção por hectare) igual ou superior à média do país na área cultivada, poderá ser desapropriada por não usar suas terras de acordo com a média do país, apesar de ser bastante eficiente nas terras que cultiva.
O projeto aprovado abole o primeiro índice, de modo que um imóvel com essas características escapa da desapropriação.
Não é difícil prever o que vai acontecer: Lula vetará esse artigo. Em outras palavras: retirará o "bode" do projeto.
Os lulistas, aliviados, passarão a defender a lei, porque afinal ela não contém mais o que seria perigoso para a reforma agrária.
A bancada ruralista, para não dar muito na vista, ensaiará um simulacro de protesto. Mas ela está radiante porque seu principal objetivo – transferir a competência da atualização dos índices para uma instância absolutamente segura como o Congresso – foi plenamente atingido.
O povo que tem voz na política não dirá nada, pois uma parte é conivente com o golpe e outra parte, embora indignada, encontra-se dividida, confusa e, por isso, sem condições de agir.
O povo que não tem voz na política... esse não dirá nada, porque uma parte dele está inebriada pela ilusão de consumismo que o Bolsa Família propicia e a outra parte encontra-se em estado de absoluta prostração.
Quisque tandem!

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Governos inconscientes e irresponsáveis



Leonardo Boff[1]

Quem teve o privilégio de acompanhar a cúpula dos povos (1992) na ONU nos dias 24-26 de junho para encontrar saídas includentes para a crise econômico-financeira, vivenciou dupla perplexidade. A primeira, o fato de se ter chegado a um surpreendente consenso acerca de medidas econômicas e financeiras a serem implementadas a curto e a médio prazo, em função do desenvolvimento/crescimento. A segunda, verificar que tudo se concentrou apenas no aspecto econômico-financeiro sem qualquer referência aos limites da biosfera e à devastação da natureza que o tipo de desenvolvimento vigente implica. Quer dizer, a economia virou um conjunto de teorias e fórmulas que expertos dominam e as aplicam nos países, esquecendo-se de que é parte da sociedade e da política, algo, portanto, ligado à vida das pessoas. Era como se os políticos e expertos, não respirassem, não comessem, não se vestissem e andassem nas nuvens e não no solo. Mas para eles, tais coisas importantes são meras externalidades que não contam.
Ao ouvi-los, pensava eu lá com meus botões: quão inconscientes e irresponsáveis são estes políticos, representantes de seus povos, que não se dão conta de que a verdadeira crise não é esta que discutem, mas a da insustentabilidade da biosfera e a incapacidade de a Mãe Terra de repor os recursos e serviços necessários para a humanidade e para a comunidade. Bem advertiu o ex-secretário da ONU Kofi Annan: esta insustentabilidade não apenas impede a produção e a reprodução senão que põe em risco a sobrevivência da espécie humana.
Todos são reféns da economia-zumbi do desenvolvimento, entendido como puro crescimento econômico (PIB). Ora, exatamente este paradigma do desenvolvimento mentirosamente sustentável do atual modo de acumulação mundial está levando a humanidade e a Terra à ruína. As pessoas são as últimas a contar. Primeiro vêm sempre os mercados, os bancos, o sistema financeiro. Com apenas 1% do que se aplicou para salvar os bancos da falência (alguns trilhões de dólares) poder-se-ia resolver toda a fome do planeta atesta a FAO. E atualmente, a mesma FAO advertiu, existem 40 países com reserva alimentar de apenas três meses. Sem uma articulada cooperação mundial grassará fome e morte de milhões de pessoas.
Discutir a crise econômica-financeira sem incluir as demais crises: o aquecimento global, a alimentária, a energética e a humanitária é mentir aos povos sobre a real situação da humanidade.
Temo que nossos filhos e netos, daqui a alguns anos, olhando para o nosso tempo, tenham motivos de nos amaldiçoar e de nos devotar um soberano desprezo, porque não fizemos o que devíamos fazer. Sabíamos dos riscos e preferimos salvar as moedas e garantir os bônus quando poderíamos salvar o Titanic que estava afundando.
O Brasil neste sentido é uma lástima. Se há um país no mundo que goza das melhores oportunidades ecológicas e geopolíticas para ajudar a formular um outro mundo necessário para toda a humanidade, este seria o Brasil. Ele é a potência das águas, possui a maior biodiversidade do planeta, as maiores florestas tropicais, a possibilidade de uma matriz energética limpa à base da água, do vento, do sol, das marés e da biomassa, mas não acordou ainda. Nos fóruns mundiais vive em permanente sesta política, inconsciente, “deitado eternamente em berço esplêndido”. Não despertou para a suas possibilidades e para a responsabilidade face à preservação da Terra e da vida.
Ao contrário, na contramão da história, estamos construindo usinas à base do carvão. Desmatamos a Amazônia em 1.084 quilômetros quadrados entre agosto de 2008 a maio de 2009. E somos o quinto maior poluidor do mundo. O fator ecológico não é estratégico no atual governo. Somos ignorantes, atrasados, faltos de senso de responsabilidade face ao nosso futuro comum.

[1] Leonardo Boff é teólogo e do corpo de assessores da Presidência da ONU.