quarta-feira, 26 de maio de 2010

O império manda, as colônias obedecem


Frei Betto e João Pedro Stédile*

Adital - Após a Segunda Guerra Mundial, quando as forças aliadas saíram vitoriosas, o governo dos EUA tentou tirar o máximo proveito de sua vitória militar. Articulou a Assembléia das Nações Unidas dirigida por um Conselho de Segurança integrado pelos sete países mais poderosos, com poder de veto sobre as decisões dos demais.

Impôs o dólar como moeda internacional, submeteu a Europa ao Marshall, de subordinação econômica, e instalou mais de 300 bases militares na Europa e na Ásia, cujos governos e mídia jamais levantam a voz contra essa intervenção branca.

O mundo inteiro só não se curvou à Casa Branca porque existia a União Soviética para equilibrar a correlação de forças. Contra ela, os EUA travaram uma guerra sem limites, até derrotá-la política, militar e ideologicamente.

A partir da década de 90, o mundo ficou sob hegemonia total do governo e do capital estadunidenses, que passaram a impor suas decisões a todos os governos e povos, tratados como vassalos coloniais.

Quando tudo parecia calmo no império global, dominado pelo Tio Sam, eis que surgem resistências. Na América Latina, além de Cuba, outros povos elegem governos antiimperialistas. No Oriente Médio, os EUA tiveram que apelar para invasões militares a fim de manter o controle sobre o petróleo, sacrificando milhares de vidas de afegãos, iraquianos, palestinos e paquistaneses.

Nesse contexto surge no Irã um governo decidido a não se submeter aos interesses dos EUA. Dentro de sua política de desenvolvimento nacional, instala usinas nucleares e isso é intolerável para o Império.

A Casa Branca não aceita democracia entre os povos. Que significa todos os países terem direitos iguais. Não aceita a soberania nacional de outros povos. Não admite que cada povo e respectivo governo controlem seus recursos naturais.

Os EUA transferiram tecnologia nuclear para o Paquistão e Israel, que hoje possuem bomba atômica. Mas não toleram o acesso do Irã à tecnologia nuclear, mesmo para fins pacíficos. Por quê? De onde derivam tais poderes imperiais? De alguma convenção internacional? Não, apenas de sua prepotência militar.

Em Israel, há mais de vinte anos, Moshai Vanunu, que trabalhava na usina atômica, preocupado com a insegurança que isso representa para toda a região, denunciou que o governo já tinha a bomba. Resultado: foi sequestrado e condenado à prisão perpetua, comutada para 20 anos, depois de grande pressão internacional. Até hoje vive em prisão domiciliar, proibido de contato com qualquer estrangeiro.

Todos somos contra o armamento militar e bases militares estrangeiras em nossos países. Somos contrários ao uso da energia nuclear, devido aos altos riscos, e ao uso abusivo de tantos recursos econômicos em gastos militares.

O governo do Irã ousa defender sua soberania. O governo usamericano só não invadiu militarmente o Irã porque este tem 60 milhões de habitantes, é uma potência petrolífera e possui um governo nacionalista. As condições são muito diferentes do atoleiro chamado Iraque.

Felizmente, a diplomacia brasileira e de outros governos se envolveu na contenda. Esperamos que sejam respeitados os direitos do Irã, como de qualquer outro país, sem ameaças militares.

Resta-nos torcer para que aumentem as campanhas, em todo mundo, pelo desarmamento militar e nuclear. Oxalá o quanto antes se destinem os recursos de gastos militares para solucionar problemas como a fome, que atinge mais de um bilhão de pessoas.

Os movimentos sociais, ambientalistas, igrejas e entidades internacionais se reuniram recentemente em Cochabamba, numa conferência ecológica mundial, convocada pelo presidente Evo Morales. Decidiu-se preparar um plebiscito mundial, em abril de 2011. As pessoas serão convocadas a refletir e votar se concordam com a existência de bases militares estrangeiras em seus países; com os excessivos gastos militares e que os países do Hemisfério Sul continuem pagando a conta das agressões ao meio ambiente, praticadas pelas indústrias poluidoras do Norte.

A luta será longa, mas nessa semana podemos comemorar uma pequena vitória anti-imperialista.

 
Frei Betto é escritor. João Pedro Stédile integra a direção da Via Campesina.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

A questão da terra e a Igreja Católica no Brasil


Pe. José Oscar Beozzo*

Adital - 1. Para as centenas de povos indígenas que ocupavam a Pindorama, a terra das Palmeiras, seja a terra, sejam as águas vindas da terra por fontes, mares e rios ou caídas do céu por chuvas e orvalho, sejam as matas ou sementes, plantas e tubérculos, sejam os animais e pássaros estavam carregados de um sentido sagrado: escondiam e revelavam o mistério da divindade. A terra era sagrada, fonte de vida e alimentação, lugar de comunhão com as forças da natureza e por último com o próprio criador, pai e mãe de todas as coisas e também dos humanos. Abrigava também os espíritos maus que traziam doenças e a morte. Se não tinham senso de propriedade privada, pela forma familiar e comunitária de vida e trabalho, demarcavam e defendiam e seu território de caça, pesca, coleta ou plantio, como garantia de sobrevivência da tribo.

2. Lavrar e plantar uma cruz para a primeira missa de Frei Henrique de Coimbra, diante dos olhos curiosos e estupefatos dos nativos frente aos machados de ferro que abatiam tão facilmente as árvores e as enxós que desbastavam celeremente os troncos; tomar posse para El-Rei da terra recém descoberta e batizá-la com o nome de Terra da Santa Cruz pareceram os gestos mais naturais do mundo para Cabral e seus homens que haviam partido do Tejo para "dilatar a fé e o império".

3. A rápida mudança de nome de Terra da Santa Cruz para Terra Brasilis ou simplesmente Brasil mostrou que a lógica do império mercantil se sobrepunha à da fé e da missão, como norteadora do projeto colonial. A terra ganhou o nome da madeira cor de brasa, o pau-brasil, inserido agora como corante no circuito dos tecidos finos tingidos de novos tons de vermelho, substituindo no mercado a tradicional púrpura do oriente.

4. A decisão de ocupar politicamente a terra com as capitanias hereditárias e economicamente com lavouras de cana de açúcar instaurou o processo de des-ocupar a terra dos seus habitantes naturais e reintroduzi-los na mesma terra não mais como donos, mas como trabalhadores cativos: CATIVEIRO DA TERRA e CATIVEIRO DAS PESSOAS passaram a andar de mãos dadas acompanhando o CATIVEIRO DA PRODUÇÃO, voltada não mais para a satisfação das necessidades de quem produzia, mas para as exigências do MERCADO INTERNACIONAL.

5. Monopólio da terra, traduzido na institucionalização e legitimação da GRANDE PROPRIEDADE, mesmo como latifúndio improdutivo; produção sob o signo da MONOCULTURA, seja da cana, fumo, algodão, café, cacau ou atualmente soja; trabalho, sob o REGIME DE ESCRAVIDÃO e produção voltada não para o mercado interno e as necessidades do povo, mas para o MERCADO INTERNACIONAL, constituíram os quatro pilares da organização econômica, mas também da formação social brasileira.

6. O Pe. Antônio Vieira, provincial dos jesuítas, responsável pelas missões do Maranhão e Grão Pará, uma vez expulso em 1661, com todos os demais missionários jesuítas, por se oporem à escravidão dos indígenas naquela área, exprimiu de maneira pungente a contradição de um projeto missionário patrocinado pelo projeto colonial. Ao tornarem os indígenas vassalos de Cristo pelo batismo, os faziam vassalos do rei, fazendo-os perder suas terras, a própria pátria, soberania e liberdade.

7. Penitencia-se Vieira dizendo: "Não posso, porém, negar que todos nesta parte, e eu em primeiro lugar somos muito culpados. E por quê? Porque devendo defender os gentios que trazemos a Cristo, como Cristo defendeu os Magos, nós, acomodando-nos à fraqueza do nosso poder, e à força do alheio, cedemos da sua justiça, e faltamos à sua defesa. Como defendeu Cristo os Magos? Defendeu-os de tal maneira que não consentiu que perdessem a pátria, nem a soberania, nem a liberdade: e nós não só consentimos que os pobres gentios que convertemos, percam tudo isto, senão que os persuadimos a que o percam, e o capitulamos com eles, só para ver se se pode contentar a tirania dos cristãos; mas nada basta" (Sermão da Epifania, 06 de janeiro de 1662).

8. Prossegue Vieira: "Cristo não consentiu que os Magos perdessem a pátria, porque reversi sunt in regionem suam (voltaram para a sua região): e nós não só consentimos que percam a sua pátria aqueles gentios, mas somos os que à força de persuasões e promessas (que se lhes não guardam) os arrancamos das suas terras, trazendo as povoações inteiras a viver ou a morrer junto das nossas. Cristo não consentiu que os Magos perdessem a soberania, porque reis vieram, e leis tornaram: e nós não só consentimos que aqueles gentios percam a soberania natural com que nasceram e vivem isentos de toda a sujeição; mas somos os que sujeitando-os ao jugo espiritual da Igreja, os obrigamos, também, ao temporal da coroa, fazendo-os jurar vassalagem. Finalmente, Cristo não consentiu que os Magos perdessem a liberdade, porque os livrou do poder e tirania de Herodes, e nós não só não lhes defendemos a liberdade, mas pactando com eles e por eles, como seus curadores, que sejam meios cativos, obrigando-se a servir alternadamente a metade do ano. Mas nada disto basta para moderar a cobiça e tirania dos nossos caluniadores, porque dizem que são negros, e hão de ser escravos" (ibidem).

9. No Brasil, a abundância de terras, onde as pessoas poderiam livremente plantar e colher para si, aliada à escassez da mão de obra, obrigou o sistema a montar uma dupla operação: subtrair as terras livres aos seus donos ou possíveis pretendentes, monopolizando-as nas mãos de poucos e estabelecer formas de trabalho compulsório e no limite escravo, para que as pessoas não trabalhassem para si, mas para outrem. Para tanto, foi necessário o intenso tráfico negreiro entre as costas da África e o Brasil. Nas franjas do sistema, subsistiam famílias de agregados que podiam de favor, mas não de direito, plantar nas terras de algum potentado.

10. Por isso ao cativeiro da terra está correlacionado ao cativeiro dos trabalhadores e trabalhadoras e o regime de trabalho escravo perdurou por quase quatro séculos sendo o Brasil o último país das Américas e do Caribe a abolir o regime de trabalho escravo. De novo, nas franjas do sistema, estabeleceram-se os quilombos, aglomerados de escravos fugidos em terras livres, com trabalhadores livres e produção livre, sem receberem, porém, apoio ou legitimação por parte da Igreja que condenava sua rebeldia e a perda que infligiam à propriedade de seus senhores, subtraindo-lhe seus corpos e braços.

11. Nas campanhas pela abolição da escravatura, de maneira muito arguta, Joaquim Nabuco argumentava que libertar os escravos, sem libertar a terra, entregando-lhes um pedaço de chão para cultivarem em liberdade, seria prolongar a escravidão no Brasil, como bem podemos constatar pelas inúmeras formas de trabalho escravo que subsistem pelo país, todas elas vinculadas à permanência do monopólio da terra e do latifúndio. Perpetua-se assim a maldição histórica de os lavradores não possuírem normalmente a terra em que trabalham, convertendo-se em eternos "trabalhadores rurais sem terra".

12. A Lei de Terras de 1850, que criou as condições para um mercado capitalista da terra no país é contemporânea da Lei de Terras dos Estados Unidos aprovada no mesmo ano e que resultou na grande corrida para o oeste americano que incorporou ao país milhões de quilômetros quadrados de terras roubados às populações indígenas ou subtraídos ao México por meio de guerra e tratados arrancados à força. A lei brasileira privilegiou o acesso a terra por meio da compra, supondo meios financeiros da parte do pretendente. Dificilmente seria um trabalhador rural sem terra ou um imigrante pobre, sem capital algum e que só podia sobreviver contando com a força do seu braço. A lei norte-americana legitimou a posse da terra, tanto por meio do capital quanto do trabalho. O trabalhador que lavrasse lote de terra por três anos, sem contestação, podia solicitar o título de propriedade sobre o mesmo. Isto abriu caminho para a entrada no país entre 1850 e a primeira guerra mundial de 40 milhões de imigrantes pobres, que sonhavam com a terra própria.

13. Se a Igreja apoiou com entusiasmo a entrega de terras a imigrantes europeus no sul do país, pouco fez, na época, para defender os indígenas da espoliação de suas terras nas quais os colonos iam sendo instalados, ou para denunciar as expedições de bugreiros que, a pretexto de segurança dos colonos, a cada estação seca, partiam à caça dos indígenas, arrasando e queimando impunemente suas aldeias, aprisionando mulheres e crianças e eliminando os guerreiros.

14. Lamentava a Igreja, por outro lado, as condições dos trabalhadores sem terra, assalariados nas fazendas de café, mas acomodava-se ao sistema, pois dependia da permissão dos fazendeiros e da cessão de suas capelas, para ter acesso pastoral às famílias dos colonos.

15. Nos conflitos de Canudos na Bahia (1896-1897) ou do Caldeirão do Juazeiro no Ceará (1936), que mesclavam a tradicional busca por terra por parte de camponeses que iam sendo expulsos das fazendas tradicionais, onde moravam de favor, com a busca quase messiânica de um mundo novo mais fraterno e comunitário, com a posse mansa e pacífica da terra onde se trabalhava e dos frutos que eram colhidos, sem se pagar renda pela terra cultivada, os conflitos e incompreensões com a Igreja hierárquica abriram caminho para a repressão armada do movimento. Em grande parte, tratava-se de camponeses tangidos para fora das fazendas que se recusavam a virar simplesmente mão de obra assalariada no plantio e colheita do algodão ou no corte da cana, sem um pedaço de chão para plantarem sua roça de subsistência e criarem uma galinha, cabra ou porco que garantissem melhor o sustento dos seus.

16. Na guerra do Contestado (1912-1916), na fronteira entre Paraná e Santa Catarina estava subjacente o conflito de camponeses expulsos de suas terras pelas empresas que construíram a estrada de ferro de São Paulo para o sul do país e cujas terras eram dadas em concessão para projetos de colonização capitalista. Comparavam sua sorte à dos imigrantes que recebiam terras do mesmo governo que os expulsava das terras que cultivavam tradicionalmente para entregá-las sem mais ao consórcio estrangeiro da estrada de ferro. Os camponeses foram tratados do ponto de vista religioso como "fanáticos" e de novo, a Igreja prestou assistência espiritual às tropas que dizimaram os arraiais dos camponeses do monge José Maria.

17. O socorro aos indígenas que iam sendo massacrados na expansão das estradas de ferro no interior de São Paulo ou nas frentes de expansão da borracha no vale amazônico partiu muito mais da mobilização da sociedade civil, da imprensa e da sensibilidade do Marechal Cândido da Silva Rondon, resultando no Serviço de Proteção aos Índios - SPI (1910). O SPI criou ao longo da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, a Brasil-Bolívia, então em construção e em conflito com os índios Kaingang e Coroados, os primeiros postos do SPI, com alguma forma de proteção por parte do Estado às populações indígenas e às suas terras. Infelizmente, um histórico posterior de corrupção e alianças com os que cobiçavam as terras indígenas levou à extinção do órgão e sua substituição pela FUNAI, sem que seus vícios fossem sanados.

18. Os primeiros movimentos pela reforma agrária à raiz da revolução de 1930 não encontraram grande eco nos arraiais eclesiásticos, mais preocupados em quebrar o caráter laicista da república velha, assegurando o ensino religioso facultativo nas escolas públicas, a assistência religiosa às forças armadas, aos estabelecimentos penais e hospitais, o apoio à família contra o divórcio, a inserção do nome de Deus na constituição, ao lado da reivindicação de legislação trabalhista, liberdade sindical, defesa da propriedade. Nos dez pontos da Liga Eleitoral Católica, apresentados como as reivindicações católicas nas eleições para a Constituinte em 1933, não aparecia, porém, qualquer reclamo por reforma agrária.

19. A primeira manifestação pública da Igreja em relação aos problemas da terra, teve origem na Semana Nacional da Ação Católica realizada em Campanha, MG, em 1950 e que resultou na Carta Pastoral de Dom Inocêncio Engelke OFM, em que se expressa claro apoio à reforma agrária, que pelas próprias exigências do movimento social se faria "com nós, sem nós ou contra nós".(1).

20. O passo decisivo na formação de um consenso interno na Igreja, veio por conta da Encíclica Mater et Magistra de João XXIII de maio de 1961. Com a MM a "questão social" que havia sido até então lida desde a Rerum Novarum de Leão XIII (1891) sob o ângulo da questão operária, estende-se também aos problemas da terra e dos trabalhadores rurais.

21. A CNBB foi parceira nas discussões que resultaram na legislação que levou à aprovação da lei do sindicalismo rural, em 1962. Grande parte das dioceses de norte a sul do país se mobilizaram para lograr a formação dos primeiros sindicatos de trabalhadores rurais, em parte por receio da expansão no nordeste das Ligas Camponesas de Francisco Julião.

22. No Brasil, provocou intenso debate e levou a pronunciamento da CNBB em favor da Reforma Agrária, com pronta reação contrária do grupo da TFP e dos bispos a ela ligados, com polêmica pública em torno do livro "Reforma Agrária, questão de consciência".

23. Em 1963, novo pronunciamento da CNBB emprestou apoio público às Reformas de Base do Governo João Goulart, entre as quais se encontrava a Reforma Agrária, a ser implantada em terras a serem desapropriadas, dez quilômetros de cada lado, ao longo das rodovias abertas pelo governo federal ou em torno a outras obras públicas, como açudes e barragens. Um dos pontos nevrálgicos da reforma consistia no pagamento das desapropriações em títulos da dívida agrária e não em dinheiro, o que inviabilizaria a reforma. Este projeto acabou precipitando a queda do Governo Goulart, mostrando o secular poder social, político e econômico dos proprietários de terra e a resistência à mudança mais profunda da formação social brasileira apoiada na grande propriedade da terra e no agronegócio exportador.

24. O Estatuto do Trabalhador Rural (Lei 4214 de 02-03-1963), aprovado durante o Governo de João Goulart regulou as relações de trabalho no campo que até então haviam estado à margem da legislação trabalhista. Foi seguido pelo Estatuto da Terra (Lei 4504 de 30 de novembro de 1964), decretado pelo primeiro governo militar de Castelo Branco (1964-1967). Ambas as leis receberam acolhida favorável por parte da Igreja do Brasil, mas os crescentes conflitos no campo e em torno às terras indígenas, com repressão às lideranças camponesas e indígenas levaram à criação pela CNBB do CIMI (1972) e logo depois da CPT (1975).

25. Os trabalhos da CPT ajudaram a amadurecer a posição da Igreja do Brasil, levando-a à elaboração do documento "A Igreja e Problemas da Terra" aprovado pela 18ª Assembléia da CNBB, em Itaici, a 14 de fevereiro de 1980. Destaca-se o documento por sua reflexão inovadora que distingue "terra de trabalho" e "terra de negócio", vinculando-se pela primeira vez a legitimidade da posse da terra mais ao trabalho do que ao capital. Reconhece o mesmo documento a importância de outras formas de se relacionar com a terra como a das populações indígenas, em sua forma comunitária ou a de posseiros que não reivindicavam a propriedade, mas o direito ao seu uso, não para negócio, mas sim para subsistência.

NOTA:
1) Sempre correu voz de que o rascunho dessa Carta Pastoral de Dom Inocêncio fora preparado pelo Pe. Helder Pessoa Camara, presente na Semana Social de 1950, na qualidade de Assistente Nacional da Ação Católica Brasileira. Em 17 de maio de 2010, Frei Gilberto Gorgulho OP, na época com doze anos de idade e cursando o Seminário Menor de Campanha, MG, deu ao autor versão diferente, calcada em testemunho pessoal. A Carta assinada pelo Bispo diocesano, Dom Inocêncio foi preparada por um de seus professores do Seminário, Pe. Antônio de Oliveira Godinho (1920-1992), posteriormente eleito deputado estadual pela UDN, em São Paulo, SP (1959-1963) e federal, por dois mandatos seguidos (1963-1967; 1967-1971). Cassado pelos militares em 1969, tornou-se, nos seus últimos anos de vida, diretor do Museu de Arte Sacra de São Paulo, SP.
 
São Paulo, 12 de maio de 2010.
 
 
* Coordenador geral do Cesep (Centro Ecumênico de Serviços à Evangelização e Educação Popular). Vigário da Paróquia São Benedito em Lins. Membro e ex-presidente do Cehila (Comissão de Estudos da História da Igreja no Brasil e na América Latina).

sábado, 22 de maio de 2010

Campos de extermínio de miseráveis


Selvino Heck

Adital - A notícia da semana: seis rapazes com idades entre 25 e 35 anos, cinco deles moradores de rua, foram assassinados a tiros, de noite, debaixo de um viaduto no bairro de Jaçanã, zona norte de São Paulo. Os disparos foram feitos a uma distância inferior a cinco metros.

Os assassinatos estão crescendo na zona norte da capital paulista desde 2008. Em 2009 a média mensal aumentou 2,53% na região em comparação com o ano anterior. No primeiro trimestre deste ano foram registrados 60 (sim, 60) homicídios na região, o que fez a média mensal de assassinatos crescer assustadores 18,2% em relação a 2009. (E não estamos em guerra civil.).

Segundo o padre Júlio Lancelotti, da Pastoral de Rua da Arquidiocese de São Paulo, a cidade criou campos de extermínio de miseráveis. "O que aconteceu foi uma execução. Na delegacia, vendo o material recolhido, as fotos, tudo indica que alguns foram mortos dormindo. Eles estavam completamente indefesos. Como em 2004 (quando houve a chamada chacina da Sé, com a execução de sete pessoas), foi por vingança ou ódio."

O que explica tanta sede de vingança e tanto ódio? Tanta intolerância?

Uma das razões sem dúvida é a impunidade. No caso da chacina da Sé, em 2004, nenhum dos policiais militares acusados pelo crime foi julgado até hoje. Mata-se com a certeza de que nada vai acontecer. Se for necessário, como aconteceu neste caso, a única testemunha de uma das mortes também foi assassinada com três tiros, um mês após o massacre. No processo consta que morreu porque teria roubado o celular de um policial.

Segundo especialistas, a abordagem e as alternativas oferecidas à população que vive nas ruas de São Paulo precisam ser urgentemente revistas. Rosana Baesso Brunetti, Coordenadora da Associação Minha Rua, Minha Casa, diz: "Essas pessoas são acordadas com jatos d’água pela Prefeitura de São Paulo, levam bombas no Glicério. Soma-se a isso a falta de infra-estrutura na saúde e na moradia. Essa chacina é o reflexo disso tudo".

Num censo realizado em 2000, chegou-se a 8 mil moradores em situação de rua em São Paulo, capital. O censo foi refeito em 2010, mas os detalhes não foram divulgados. Entidades estimam que a população de rua já passe dos 15 mil. Cabe a pergunta. O que explica e justifica um aumento tão grande de moradores em situação de rua, quando as manchetes dos grandes jornais estamparam nas últimas semanas: "Construtoras já temem apagão de mão de obra; pacote de incentivos para reter profissionais; mulheres começam a ganhar espaço nos canteiros; contratações na indústria aceleram em março - aumento de 2,4% em relação ao mesmo mês de 2009 - foi a maior expansão mensal desde agosto de 2008 -; folha de pagamento cresceu 5,6% no período.

Ou seja, as ocupações e vagas para trabalhar estão aumentando, assim como a renda e o salário. É verdade que a população em situação de rua muitas vezes, por variadas razões, ou não sabe trabalhar, ou não tem qualificação ou perdeu seus referenciais familiares e sociais e encontra extrema dificuldade para se integrar na ‘vida em sociedade’ como a conhecemos. Mesmo assim, um aumento de mais de 100% no número dos que estão em situação de rua na cidade mais rica e cosmopolita do país deixa no ar inúmeras perguntas sem resposta.

Para Alderon Costa, que colabora com projetos da Associação Rede Rua e edita o jornal o Trecheiro, o primeiro passo é criar um programa de prevenção capaz de evitar que as pessoas resolvam viver nas ruas. "A ação deve envolver algumas secretaria-chave, como saúde, habitação e trabalho. O poder público precisa criar empregos condizentes com o grau de instrução da população de rua". Depois, é preciso construir e oferecer políticas de acolhimento e qualificação profissional.

Mas com certeza tudo passa, em primeiro lugar, pelo reconhecimento de que qualquer pessoa é um ser humano e um sujeito de direitos, morador em situação de rua ou não. O apelo à violência jamais é solução, muito menos o assassinato, como parece tornar-se regra em São Paulo.

O Brasil está em tempos de dar vez e voz aos historicamente humilhados e ofendidos. Infelizmente, ainda permanecem alguns bolsões onde a impunidade, o desrespeito aos direitos básicos, a intolerância, sob o olhar beneplácito das autoridades locais, seguem hegemônicos e vitoriosos. A sociedade, os homens e mulheres de bem precisam reagir, protestar e exigir o fim dos campos de extermínio de miseráveis.

 
Assessor Especial do Presidente da República do Brasil. Da Coordenação Nacional do Movimento Fé e Política.

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Duas cosmologias em conflito


Leonardo Boff

Adital - O prêmio Nobel em economia Joseph Stiglitz disse recentemente: "O legado da crise econômico-financeiro será um grande debate de idéias sobre o futuro da Terra". Concordo plenamente com ele. Vejo que o grande debate será em torno das duas cosmologias presentes e em conflito no cenário da história.

Por cosmologia entendemos a visão do mundo -cosmovisão- que subjaz às idéias, às práticas, aos hábitos e aos sonhos de uma sociedade. Cada cultura possui sua respectiva cosmologia. Por ela se procura explicar a origem, a evolução e o propósito do universo e definir o lugar do ser humano dentro dele.

A nossa atual é a cosmologia da conquista, da dominação e da exploração do mundo em vista do progresso e do crescimento ilimitado. Caracteriza-se por ser mecanicista, determinística, atomística e reducionista. Por força desta cosmovisão, criaram-se inegáveis benefícios para a vida humana, mas também contradições perversas como o fato de que 20% da população mundial controlar e consumir 80% de todos os recursos naturais, gerando um fosso entre ricos e pobres como jamais havido na história. Metade das grandes florestas foram destruídas, 65% das terras agricultáveis, perdidas, cerca de 5 mil espécies de seres vivos anualmente desaparecidas e mais mil agentes químicos sintéticos, a maioria tóxicos, lançados no solo, no ar e nas águas. Construíram-se armas de destruição em massa, capazes de eliminar toda vida humana. O efeito final é o desequilíbrio do sistema-Terra que se expressa pelo aquecimento global. Com os gases já acumulados, até 2035 fatalmente se chegará a 2 graus Celsius, e se nada for feito, segundo certas previsões, serão no final do século 4 ou 5 graus, o que tornará a vida, assim como a conhecemos hoje, praticamente impossível.

A predominância dos interesses econômicos especialmente especulativos, capazes de reduzirem países à mais brutal miséria e o consumismo trivializaram nossa percepção do risco sob o qual vivemos e conspiram contra qualquer mudança de rumo.

Em contraposição, está comparecendo cada vez mais forte, uma cosmologia alternativa e potencialmente salvadora. Ela já tem mais de um século de elaboração e ganhou sua melhor expressão na Carta da Terra. Deriva-se das ciências do universo, da Terra e da vida. Situa nossa realidade dentro da cosmogênese, aquele imenso processo de evolução que se iniciou a partir do big-bang, há cerca de 13,7 bilhões de anos. O universo está continuamente se expandindo, se auto-organizando e se autocriando. Seu estado natural é a evolução e não a estabilidade, a transformação e a adaptabilidade e não a imutabilidade e a permanência. Nele tudo é relação em redes e nada existe fora desta relação. Por isso todos os seres são interdependentes e colaboram entre si para coevoluirem e garantirem o equilíbrio de todos os fatores. Por detrás de todos os seres atua a Energia de fundo que deu origem e anima o universo e faz surgir emergências novas. A mais espetacular delas é a Terra viva e nós humanos como a porção consciente e inteligente dela e com a missão de cuidá-la.

Vivemos tempos de urgência. O conjunto das crises atuais está criando uma espiral de necessidades de mudanças que, não sendo implementadas, nos conduzirão fatalmente ao caos coletivo e que assumidas, nos poderão elevar a um patamar mais alto de civilização. É neste momento que a nova cosmologia se revela inspiradora. Ao invés de dominar a natureza, nos coloca no seio dela em profunda sintonia e sinergia. Ao invés de uma globalização niveladora das diferenças, nos sugere o biorregionalismo que valoriza as diferenças. Este modelo procura construir sociedades autossustentáveis dentro das potencialidades e dos limites das biorregiões, baseadas na ecologia, na cultura local e na participação das populações, respeitando a natureza e buscando o "bem viver" que é a harmonia entre todos e com a mãe Terra.

O que caracteriza esta nova cosmologia é o cuidado no lugar da dominação, o reconhecimento do valor intrínseco de cada ser e não sua mera utilização humana, o respeito por toda a vida e os direitos e a dignidade da natureza e não sua exploração.

A força desta cosmologia reside no fato de estar mais de acordo com as reais necessidades humanas e com a lógica do próprio universo. Se optarmos por ela, criar-se-á a oportunidade de uma civilização planetária na qual o cuidado, a cooperação, o amor, o respeito, a alegria e espiritualidade ganharão centralidade. Será a grande virada salvadora que urgentemente precisamos.

 
 Teólogo, filósofo e escritor.
[Leonardo Boff, junto com Mark Hathaway, escreveu o livro The Tao of Liberation. Exploring the Ecology of Transformation, N.Y. 2009].

terça-feira, 18 de maio de 2010

Olha quem me olha


Frei Betto

Adital - Imagine uma prisão redonda como o estádio do Maracanã. Há vários andares de celas. Nenhuma possui porta, de modo que um único carcereiro, situado na guarita no centro da construção circular, controla sozinho o movimento de centenas de prisioneiros.

Este o modelo panótico de Bentham, descrito por Michel Foucault em Vigiar e Punir. Muitas penitenciárias o adotaram. Tive oportunidade de visitar uma delas, na Ilha da Juventude, em Cuba, construída antes de Revolução e, hoje, desativada.

Vivemos agora numa sociedade panótica. Em qualquer lugar que nos encontramos, um olho nos vê. Somos vistos; quase nunca vemos quem nos vê. Não me refiro apenas às câmeras discretas ou ocultas em ruas e prédios, elevadores e lojas. O mais poderoso olho é a TV, exatamente esse aparelho que julgamos decidir quando e o que veremos.

Ligamos a TV motivados por seu olho invisível; ele suscita em nós essa atitude. Antes de a emissora colocar no ar uma peça publicitária ou um programa, vários testes são realizados, de modo a assegurar ao anunciante ou patrocinador o êxito de audiência. Conhece-se o olhar alheio através de exaustivas pesquisas de opinião.

Isso influi inclusive na (des)qualidade da arte. Agora, o artista não cria a partir de sua subjetividade e imaginação. Antes, procura satisfazer o olhar do público. Ele se olha pelo olho do consumidor de sua obra. Sua fonte de inspiração não reside na ousadia de romper e ultrapassar a linguagem estética que o precede, de expressar os anjos e demônios que lhe povoam a alma, e sim na vontade de agradar o público, criar um mercado de consumo para a sua obra, ainda que à custa de banalizar o próprio talento. O olho promissor do mercado configura seu olhar no ato criativo.

Todo esse processo foi expressivamente tratado em obras como 1984, de George Orwell (1949), e Fahrenheit 451, de Ray Bradbury (1953), filmado em 1966 por François Truffaut. O fenômeno atual mais expressivo é o Big Brother, que promove arrebanhamento dos telespectadores, faz todos se sentirem irmãos, igualizados pela imbecilidade voyeurista de observar o ritual canibalizador que ocorre no interior da casa.

Induzidos por esse sentimento egogregário, perdemos a singularidade. O olho do Grande Irmão nos olha peremptoriamente e nos exige um comportamento de rebanho humano.

Outrora havia uma economia de bens materiais institucionalmente separada de uma economia de bens espirituais. Desses últimos cuidavam padres e pastores, intelectuais e professores, artistas e escritores.

Agora, a indústria de entretenimento se encarrega da produção de bens espirituais, integrando-nos na família televisual. O avatar nos chega pela janela eletrônica. Os novos bens espirituais já não imprimem sentido altruísta às nossas vidas, e sim motivações egóticas de acesso ao mercado de produtos supérfluos, fama, beleza e riqueza. Somos impelidos a consumir, não a refletir. Sempre mais acríticos, nos tornamos ventríloquos manipulados pela ideologia midiática que repudia a solidariedade e exalta a competitividade.

Em A doce vida, filme de Fellini, a última cena mostra o fim da noite boêmia de gente da alta burguesia. Caminham todos, tropegamente, por um bosque em direção ao mar. Ao chegar à praia, a ébria alegria se choca com o imenso olho inerte de um monstro marinho (uma imensa água-viva) que os pescadores arrastam rumo à areia.

O olho olha aquela gente e gera angústia e medo, como se a despisse de sua falsa alegria e a interpelasse no fundo da alma.

É este olho crítico que tanto tememos. E quando ele emerge, os oráculos do sistema neoliberal tratam de tentar cegá-lo e afundá-lo. Ele ameaça porque funciona como espelho no qual o nosso olhar reverbera e olha a mediocridade na qual estamos atolados, movidos como rebanho pelo Grande Imã - o entretenimento televisivo centrado do estímulo ao consumismo.

 
Escritor e assessor de movimentos sociais.
[Autor de "Maricota e o mundo das letras", lançamento infanto-juvenil da editora Mercuryo Jovem. Copyright 2010 - FREI BETTO - É proibida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato - MHPAL - Agência Literária (mhpal@terra.com.br)].

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Democracia e Educação



Adital - No final da década passada, The Economist encheu os olhos da vaidade brasileira, ao anunciar que o país na atual década se tornaria a quinta potência mundial e a terceira em 2050. O peso da fama da revista tornou a ilusão ainda maior. Por que ouso falar de ilusão? Porque em uma década ou em várias décadas não se constrói uma grande potência sem educação.

Não precisamos povoar essa afirmação com multidão de números estatísticos. Esses, não raro, enganam-nos com a aparente neutralidade. A educação de um povo constata-se a olhos vistos. Basta não ser cego. Existem, sem dúvida, alguns grupos de elite. Mas o povo se alimenta da cultura de massa e esta se constrói, sobretudo, por obra dos meios de comunicação social. Aqui sofremos enormemente.

Enquanto a sociedade civil e o Estado não se unirem, em força única, para exigir dos programas de TV maior nível cultural, que irradiem valores consistentes em vez de terrível vulgaridade e banalidade, não há futuro para o Brasil. Haja vista os noticiários que gastam a maior parte do tempo em divulgar violências ou eventos triviais. Um tarado que assassina jovens depois de violentá-las interessa mais que todas as campanhas de solidariedade do mundo. A imagem que brota do ser humano das manchetes televisivas e de jornais favorece mais a desvalorização da vida que o respeito e a esperança no ser humano.

Os clássicos latinos tinham entendido que os relatos históricos cumpriam a função pedagógica de transmitir exemplos a serem imitados. Nesse sentido, Cícero dizia que a história é a "mestra da vida" e os historiadores se detinham em contar a vida de "varões ilustres" e modelares. Em linguagem de hoje, o clássico romano diria que a TV e a grande imprensa existem para transmitir os valores éticos fundamentais para a convivência humana. Que decepção se se detivessem em frequentar a maioria dos programas que ressudam imediatismo, exterioridades, futilidades, intimidades expostas ao grande público!

A democracia se define pelo bem comum, pelo conviver entre as pessoas em vista da realização do "ser humano todo e de todo ser humano". Imperam, no entanto, o individualismo, a lei da selva, a privatização do público e a publicização do privado. A confusão das duas esferas humanas mina a democracia. A cultura pós-moderna individualista tende a privatizar a esfera pública. A corrupção nos meios políticos do país não passa de um apoderar-se de bens públicos. E por outro lado, intimidades sexuais e afetivas são lançadas por revistas e programas por todos os ares.

A educação ensina o respeito ao público e o cuidado e recato com o privado. Quando ela falha, misturam-se os campos com detrimento para ambos. A vida social torna-se a maior vítima dessa falta de educação. Perde-se a noção de viver em comunidade. Inverte-se o processo educativo que consiste na humanização continuada das pessoas para crescente animalização. Adeus democracia! Adeus potência mundial!

Confira também: LIBANIO, J.B. Introdução à vida intelectual. 2ª. Ed. São Paulo: Loyola, 2002.

* Padre jesuíta, escritor e teólogo. Ensina na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), em Belo Horizonte, e é vice-pároco em Vespasiano

quinta-feira, 6 de maio de 2010

CNBB em Brasília


Dom Demétrio Valentini

Adital - Desta vez a assembléia anual da CNBB se realiza em Brasília. O costume era outro. Durante trinta anos, o mosteiro de Itaici acolheu as assembleias. A tal ponto que o bairro de Indaiatuba, que leva este nome, acabou ficando mais conhecido do que a própria cidade, cujo prefeito cada ano comparecia na abertura da assembleia, e pedia aos bispos que, por favor, se lembrassem que Itaici é um bairro de Indaiatuba, no Estado de S. Paulo.

Desta vez a realização da assembleia em Brasília é uma clara deferência da CNBB para honrar a nova capital do país, que acaba de completar 50 anos de sua inauguração. No mesmo sentido, o 16º Congresso Eucarístico Nacional, cuja data se emenda a da assembleia, reforça a homenagem que a Igreja quer prestar a Brasília.

Na verdade, a intenção é mais ampla. Realizando neste ano na capital do país sua assembleia, e aí celebrando o Congresso Eucarístico, a Igreja quer ressaltar os muitos motivos que ela tem para sentir-se vinculada à história do país, com o qual se identifica de tantas maneiras.

Como de costume, a pauta da assembleia é sempre muito carregada. Os assuntos vão sendo recolhidos ao longo do ano. E precisam receber o tratamento de acordo com sua importância. Por isto, engana-se quem pensa que a assembleia vai se limitar ao cardápio proporcionado pelos assuntos na ordem do dia da imprensa. Se necessário, estes também podem receber o tratamento adequado, sobretudo na análise de conjuntura que a assembleia sempre faz. Mas não é a imprensa que pauta a assembleia. Ela não vai sacrificar suas prioridades para tratar, por exemplo, do assunto da pedofilia.

Basta conferir seu tema central, e os temas que a assembleia caracteriza como prioritários, para dar-nos conta da intensidade dos trabalhos.

O tema central tem uma formulação que talvez dificulte a percepção de sua abrangência por parte de quem não está acostumado aos últimos acontecimentos e às recentes orientações pastorais da Igreja: "Discípulos e servidores da Palavra de Deus e a Missão da Igreja no mundo".

Acontece que recentemente a Igreja fez um sínodo sobre a Palavra de Deus. A CNBB se mostra pronta a inserir as reflexões do Sínodo no cotidiano de sua vida. A referência aos "discípulos" e à "missão" é para dizer que a CNBB continua mantendo as duas dimensões fundamentais que a Conferência de Aparecida expressou em forma de "discípulos e missionários de Jesus Cristo". Esta a intenção do tema central.

Como temas "prioritários": as Comunidades Eclesiais de Base, os cem anos do movimento ecumênico, a avaliação das Diretrizes Pastorais, a questão agrária neste início de século 21.

Não podem faltar os diversos temas "estatutários", como o relatório da Presidência e das diversas Comissões Episcopais, através das quais se estrutura o trabalho da CNBB. Será proposta uma declaração sobre a situação política que o país vive neste ano.

Portanto, um punhado de assuntos que exigem trabalho, que é realizado com sessões pela manhã, pela tarde e sempre que necessário à noite também.

Com isto, a CNBB acaba fazendo, sem o dizer explicitamente, um sério questionamento à burocracia estatal, especialmente ao Congresso Nacional. A CNBB se reúne dez dias por ano, e trata de tomar as decisões que se fazem necessárias. Depois, cada bispo retorna para suas dioceses e leva adiante sua missão, afinado com as orientações da assembleia. Não estaria aí uma boa sugestão para o Congresso Nacional? Por que não faz como a CNBB? Bastariam alguns períodos intensos de trabalho por ano em Brasília, onde seriam tomadas as decisões já amadurecidas junto ao povo nas bases. A continuidade dos trabalhos poderia ser garantida, como na CNBB, por uma Comissão Central que mantém expediente contínuo em Brasília, e se reúne mensalmente para municiar a continuidade dos trabalhos nas bases. Ainda mais com os recursos que hoje a informática nos oferece, os deputados e senadores poderiam manter-se cotidianamente informados, com a vantagem de continuarem próximos à realidade do povo, o que sempre é salutar para quem precisa lidar com as esferas da burocracia.

Mesmo que não o diga explicitamente, a CNBB reunida em Brasília está clamando por uma radical e profunda reforma nas estruturas políticas, a começar por mudanças substanciais na organização do Congresso Nacional. Para que ele deixe de desperdiçar tantos recursos a serviço de sua inoperância escandalosa.


* Bispo de Jales (SP) e Presidente da Cáritas Brasileira.

terça-feira, 4 de maio de 2010

Grito da terra, clamor dos povos


Frei Betto

Adital - Os gregos antigos já haviam percebido: Gaia, a Terra, é um organismo vivo. E dela somos frutos, gerados em 13,7 bilhões de anos de evolução. Porém, nos últimos 200 anos, não soubemos cuidar dela e a transformamos em mercadoria, da qual se procura obter o máximo de lucro.

Hoje, a Terra perdeu 30% de sua capacidade de autorregeneração. Somente através de intervenção humana ela poderá ser recuperada. Nada indica, contudo, que os governantes das nações mais ricas estejam conscientes disso. Tanto que sabotaram a Conferência Ecológica de Copenhague, em dezembro de 2009.

A Terra, que deve possuir alguma forma de inteligência, decidiu expressar seu grito de dor através do vulcão da Islândia, exalando a fumaça tóxica que impediu o tráfego aéreo na Europa Ocidental, causando prejuízo de US$ 1,7 bilhão.

Em reação ao fracasso de Copenhague, Evo Morales, presidente da Bolívia, convocou, para os dias 19 a 23 de abril, a Conferência Mundial dos Povos sobre a Mudança Climática e os Direitos da Mãe Terra. Esperavam-se duas mil pessoas. Chegaram 30 mil, provenientes de 129 países! O sistema hoteleiro da cidade entrou em colapso, muitos tiveram de se abrigar em quartéis.

A Bolívia é um caso singular no cenário mundial. Com 9 milhões de habitantes, é o único país plurinacional, pluricultural e pluriespiritual governado por indígenas. Aymaras e quéchuas têm com a natureza uma relação de alteridade e complementaridade. Olham-na como Pachamama, a Mãe Terra, e o Pai Cosmo.

Líderes indígenas e de movimentos sociais, especialistas em meio ambiente e dirigentes políticos, ao expressar o clamor dos povos, concluíram que a vida no Planeta não tem salvação se perseverar essa mentalidade produtivista-consumista que degrada a natureza. Inútil falar em mudança do clima se não houver mudança de sistema. O capitalismo é ontologicamente incompatível com o equilíbrio ecológico.

Todas as conferências no evento enfatizaram a importância do aprender com os povos indígenas, originários, o sumak kawsay, expressão quéchua que significa "vida em plenitude". É preciso criar "outros mundos possíveis" onde se possa viver, não motivado pelo mito do progresso infindável, e sim com plena felicidade, em comunhão consigo, com os semelhantes, com a natureza e com Deus.

Hoje, todas as formas de vida no Planeta estão ameaçadas, inclusive a humana (2/3 da população mundial sobrevivem abaixo da linha da pobreza) e a própria Terra. Evitar a antecipação do Apocalipse exige questionar os mitos da modernidade - como mercado, desenvolvimento, Estado uninacional - todos baseados na razão instrumental.

A conferência de Cochabamba decidiu pela criação de um Tribunal Internacional de Justiça Climática, capaz de penalizar governos e empresas vilões, responsáveis pela catástrofe ambiental. Cresce em todo o mundo o número de migrantes por razões climáticas. É preciso, pois, conhecer e combater as causas estruturais do aquecimento global.

Urge desmercantilizar a vida, a água, as florestas, e respeitar os direitos da Mãe Terra, libertando-a da insaciável cobiça do deus Mercado e das razões de Estado (como é o caso da hidrelétrica de Belo Monte, no Xingu).

Os povos originários sempre foram encarados por nós, cara-pálidas, como inimigos do progresso. Ora, é a nossa concepção de desenvolvimento que se opõe a eles, e ignora a sabedoria de quem faz do necessário o suficiente e jamais impede a reprodução das espécies vivas. Temos muito a aprender com aqueles que possuem outros paradigmas, outras formas de conhecimento, respeitam a diversidade de cosmovisões, sabem integrar o humano e a natureza, e praticam a ética da solidariedade.

Cochabamba é, agora, a Capital Ecológica Mundial. Sugeri ao presidente Evo Morales reeditar a conferência, a exemplo do Fórum Social Mundial, porém mantendo-a sempre na Bolívia, onde se desenrola um processo social e político genuíno, singular, em condições de sinalizar alternativas à atual crise da civilização hegemônica. O próximo evento ficou marcado para 2011.

Pena que o governo brasileiro não tenha dado a devida importância ao evento, nem enviado qualquer representante. A exceção foi o deputado federal Chico Alencar (PSOL-RJ), que representou a Câmara dos Deputados.


Escritor e assessor de movimentos sociais [Autor, em parceria com Marcelo Barros, de "O amor fecunda o Universo - ecologia e espiritualidade" (Agir), entre outros livros. http://www.freibetto.org
Copyright 2010 - FREI BETTO - É proibida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato - MHPAL - Agência Literária (mhpal@terra.com.br)].

domingo, 2 de maio de 2010

Arte e Mística


Pe. Alfredo J. Gonçalves

Adital - Os historiadores e estudiosos analisam a guerra de Tróia como um fato recheado de mitologia. Só Homero e Virgílio, porém, foram capazes de produzir obras como a Ilíada, a Odisséia e a Eneida. Todos nós, pobres mortais, quando deparamos com um bloco de mármore, imediatamente intuímos seu peso, resistência e durabilidade. Mas Michelangelo foi capaz de extrair dele Lá Pietà, uma das mais belas obras da humanidade.

Os mesmos pobres mortais, ao tocarem a pedra, logo identificam a consistência da matéria bruta. Antonio Francisco de Lisboa, o Aleijadinho, a transforma nas imortais esculturas dos profetas, em Congonhas do Campo - MG. A multidão que transita pelas ruas da cidade escuta ruídos, pisa o asfalto e atravessa a selva de concreto. Charles Baudelaire, Vinicius de Morais e Fernando Pessoa forjam a partir dela a rima, a poesia e a música. O sertanejo desbrava os campos e os cultiva para sobreviver. Guimarães Rosa, Clarice Lispector e Gabriel García Márquez descobrem no Grande Sertão da existência humana as mil veredas por onde a alma descortina os mistérios da vida.

Todas as pessoas guardam na memória os momentos mais significativos da própria existência, fazendo deles verdadeiras pérolas da trajetória pessoal, familiar, comunitária. Neles se apóiam como trampolins para novos passos. Mas somente Marcel Proust e Jaime Joyce fizeram desse resgate uma monumental busca do tempo perdido, seguindo as pegadas de um Ulisses contemporâneo. Juscelino Kubitschek empreendeu o sonho de uma nova capital, mas foram Lúcio Costa e Oscar Niemayer que lhe conferiram o desenho e as curvas de uma nova estética urbana.

Essa é a diferença entre o artista e as pessoas comuns. Embora todos nós sejamos dotados de uma dimensão estética, são poucos os que conseguem expressá-la de forma tão viva, bela e profunda. A tradição os chama de gênios da arte: pintura, música, literatura, escultura, arquitetura, etc. Sua visão transcende o olhar do senso comum, elevando-se ou aprofundando-se no mistério da criação.

O mesmo ocorre com o místico. Também ele é um artista dos fatos cotidianos ou da história humana. Esta se apresenta como uma enorme matéria bruta, constituída de amores, dores e temores, sonhos lutas e esperanças. Em seus caminhos nos movemos em meio a um oceano turbulento de medos e angústias, tormentos e contradições. Mares e ventos bravios ameaçam constantemente nossas frágeis embarcações. A fúria das ondas desfaz ilusões, acumulam tribulações. Com freqüência, somos submetidos à travessia de áridos desertos e mutismos intransponíveis, como cegos tentando vencer a mais densa escuridão.

Na oração e na contemplação o místico é capaz de ver, por trás das nuvens sombrias e da tempestade, os raios de um sol radiante. Detecta as indecifráveis pegadas de Deus no chão duro e absurdo da história. Seu olhar transcendente as imagens do dia-a-dia, enxergando na provisoriedade traços indeléveis do absoluto. Transita pelas estradas do mundo como um peregrino em busca de algo sólido e definitivo. No mármore indefinido da trajetória humana, sabe identificar os caracteres deixados pela mão invisível dos anjos.

Aí está a química da oração e da contemplação. Da mesma forma que o artista transforma a pedra, as cores, os fatos e as notas musicais em obras primas para o patrimônio cultural da humanidade, o místico transfigura a matéria bruta do cotidiano em verdadeira arte. Confere-lhe, através da estética, um sentido oculto e profundo. Vários nomes poderiam ser citados. Em primeiro lugar, Jesus, Maria, Buda, Confúcio, Mestre Eckhart; mas também São João da Cruz, Santa Tereza de Lisieux, Santa Teresinha do Menino Jesus, São Francisco de Assis; e mais contemporaneamente, Madre Tereza de Calcutá, Dalai Lama, Dom Hélder Câmara, Oscar Romero, Cardeal Martini, entre tantos outros.

Mais que inteligência, entra em cena a sabedoria. É ela que realiza a grande metamorfose dos conflitos e discórdias em pedras vivas para a construção da justiça e da paz. O místico, depurando os instintos, paixões e necessidades aparentes e superficiais, mergulha no desejo mais profundo do ser humano: regressar ou avançar para à própria casa ou pátria. A sede do além, do infinito, do absoluto o faz caminhar sempre, superar a cada dia os próprios passos, descortinar novos horizontes. Sabe que nenhuma formação humana, social, econômica, política ou cultural, por mais perfeita que seja, esgota o desejo insaciável de repousar no mistério da eternidade. Aliás, místico vem de mistério, significando aquele que transcende as aparências comuns e procura entrar em sintonia com o ser infinito.

O caminho não é espontâneo. Exige esforço, disciplina e persistência. Exige intensos momentos de silêncio e escuta. É uma tarefa longa e extremamente laboriosa. Tarefa que começa e recomeça a cada dia. Nele há avanços e recuos, luzes e sombras; desertos prolongados, seguidos de deslumbrantes iluminações. Como num dia instável, o sol se revela e se esconde. O importante aqui não é tanto obter a água viva que nutre e mata a sede momentânea, mas aprender o caminho da fonte.

Enquanto o artista ao terminar sua obra volta a ter sede e parte para nova criação, o místico também é guiado por uma sede que o eleva a patamares cada vez mais altos, ou a profundezas cada vez mais incógnitas. Dessa contínua superação dos próprios limites, forja-se o artista e o místico. Ambos, por vias diferentes e muitas vezes convergentes, engendram uma estética que confere beleza, sabedoria e sentido à existência humana. Numa palavra, todo artista tem algo de místico e todo místico tem algo de artista.