domingo, 5 de julho de 2009

Carta de Hugo Blanco: Bagua



Hugo Blanco


Bagua

Começo assinalando uma diferençaa entre a "modernidade" e a cosmovisão indígena:
O mundo civilizado vê o passado como algo superado. "Primitivo" tem implicância pejorativa. O moderno, o último, é o melhor.
Em meu idioma, o quechua, "Ñaupaq" significa "adiante" e ao mesmo tempo "passado". "Qhepa" significa "posterior", no lugar e no tempo.
Agora vemos que "o progresso" está levando à extinção da espécie humana, através do esquentamento global e de muitas outras formas de ataque à natureza.

Quem são os povos amazônicos?

A população amazônica peruana abarca 11% da população do país. Habita a mais extensa das três regiões naturais do Perú: o norte, o centro e o sul orientais. Fala dezenas de línguas e está composta por dezenas de nacionalidades.
Os habitantes da selva sul-americana são os indígenas menos contaminados pela "civilização", cuja etapa atual é o capitalismo neoliberal.
Não foram conquistados pelo incanato, tampouco os invasores espanhóis os dominaram. O indígena serrano rebelde Juan Santos Atawallpa, ao ser acossado pelas tropas espanholas, retirou-se para a selva, no seio desses povos, em um cuja língua havia aprendido; as forças coloniais não conseguiram vencê-lo.
Na época da exploração da borracha, o capitalismo ingressou na selva, onde reduziu à escravidão e massacrou as populações nativas; por essa razão, muitas delas se mantêm até hoje em isolamento voluntário, não desejam nenhum contato com a "civilização".
Os irmãos amazônicos não compartem os preconceitos de origem religioso do "mundo civilizado" de cobrir o corpo com trapos, ainda que faça um calor intenso. A forte ofensiva moral dos missionários religiosos e as leis que defendem esses preconceitos conseguiram que alguns deles cubram partes do corpo, especialmente quando vão às cidades.
Sentem-se integrantes da Mãe Natureza e a respeitam profundamente. Quando têm que cultivar, não semeiam um produto. Despejam um lugar do bosque, põem nele diferentes plantas de distintas contexturas, de diferentes ciclos vitais, juntas, imitando a natureza. Um palto ou abacate e, misturado com ele, uma abóbora, ao lado uma bananeira, milho, yuca (mandioca), uma palmeira de frutos comestíveis. Após um tempo, devolvem esse lugar à natureza e abrem outro lugar para o cultivo.
Saem para a caça e a coleta; quando vêem algo digno de ser caçado, o fazem; passam por seu cultivo, se vêem que algo está maduro, o recolhem, se notam que devem fazer algum acerto, o fazem; depois de um tempo, regressam a sua vivenda; não se pode afirmar se estiveram passeando ou trabalhando.
Bebem a água de rios e arroios e também se alimentam de peixes.
Inclusive os indígenas serranos, mais contaminados pela "civilização", os qualificam de ociosos; não queren "progredir", só querem viver bem.
Habitam choças coletivas. Não há "partidos" nem votações, sua organização social e política é a comunidade. Não manda o chefe, manda a personagem coletiva, a comunidade.
Eles vivem aí desde milênios antes da invasão europeia, milênios antes da constituição do Estado peruano, que jamais os consultou para elaborar suas leis, com as quais agora os ataca, pretendendo exterminá-los.

As empresas multinacionais

Essa vida aprazível como parte da natureza agora se vê agredida pela voracidade das empresas multinacionais: extratoras de petróleo, gás e minerais. Depredadoras dos bosques.
A essas empresas, como reza a religião neoliberal, não lhes importa a agressão à natureza nem a extinção da espécie humana, o único que lhes interesa é a obtenção da maior quantidade de dinheiro possível no menor tempo possível.
Envenenam a água dos rios, arrasam as árvores convertendo-as em madeira. Matam a selva amazônica, mãe dos nativos amazônicos. Isso é também matá-los.
Há abundante legislação peruana que os protege; entre outras, o convênio 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que é lei de nível constitucional, pois foi aprovada pelo Congresso. Esse convênio estipula que qualquer disposição sobre os territórios indígenas deve ser consultada com as comunidades. Também existem leis de proteção ao meio-ambiente.
Mas a legislação peruana é apenas um pequeno obstáculo para as grandes companhias que, mediante o suborno, logram por todo o Estado Peruano a seu serviço: Presidente da República, maioria parlamentar, Poder judicial, Forças Armadas, Polícia, etc. Os meios de comunicação também estão em suas mãos.
A serviço dessas empresas, que são seus amos, Alan García elaborou a teoría do "cachorro do hortelão". Assinala que os pequenos camponês ou as comunidades indígenas, como não têm grandes capitais para investir, devem deixar a passagem livre para as grandes companhías depredadoras da natureza, como as companhias mineiras na serra e as extratoras de hidrocarburetos na selva. Em todo o território nacional, devem deixar a passagem livre para as grandes companhias agro-industriais, que matam o solo com o monocultura e os agrotóxicos, e que trabalham produtos de exportação e não para o mercado interno. Segundo ele, essa é a política que se necessita para que o Peru progrida.
Para implementar essa política, obteve do Poder Legislativo a autorização para legislar, segundo disse, para adequar-nos ao Tratado de Livre Comércio (TLC) com os EEUU.
Essa legislação foi uma catarata de decretos-lei contra a organização comunal dos indígenas da serra e da selva, que estorva o saqueio imperialista, e abriu as portas à depredação da natureza com o envenenamento dos rios, a esterilização do solo com a monocultura agro-industrial, com o uso de agrotóxicos e o arrasamento da selva com a extração de hidrocarburetos e madeira.
Por falta de espaço não farei uma análise desses decretos-lei; quem o requeira que busque outras fontes.


Reação indígena

Naturalmente, indígenas da serra e da selva reagiram contra esse ataque e realizam muitas valentes lutas.
Mas é indubitável que os indígenas menos contaminados, os que melhor conservam os princípios indígenas de amor à natureza, de coletivismo, de "mandar obedecendo", do "bem viver", são os amazônicos, que estão à frente das lutas.
A maior organização dos indígenas amazônicos é a Asociação Inter-étnica da Selva Peruana (AIDESEP), que tem bases no norte, no centro e no sul da amazônia peruana.
Exigem a derrogatória dos decretos-lei que afetam sua vida impulsionando a contaminação de rios e a derrubada de bosques.
Seu método de luta consiste na interrupção de vias de transporte terrestre, interrupção do transporte fluvial, muito usados pelas empresas multinacionais, a tomada de instalações, a tomada de campos de aviação. Quando vem a repressão, retiram-se denunciando que o governo o que quer é repressão e não diálogo.
Em agosto do ano passado, obtiveram um triunfo, logrando que o Congresso derrogasse dois decretos-lei anti-amazônicos.
Este ano, iniciaram sua luta em 9 de abril. O governo, com manobras, evitou debater com eles. E, com mais manobras, evitou que o parlamento discutisse a inconstitucionalidade de um decreto-lei que a comissão parlamentar encarregada de estudá-lo achou anticonstitucional.

5 de junho

O 5 de junho, dia mundial do meio ambente, foi eleito por Alan García para desafogar sua raiva anti-ecológica contra os defensores da Amazônia,
Usou o corpo policial especializado na repressão aos movimentos sociais, a Direção de Operações Especiais (DIROES).
Foram atacados os irmãos awajun e wampis que bloqueavam a estrada, próximo à povoação de Bagua. Às 5 da manhã, começou o massacre, desde helicópteros e por terra. Não se sabe quantos são os mortos. Os policiais não permitiam o socorro aos feridos, que levavam presos, nem o recolhimento dos cadáveres pelos familiares.

Passo a palavra a Juan, que esteve em Bagua:

Por assuntos netamente laborais, no día de ontem tive a oportunidade e o "privilégio" de estar por algunas horas nas cidades de Bagua Chica e Bagua Grande; o ambiente que se respira é tenebroso, as "histórias" que se contam são macabras e até inverossímeis, mas as pessoas que as contam são pessoas que viveram o terror, são testemunhas privilegiadas da outra realidade que o Peru oficial, os meios de comunicação, estão tratando de ocultar, porque tive a oportunidade de ver vários repórteres de canais como o 2, o 4, o 5, o 7, o 9 etc. etc., mas não se diz nada do que as pessoas, testemunhas presenciais, repetem com insistência e até o cansaço da matança que se fez na sexta-feira 05.
Dizem os baguinos, praticamente 100% dos com quem conversei, produzidos os enfrentamentos, controlada a situação, os cadáveres dos nativos ficaram largados por toda a estrada próxima e nas imediações da Curva do Diabo; a polícia tomou o controle, de imediato se declarou o toque de queda, começou o empilhamento dos cadáveres, a cremação em plena estrada, outros foram levados a lugares não determinados, nem localizados, embolsados e levados aos helicópteros da polícia que em número de até 3 apoiaram o operativo. Muitos desses cadáveres de humildes peruanos foram jogados nos ríos Marañón e Utcubamba, os mestiços de Bagua Chica y Bagua Grande estimam em um mínimo de 200 a 300 mortos civis.
Dizem que os homens não choram ou não devem chorar, sou um homem de fato e direito, em minha vida adulta só chorei em três oportunidades, quando faleceram meus pais e dois de meus irmãos mais velhos, mas à noite vendo a reportagem de inimigos íntimos e recordando o que tetstemunhei durante o dia e a tarde de ontem, lhes confesso que me puz a chorar como uma criança.
Para mim não há distinção entre os mortos bons e os maus, tanto os nativos e os policiais são seres humanos, os únicos culpados desse horrendo crime contra a humanidade são os políticos, muito especialmente o APRA e os fujimoristas.
Amigos e compatriotas, não sejamos indiferentes à dor de nossos irmãos nativos amazônicos, façamos chegar nosso protesto aos meios de comunicação que manipulam, escondem e tergiversam a informação, peçamos que os responsáveis políticos do governo aprista sejam sancionados, que os decretos em sua totalidade sejam derrogados. Agora!!!

Muito obrigado por haver lido minha experiência.

A Associação Pró Direitos Humanos (APRODEH) relata: "Familiares e amigos buscam pessoas que poderiam encontrar-se refugiadas. Vão buscá-los em Bagua Grande, Bagua Chica e no quartel Militar El Milagro e não as encuentram". Chama a atenção sobre "a pouca ou nenhuma informação que dão as autoridades aos familiares". Ademais, Aprodeh informou a existência de 133 detidos e 189 feridos.
Mencionou também que as pessoas detidas no quartel El Milagro se encontram nessa instalação militar há 7 dias sem uma ordem de detenção que respalde essa privação da libertade. Comprovaram-se maltratos a alguns detidos.
Os irmãos amazônicos se defenderam com lanças e flechas; depois usaram as armas arrebatadas aos agressores. A ira fez que tomassem uma instalação petroleira, na qual capturaram um grupo de policiais, que conduziram à selva; justiçaram alguns deles.
A população mestiça urbana de Bagua, indignada com o massacre, assaltou o local do APRA, o partido do governo, e escritórios públicos, queimando seus veículos. A polícia assassinou vários moradores, entre eles crianças.
O governo decretou a suspensão das garantias e o toque de recolher a partir das 3 p.m.
Amparados por essas medidas, os policiais entravam nas casas para capturar nativos refugiados nelas. Muitos deles tiveram que se refugiar na igreja.
Não se sabe o número de presos e estes não podem ter o auxílio de advogados.
Fala-se de centenas de desaparecidos.

Solidariedade

Afortunadamente a solidaridade é comovedora.
No Peru, organizou-se uma frente de solidaridade.
No dia 11 houve manifestações de protesto pelo massacre em várias cidades do país: Em Lima, que tradicionalmente se encontra de costas para o Peru profundo, fala-se de 4,000 pessoas que marcharam sob a ameaça de 2.500 policiais; houve enfrentamento próximo ao local do Congresso da República. Em Arequipa, mais de 6 mil; na zona de La Joya houve bloqueio da estrada Panamericana. Em Puno, houve paralização de atividades, se atacou a sede do partido do governo. Houve manifestações em Piura, Chiclayo, Tarapoto, Pucallpa, Cusco, Moquegua e em muitas outras cidades.
No exterior são numerosas as ações de protesto em frente às embaixadas peruanas; temos notícias de Nova Iorque, Los Ángeles, Madri, Barcelona, Paris, Grécia, Montreal, Costa Rica, Bélgica, entre outras.
A encarregada de assuntos indígenas da ONU levantou sua voz em protesto.
Também se manifestou a Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Jornais do exterior denunciam o massacre, como La Jornada do México.
A cólera aumenta pelas declarações de Alan García à imprensa europeia de que os nativos não são cidadãos de primeira categoria.
A selva continua em movimento em Yurimaguas, na zona Machiguenga do Cusco e em outras regiões.
Os irmãos amazônicos e os que os apoiam exigem a derrogatória dos decretos-lei 1090, 1064 e outros, que abrem as portas à depredação da selva.
Apesar de que a comissão do parlamento encarregada do tema tenha ditado a derrogatória de alguns decretos-lei por serem anticonstitucionais, a Câmara optou por não discuti-los e declará-los "em suspenso", como queria o APRA. Aos 7 congressistas que protestaram por essa irregularidade os suspenderam por 120 dias, de modo que a ultradireita do parlamento (APRA, Unidad Nacional e o fujimorismo) terá em suas mãos a eleição da próxima mesa diretora do parlamento.
O governo criou uma "mesa de diálogo" na qual se exclui o organismo representativo dos indígenas amazônicos, AIDESEP, cujo dirigente teve que se refugiar na embaixada da Nicarágua, pois o governo o acusa dos crimes de 5 de junho ordenados por Alan García.
A luta amazônica há de continuar, exigindo o respeito à selva.
Os nativos amazônicos sabem que o que está em disputa é a sua própria sobrevivência.
Esperamos que a população mundial tome consciência de que eles estão lutando em defesa de toda a espécie humana, já que a selva amazônica é o pulmão do mundo.

13 de junho de 2009

Tradução: Sergio Granja

Fonte:
http://www.socialismo.org.br/portal/internacional/38-artigo/979-carta-de-higo-blanco-bagua

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