sexta-feira, 31 de julho de 2009

Sobre o direito constitucional à saúde e ao bem-estar do povo do bairro Camargos, em Belo Horizonte



Professor Doutor José Luiz Quadros de Magalhães[1]

A primeira palavra que encontramos no primeiro artigo de nossa Constituição Federal é a palavra “República”. Qual o significado desta palavra que fundamenta a nossa ordem jurídica? República significa que ninguém pode ter privilégios neste estado democrático e republicano. Que todos são iguais perante a lei e devem ter igual acesso aos direitos fundamentais compostos pelos direitos individuais à liberdade, à vida, o acesso à propriedade, à igualdade e à segurança; os direitos sociais à saúde, educação, trabalho, moradia e previdência; os direitos econômicos ao trabalho, remuneração justa, meio ambiente saudável e os direitos políticos de votar, de ser votado. Acrescente-se que estes quatros grupos de direitos fundamentais são indivisíveis ou indissociáveis, o que significa dizer que estes direitos são interdependentes, complementares, um grupo de direitos não existe sem o outro.
Se então, vivemos em uma Republica marcada pela inexistência de privilégios onde todos os direitos fundamentais são assegurados a todas as pessoas indistintamente, porque vemos diariamente enormes contingentes de pessoas pobres, humilhadas pelo Estado, sem acesso aos seus direitos fundamentais que são o alicerce de toda a ordem jurídica brasileira?
Porque a SERQUIP e outras empresas se instalam em bairros populares desrespeitando os mais básicos e essenciais direitos de qualquer pessoa e o Estado nada faz para evitar, mas ao contrário, concede prazos frequentemente dilatados para que os direitos fundamentais mais essenciais e claros continuem sendo desrespeitados?
Quando o movimento social, manifestação mais concreta da democracia participativa prevista na Constituição, me pediu que escrevesse algumas linhas sobre os aspectos constitucionais da situação do bairro Camargos, mais uma vez me deparei com aquelas situações de extremo absurdo jurídico, que só acontece com os mais pobres. Não há e nunca haveria uma SERQUIP queimando lixo tóxico no Bairro Belvedere (Bairro de enriquecidos). E por quê? Ora porque não pode. Mas se não pode porque está então instalada no Bairro Camargos? Nós não estamos em uma República? O Estado não tem o dever de assegurar e promover os direitos fundamentais constitucionais?
A situação é tão absurda que não seria necessário um profissional do Direito para perceber a sua insustentabilidade. A empresa SERQUIP, desde 2003, instalou-se no Bairro Camargos, em Belo Horizonte passando a contaminar o ar da região com a incineração de lixo tóxico hospitalar. Ora, a primeira inflamação nos olhos e nas vias respiratórias já seria suficiente para a imediata interdição das atividades da empresa e sua remoção para área não residencial. Entretanto os relatos dos profissionais médicos nos informam que não só inflamações ocorreram e continuam ocorrendo mas casos de doenças de pele, enfisema pulmonar, crises de asma, câncer e morte.
Não vamos voltar a discutir a República constitucional fundada nos direitos humanos. Tal situação se ocorresse em bairro residencial de alto poder aquisitivo já teria sido solucionada. O Estado tem a obrigação de atuar com a mesma presteza e eficiência diante de qualquer grupo social ou econômico.
A situação se agravou com a renovação da licença de funcionamento da SERQUIP em 20 de outubro de 2008 para mais quatro meses e em 9 de abril de 2009 por mais dois meses e mais dois meses para a saída do bairro. Quando, finalmente, o COMAM não renovou a licença, a empresa consegue uma liminar no Poder Judiciário para a continuidade de suas atividades.
Como pode o Estado, por meio do COMAM e posteriormente por meio de um Juiz de Direito, não proteger direitos fundamentais constitucionais? Pior, como podem dois órgãos do Estado sustentarem a violação de direitos fundamentais?
A situação que se coloca é de apuração da responsabilidade criminal das autoridades envolvidas na continuidade da atividade da empresa, uma vez que esta atividade viola o direito a vida; a dignidade; à saúde; ao meio ambiente saudável, além de inúmeras normas infraconstitucionais.
Pode um servidor público sob qualquer argumento, atentar ou sustentar a violação de direitos fundamentais? Não se trata de caso jurídico difícil, onde cabem interpretações diversas que poderiam justificar as atitudes dos funcionários, representantes ou autoridades envolvidas. Trata-se de flagrante, claríssima violação do direito à vida, à saúde e ao meio ambiente.
Diante de descalabros como estes a população não pode permanecer calada. Devemos agir de forma constitucional, por meio de instrumentos jurídicos, para punir as pessoas responsáveis pela violação do direito a vida e a saúde. Se demonstrarmos que pessoas adoeceram e morreram pela poluição causada pela empresa, as pessoas envolvidas na manutenção da atividade que causou a doença ou a morte devem responder criminalmente, sejam empresários, servidores públicos ou mesmo juiz.
Nossa Constituição é a base de todo o ordenamento jurídico, nenhuma lei, nenhuma ação do estado e de seus servidores e autoridades, nenhuma pessoa pode agir contra seus princípios e regras. Nossa Constituição é um sistema coerente de regras e princípios fundados em valores sociais democraticamente construídos. Este sistema consagra a vida humana como valor maior, e não se trata de vida biológica apenas, mas vida com dignidade, de cada pessoa, brasileiro ou estrangeiro que se encontre em nosso território; de cada pessoa com ou sem dinheiro; com ou sem diploma; com ou sem cargo; todos são iguais, e todos têm que ter seus direitos constitucionais respeitados. Quem violar estes direitos deve responder por seus atos.
Passemos a palavra a nossa Constituição:
a) O artigo 225 dispõe que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.”
b) O artigo 196 dispõe que “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantindo mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção proteção e recuperação.”

Não é justificativa para violar a integridade física e moral das pessoas a geração de empregos ou o lucro das empresas. Seria absurdo insustentável admitirmos que para manter empregos e empresas funcionando é necessário sacrificar a vida e a saúde de algumas pessoas, de uma ou de milhares.


[1] Doutor em Direito Constitucional, professor da UFMG e da PUC Minas, autor de inúmeros livros e artigos, grande defensor dos Direitos Humanos, E-mail: ceede@uol.com.br

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