domingo, 28 de março de 2010

A delinquência acadêmica


Maurício Tragtenberg

O tema é amplo: a relação entre a dominação e o saber, a relação entre o intelectual e a universidade como instituição dominante ligada à dominação, a universidade antipovo. A universidade está em crise. Isto ocorre porque a sociedade está em crise; através da crise da universidade é que os jovens funcionam detectando as contradições profundas do social, refletidas na universidade. A universidade não é algo tão essencial como a linguagem; ela é simplesmente uma instituição dominante ligada à dominação. Não é uma instituição neutra; é uma instituição de classe, onde as contradições de classe aparecem. Para obscurecer esses fatores ela desenvolve uma ideologia do saber neutro, científico, a neutralidade cultural e o mito de um saber "objetivo", acima das contradições sociais. No século passado, período do capitalismo liberal, ela procurava formar um tipo de "homem" que se caracterizava por um comportamento autônomo, exigido por suas funções sociais: era a universidade liberal humanista e mandarinesca. Hoje, ela forma a mão-de-obra destinada a manter nas fábricas o despotismo do capital; nos institutos de pesquisa, cria aqueles que deformam os dados econômicos em detrimento dos assalariados; nas suas escolas de direito forma os aplicadores da legislação de exceção; nas escolas de medicina, aqueles que irão convertê-la numa medicina do capital ou utilizá-la repressivamente contra os deserdados do sistema. Em suma, trata-se de "um complô de belas almas" recheadas de títulos acadêmicos, de um doutorismo substituindo o bacharelismo, de uma nova pedantocracia, da produção de um saber a serviço do poder, seja ele de que espécie for.

Na instância das faculdades de educação, forma-se o planejador tecnocrata a quem importa discutir os meios sem discutir os fins da educação, confeccionar reformas estruturais que na realidade são verdadeiras "restaurações". Formando o professor-policial, aquele que supervaloriza o sistema de exames, a avaliação rígida do aluno, o conformismo ante o saber professoral. A pretensa criação do conhecimento é substituída pelo controle sobre o parco conhecimento produzido pelas nossas universidades, o controle do meio transforma-se em fim, e o "campus" universitário cada vez mais parece um universo concentracionário que reúne aqueles que se originam da classe alta e média, enquanto professores, e os alunos da mesma extração social, como "herdeiros" potenciais do poder através de um saber minguado, atestado por um diploma. A universidade classista se mantém através do poder exercido pela seleção dos estudantes e pelos mecanismos de nomeação de professores. Na universidade mandarinal do século passado o professor cumpria a função de "cão de guarda" do sistema: produtor e reprodutor da ideologia dominante, chefe de disciplina do estudante. Cabia à sua função professoral, acima de tudo, inculcar as normas de passividade, subserviência e docilidade, através da repressão pedagógica, formando a mão-de-obra para um sistema fundado na desigualdade social, a qual acreditava legitimar-se através da desigualdade de rendimento escolar; enfim, onde a escola "escolhia" pedagogicamente os "escolhidos" socialmente. A transformação do professor de "cão de guarda" em "cão pastor" acompanha a passagem da universidade pretensamente humanista e mandarinesca à universidade tecnocrática, onde os critérios lucrativos da empresa privada, funcionarão para a formação das fornadas de "colarinhos brancos" rumo às usinas, escritórios e dependências ministeriais. É o mito da assessoria, do posto público, que mobiliza o diplomado universitário.

A universidade dominante reproduz-se mesmo através dos "cursos críticos", em que o juízo professoral aparece hegemônico ante os dominados: os estudantes. Isso se realiza através de um processo que chamarei de "contaminação". O curso catedrático e dogmático transforma-se num curso magisterial e crítico; a crítica ideológica é feita nos chamados "cursos críticos", que desempenham a função de um tranqüilizante no meio universitário. Essa apropriação da crítica pelo mandarinato universitário, mantido o sistema de exames, a conformidade ao programa e o controle da docilidade do estudante como alvos básicos, constitui-se numa farsa, numa fábrica de boa consciência e delinqüência acadêmica, daqueles que trocam o poder da razão pela razão do poder. Por isso é necessário realizar a crítica da crítica-crítica, destruir a apropriação da crítica pelo mandarinato acadêmico. Watson demonstrou como, nas ciências humanas, as pesquisas em química molecular estão impregnadas de ideologia. Não se trata de discutir a apropriação burguesa do saber ou não-burguesa do saber, mas sim a destruição do "saber institucionalizado", do "saber burocratizado" como único "legítimo". A apropriação universitária (atual) do conhecimento é a concepção capitalista de saber, onde ele se constitui em capital e toma a forma nos hábitos universitários. A universidade reproduz o modo de produção capitalista dominante não apenas pela ideologia que transmite, mas pelos servos que ela forma. Esse modo de produção determina o tipo de formação através das transformações introduzidas na escola, que coloca em relação mestres e estudantes.

O mestre possui um saber inacabado e o aluno uma ignorância transitória, não há saber absoluto nem ignorância absoluta. A relação de saber não institui a diferença entre aluno e professor, a separação entre aluno e professor opera-se através de uma relação de poder simbolizada pelo sistema de exames - "esse batismo burocrático do saber". O exame é a parte visível da seleção; a invisível é a entrevista, que cumpre as mesmas funções de "exclusão" que possui a empresa em relação ao futuro empregado. Informalmente, docilmente, ela "exclui" o candidato. Para o professor, há o currículo visível, publicações, conferências, traduções e atividade didática, e há o currículo invisível - esse de posse da chamada "informação" que possui espaço na universidade, onde o destino está em aberto e tudo é possível acontecer. É através da nomeação, da cooptação dos mais conformistas (nem sempre os mais produtivos) que a burocracia universitária reproduz o canil de professores. Os valores de submissão e conformismo, a cada instante exibidos pelos comportamentos dos professores, já constituem um sistema ideológico. Mas, em que consiste a delinqüência acadêmica? A "delinqüência acadêmica" aparece em nossa época longe de seguir os ditames de Kant: "Ouse conhecer." Se os estudantes procuram conhecer os espíritos audazes de nossa época é fora da universidade que irão encontrá-los. A bem da verdade, raramente a audácia caracterizou a profissão acadêmica. Os filósofos da revolução francesa se autodenominavam de "intelectuais" e não de "acadêmicos". Isso ocorria porque a universidade mostrara-se hostil ao pensamento crítico avançado. Pela mesma razão, o projeto de Jefferson para a Universidade de Virgínia, concebida para produção de um pensamento independente da Igreja e do Estado (de caráter crítico), fora substituído por uma "universidade que mascarava a usurpação e monopólio da riqueza, do poder". Isso levou os estudantes da época a realizarem programas extracurriculares, onde Emerson fazia-se ouvir, já que o obscurantismo da época impedia a entrada nos prédios universitários, pois contrariavam a Igreja, o Estado e as grandes "corporações", a que alguns intelectuais cooptados pretendem que tenham uma "alma". [1]

Em nome do "atendimento à comunidade", "serviço público", a universidade tende cada vez mais à adaptação indiscriminada a quaisquer pesquisas a serviço dos interesses econômicos hegemônicos; nesse andar, a universidade brasileira oferecerá disciplinas como as existentes na metrópole (EUA): cursos de escotismo, defesa contra incêndios, economia doméstica e datilografia em nível de secretariado, pois já existe isso em Cornell, Wisconsin e outros estabelecimentos legitimados. O conflito entre o técnico e o humanismo acaba em compromisso, a universidade brasileira se prepara para ser uma "multiversidade", isto é, ensina tudo aquilo que o aluno possa pagar. A universidade, vista como prestadora de serviços, corre o risco de enquadrar-se numa "agência de poder", especialmente após 68, com a Operação Rondon e sua aparente democratização, só nas vagas; funciona como tranqüilidade social. O assistencialismo universitário não resolve o problema da maioria da população brasileira: o problema da terra. A universidade brasileira, nos últimos 15 anos, preparou técnicos que funcionaram como juízes e promotores, aplicando a Lei de Segurança Nacional, médicos que assinavam atestados de óbito mentirosos, zelosos professores de Educação Moral e Cívica garantindo a hegemonia da ideologia da "segurança nacional" codificada no Pentágono. O problema significativo a ser colocado é o nível de responsabilidade social dos professores e pesquisadores universitários. A não preocupação com as finalidades sociais do conhecimento produzido se constitui em fator de "delinqüência acadêmica" ou da "traição do intelectual". Em nome do "serviço à comunidade", a intelectualidade universitária se tornou cúmplice do genocídio, espionagem, engano e todo tipo de corrupção dominante, quando domina a "razão do Estado" em detrimento do povo. Isso vale para aqueles que aperfeiçoam secretamente armas nucleares (M.I.T.), armas químico-biológicas (Universidade da Califórnia, Berkeley), pensadores inseridos na Rand Corporation, como aqueles que, na qualidade de intelectuais com diploma acreditativo, funcionam na censura, na aplicação da computação com fins repressivos em nosso país. Uma universidade que produz pesquisas ou cursos a quem é apto a pagá-los perde o senso da discriminação ética e da finalidade social de sua produção - é uma multiversidade que se vende no mercado ao primeiro comprador, sem averiguar o fim da encomenda, isso coberto pela ideologia da neutralidade do conhecimento e seu produto.

Já na década de 30, Frederic Lilge [2] acusava a tradição universitária alemã da neutralidade acadêmica de permitir aos universitários alemães a felicidade de um emprego permanente, escondendo a si próprios a futilidadede suas vidas e seu trabalho. Em nome da "segurança nacional", o intelectual acadêmico despe-se de qualquer responsabilidade social quanto ao seu papel profissional, a política de "panelas" acadêmicas de corredor universitário e a publicação a qualquer preço de um texto qualquer se constituem no metro para medir o sucesso universitário. Nesse universo não cabe uma simples pergunta: o conhecimento a quem e para que serve? Enquanto este encontro de educadores, sob o signo de Paulo Freire, enfatiza a responsabilidade social do educador, da educação não confundida com inculcação, a maioria dos congressos acadêmicos serve de "mercado humano", onde entram em contato pessoas e cargos acadêmicos a serem preenchidos, parecidos aos encontros entre gerentes de hotel, em que se trocam informações sobre inovações técnicas, revêem-se velhos amigos e se estabelecem contatos comerciais. Estritamente, o mundo da realidade concreta e sempre muito generoso com o acadêmico, pois o título acadêmico torna-se o passaporte que permite o ingresso nos escalões superiores da sociedade: a grande empresa, o grupo militar e a burocracia estatal. O problema da responsabilidade social é escamoteado, a ideologia do acadêmico é não ter nenhuma ideologia, faz fé de apolítico, isto é, serve à política do poder. Diferentemente, constitui, um legado da filosofia racionalista do século XVIII, uma característica do "verdadeiro" conhecimento o exercício da cidadania do soberano direito de crítica questionando a autoridade, os privilégios e a tradição. O "serviço público" prestado por estes filósofos não consistia na aceitação indiscriminada de qualquer projeto, fosse destinado à melhora de colheitas, ao aperfeiçoamento do genocídio de grupos indígenas a pretexto de "emancipação" ou política de arrocho salarial que converteram o Brasil no detentor do triste "record" de primeiro país no mundo em acidentes de trabalho. Eis que a propaganda pela segurança no trabalho emitida pelas agências oficiais não substitui o aumento salarial. O pensamento está fundamentalmente ligado à ação. Bergson sublinhava no início do século a necessidade do homem agir como homem de pensamento e pensar como homem de ação.

A separação entre "fazer" e "pensar" se constitui numa das doenças que caracterizam a delinqüência acadêmica - a análise e discussão dos problemas relevantes do país constitui um ato político, constitui uma forma de ação, inerente à responsabilidade social do intelectual. A valorização do que seja um homem culto está estritamente vinculada ao seu valor na defesa de valores essenciais de cidadania, ao seu exemplo revelado não pelo seu discurso, mas por sua existência, por sua ação. Ao analisar a "crise de consciência" dos intelectuais norte-americanos que deram o aval da "escalada" no Vietnã, Horowitz notara que a disposição que eles revelaram no planejamento do genocídio estava vinculada à sua formação, à sua capacidade de discutir meios sem nunca questionar os fins, a transformar os problemas políticos em problemas técnicos, a desprezar a consulta política, preferindo as soluções de gabinete, consumando o que definiríamos como a traição dos intelectuais. É aqui onde a indignidade do intelectual substitui a dignidade da inteligência. Nenhum preceito ético pode substituir a prática social, a prática pedagógica. A delinqüência acadêmica se caracteriza pela existência de estruturas de ensino onde os meios (técnicas) se tornam os fins, os fins formativos são esquecidos; a criação do conhecimento e sua reprodução cedem lugar ao controle burocrático de sua produção como suprema virtude, onde "administrar" aparece como sinônimo de vigiar e punir - o professor é controlado mediante os critérios visíveis e invisíveis de nomeação; o aluno, mediante os critérios visíveis e invisíveis de exame. Isso resulta em escolas que se constituem em depósitos de alunos, como diria Lima Barreto em "Cemitério de Vivos".

A alternativa é a criação de canais de participação real de professores, estudantes e funcionários no meio universitário, que oponham-se à esclerose burocrática da instituição. A autogestão pedagógica teria o mérito de devolver à universidade um sentido de existência, qual seja: a definição de um aprendizado fundado numa motivação participativa e não no decorar determinados "clichês", repetidos semestralmente nas provas que nada provam, nos exames que nada examina, mesmo porque o aluno sai da universidade com a sensação de estar mais velho, com um dado a mais: o diploma acreditativo que em si perde valor na medida em que perde sua raridade. A participação discente não constitui um remédio mágico aos males acima apontados, porém a experiência demonstrou que a simples presença discente em colegiados é fator de sua moralização.

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* Texto apresentado no I Seminário de Educação Brasileira, realizado em 1978, em Campinas-SP. Publicado em: TRAGTENBERG, M. Sobre Educação, Política e Sindicalismo. São Paulo: Editores Associados; Cortez, 1990, 2ª ed. (Coleção teoria e práticas sociais, vol 1) [1] Kaysen pretende atribuir uma "alma"à corporação multinacional; esta parece não preocupar-se com tal esforço construtivo do intelectual. [2] Frederic LILGE, The Abuse of Learning: The Failure of German University. Macmillan, New York, 1948.
Revista Mensal - Ano II - Número 14 - Julho de 2002 - ISSN: 1519.6186

sexta-feira, 26 de março de 2010

Bolívia: 25 postulados para entender o ‘Viver Bem’


Em uma entrevista, o ministro das Relações Exteriores da Bolívia e especialista em cosmovisão andina, David Choquehuanca, explica os principais detalhes desta proposta que situa a vida e a natureza como eixos centrais.

A matéria está publicada no jornal boliviano La Razón, 31/01/2010. A tradução é do Cepat.

O Viver Bem, modelo que o governo de Evo Morales busca implementar, pode ser resumido como viver em harmonia com a natureza, algo que retomaria os princípios ancestrais das culturas da região. Estas considerariam que o ser humano passa a um segundo plano em relação ao meio ambiente.

O chanceler David Choquehuanca e um dos estudiosos aimara desse modelo e especialista em cosmovisão andina, conversou com La Razón durante uma hora e meia e explicou os detalhes destes princípios reconhecidos no artigo 8 da Constituição Política do Estado Boliviano (CPE).

“Queremos voltar a Viver Bem, o que significa que agora começamos a valorizar a nossa história, a nossa música, a nossa vestimenta, a nossa cultura, o nosso idioma, os nossos recursos naturais, e, depois de valorizar, decidimos recuperar tudo o que é nosso, voltar a ser o que éramos”.

O artigo 8 da CPE estabelece que: “O Estado assume e promove como princípios ético-morais da sociedade plural: ama qhilla, ama llulla, ama suwa (não sejas preguiçoso, não sejas mentiroso nem ladrão), suma qamaña (viver bem), ñandereko (vida harmoniosa), teko kavi (vida boa), ivi maraei (terra sem males) y qhapaj ñan (caminho ou vida nobre).

O Chanceler marcou distância com o socialismo e mais ainda com o capitalismo. O primeiro busca satisfazer as necessidades humanas e para o capitalismo o mais importante é o dinheiro e a mais-valia.

De acordo com David Choquehuanca, o Viver Bem é um processo que está apenas começando e que pouco a pouco irá se massificando.

“Para os que pertencem à cultura da vida, o mais importante não é o dinheiro nem o ouro, nem o ser humano, porque ele está em último lugar. O mais importante são os rios, o ar, as montanhas, as estrelas, as formigas, as borboletas (...) O ser humano está em último lugar, para nós o mais importante é a vida”.

Nas culturas
Aimara – antigamente os moradores das comunidades aimara na Bolívia aspiravam a ser qamiris (pessoas que vivem bem).

Quechuas – igualmente, as pessoas desta cultura desejavam ser um qhapaj (pessoa que vive bem). Um bem-estar que não é econômico.

Guarani – o guarani sempre aspira a ser uma pessoa que se move em harmonia com a natureza, isto é, que espera algum dia ser iyambae.

O Viver Bem dá prioridade à natureza mais que ao ser humano
Estas são as características que pouco a pouco serão implementadas no novo Estado Plurinacional da Bolívia.

Priorizar a vida
Viver Bem é buscar a vivência em comunidade, onde todos os integrantes se preocupam com todos. O mais importante não é o ser humano (como afirma o socialismo) nem o dinheiro (como postula o capitalismo), mas a vida. Pretende-se buscar uma vida mais simples. Que seja o caminho da harmonia com a natureza e a vida, com o objetivo de salvar o planeta e dar a prioridade à humanidade.

Obter acordos consensuados
Viver Bem é buscar o consenso entre todos, o que implica que mesmo que as pessoas tenham diferenças, na hora de dialogar se chegue a um ponto de neutralidade em que todas coincidam e não se provoquem conflitos. “Não somos contra a democracia, mas o que faremos é aprofundá-la, porque nela existe também a palavra submissão e submeter o próximo não é viver bem”, esclareceu o chanceler David Choquehuanca.

Respeitar as diferenças
Viver Bem é respeitar o outro, saber escutar todo aquele que deseja falar, sem discriminação ou qualquer tipo de submissão. Não se postula a tolerância, mas o respeito, já que, mesmo que cada cultura ou região tenha uma forma diferente de pensar, para viver bem e em harmonia é necessário respeitar essas diferenças. Esta doutrina inclui todos os seres que habitam o planeta, como os animais e as plantas.

Viver em complementaridade
Viver Bem é priorizar a complementaridade, que postula que todos os seres que vivem no planeta se complementam uns com os outros. Nas comunidades, a criança se complementa com o avô, o homem com a mulher, etc. Um exemplo colocado pelo Chanceler especifica que o homem não deve matar as plantas, porque elas complementam a sua existência e ajudam para que sobreviva.

Equilíbrio com a natureza
Viver Bem é levar uma vida equilibrada com todos os seres dentro de uma comunidade. Assim como a democracia, a justiça também é considerada excludente, de acordo com o chanceler David Choquehuanca, porque só leva em conta as pessoas dentro de uma comunidade e não o que é mais importante: a vida e a harmonia do ser humano com a natureza. É por isso que Viver Bem aspira a ter uma sociedade com equidade e sem exclusão.

Defender a identidade
Viver Bem é valorizar e recuperar a identidade. Dentro do novo modelo, a identidade dos povos é muito mais importante do que a dignidade. A identidade implica em desfrutar plenamente de uma vida baseada em valores que resistiram mais de 500 anos (desde a conquista espanhola) e que foram legados pelas famílias e comunidades que viveram em harmonia com a natureza e o cosmos.

Um dos principais objetivos do Viver Bem é retomar a unidade de todos os povos
O ministro das Relações Exteriores, David Choquehuanca, explicou que o saber comer, beber, dançar, comunicar-se e trabalhar também são alguns aspectos fundamentais.

Aceitar as diferenças
Viver Bem é respeitar as semelhanças e diferenças entre os seres que vivem no mesmo planeta. Ultrapassa o conceito da diversidade. “Não há unidade na diversidade, mas é semelhança e diferença, porque quando se fala de diversidade só se fala de pessoas”, diz o Chanceler. Esta colocação se traduz em que os seres semelhantes ou diferentes jamais devem se ofender.

Priorizar direitos cósmicos
Viver Bem é dar prioridade aos direitos cósmicos antes que aos Direitos Humanos. Quando o Governo fala de mudança climática, também se refere aos direitos cósmicos, garante o Ministro das Relações Exteriores. “Por isso, o Presidente (Evo Morales) diz que vai ser mais importante falar sobre os direitos da Mãe Terra do que falar sobre os direitos humanos”.

Saber comer
Viver Bem é saber alimentar-se, saber combinar os alimentos adequados a partir das estações do ano (alimentos de acordo com a época). O ministro das Relações Exteriores, David Choquehuanca, explica que esta consigna deve se reger com base na prática dos ancestrais que se alimentam com um determinado produto durante toda a estação. Comenta que alimentar-se bem garante boa saúde.

Saber beber
Viver Bem é saber beber álcool com moderação. Nas comunidades indígenas cada festa tem um significado e o álcool está presente na celebração, mas é consumido sem exageros ou ofender alguém. “Temos que saber beber; em nossas comunidades tínhamos verdadeiras festas que estavam relacionadas com as estações do ano. Não é ir a uma cantina e se envenenar com cerveja e matar os neurônios”.

Saber dançar
Viver Bem é saber dançar [danzar], não simplesmente saber bailar [bailar]. A dança se relaciona com alguns fatos concretos, como a colheita ou o plantio. As comunidades continuam honrando com dança e música a Pachamama, principalmente em épocas agrícolas; entretanto, nas cidades as danças originárias são consideradas expressões folclóricas. Na nova doutrina se renovará o verdadeiro significado do dançar.

Saber trabalhar
Viver Bem é considerar o trabalho como festa. “O trabalho para nós é felicidade”, disse o chanceler David Choquehuanca, que recalca que ao contrário do capitalismo onde se paga para trabalhar, no novo modelo do Estado Plurinacional, se retoma o pensamento ancestral de considerar o trabalho como festa. É uma forma de crescimento, é por isso que nas culturas indígenas se trabalha desde pequeno.

Retomar o Abya Yala
Viver bem é promover a união de todos os povos em uma grande família. Para o Chanceler, isto implica em que todas as regiões do país se reconstituam no que ancestralmente se considerou como uma grande comunidade. “Isto tem que se estender a todos os países. É por isso que vemos bons sinais de presidentes que estão na tarefa de unir todos os povos e voltar a ser o Abya Yala que fomos”.

Reincorporar a agricultura
Viver Bem é reincorporar a agricultura às comunidades. Parte desta doutrina do novo Estado Plurinacional é recuperar as formas de vivência em comunidade, como o trabalho na terra, cultivando produtos para cobrir as necessidades básicas para a subsistência. Neste ponto se fará a devolução de terras às comunidades, de maneira que se produzam as economias locais.

Saber se comunicar
Viver Bem é saber se comunicar. No novo Estado Pluninacional se pretende retomar a comunicação que existia nas comunidades ancestrais. O diálogo é o resultado desta boa comunicação mencionada pelo Chanceler. “Temos que nos comunicar como antes os nossos pais o faziam, e resolviam os problemas sem que se apresentassem conflitos, não temos que perder isso”.

O Viver Bem não é “viver melhor”, como propugna o capitalismo
Entre os preceitos estabelecidos pelo novo modelo do Estado Plurinacional, figuram o controle social, a reciprocidade e o respeito à mulher e ao idoso.

Controle social
Viver Bem é realizar um controle obrigatório entre os habitantes de uma comunidade. “Este controle é diferente do proposto pela Participação Popular, que foi rechaçado (por algumas comunidades) porque reduz a verdadeira participação das pessoas”, disse o chanceler Choquehuanca. Nos tempos ancestrais, “todos se encarregavam de controlar as funções que suas principais autoridades realizavam”.

Trabalhar em reciprocidade
Viver Bem é retomar a reciprocidade do trabalho nas comunidades. Nos povos indígenas esta prática se denomina ayni, que não é mais do que devolver em trabalho a ajuda prestada por uma família em uma atividade agrícola, como o plantio ou a colheita. “É mais um dos princípios ou códigos que garantirão o equilíbrio nas grandes secas”, explica o Ministro das Relações Exteriores.

Não roubar e não mentir
Viver Bem é basear-se no ama suwa e ama qhilla (não roubar e não mentir, em quéchua). É um dos preceitos que também estão incluídos na nova Constituição Política do Estado e que o Presidente prometeu respeitar. Do mesmo modo, para o Chanceler é fundamental que dentro das comunidades se respeitem estes princípios para conseguir o bem-estar e confiança em seus habitantes. “Todos são códigos que devem ser seguidos para que consigamos viver bem no futuro”.

Proteger as sementes
Viver Bem é proteger e guardar as sementes para que no futuro se evite o uso de produtos transgênicos. O livro Viver Bem, como resposta à crise global, da Chancelaria da Bolívia, especifica que uma das características deste novo modelo é preservar a riqueza agrícola ancestral com a criação de bancos de sementes que evitem a utilização de transgênicos para incrementar a produtividade, porque se diz que esta mistura com químicos prejudica e acaba com as sementes milenares.

Respeitar a mulher
Viver Bem é respeitar a mulher, porque ela representa a Pachamama, que é a Mãe Terra que tem a capacidade de dar vida e de cuidar de todos os seus frutos. Por estas razões, dentro das comunidades, a mulher é valorizada e está presente em todas as atividades orientadas à vida, à criação, à educação e à revitalização da cultura. Os moradores das comunidades indígenas valorizam a mulher como base da organização social, porque transmitem aos seus filhos os saberes de sua cultura.

Viver Bem e NÃO melhor
Viver Bem é diferente de viver melhor, o que se relaciona com o capitalismo. Para a nova doutrina do Estado Plurinacional, viver melhor se traduz em egoísmo, desinteresse pelos outros, individualismo e pensar somente no lucro. Considera que a doutrina capitalista impulsiona a exploração das pessoas para a concentração de riquezas em poucas mãos, ao passo que o Viver Bem aponta para uma vida simples, que mantém uma produção equilibrada.

Recuperar recursos
Viver Bem é recuperar a riqueza natural do país e permitir que todos se beneficiem desta de maneira equilibrada e equitativa. A finalidade da doutrina do Viver Bem também é a de nacionalizar e recuperar as empresas estratégicas do país no marco do equilíbrio e da convivência entre o ser humano e a natureza em contraposição à exploração irracional dos recursos naturais. “Deve-se, sobretudo, priorizar a natureza”, acrescentou o Chanceler.

Exercer a soberania
Viver Bem é construir, a partir das comunidades, o exercício da soberania no país. Isto significa, segundo o livro Viver Bem, como resposta à crise global, que se chegará a uma soberania por meio do consenso comunal que defina e construa a unidade e a responsabilidade a favor do bem comum, sem que nada falte. Nesse marco, se reconstruirão as comunidades e nações para construir uma sociedade soberana que será administrada em harmonia com o indivíduo, a natureza e o cosmos.

Aproveitar a água
Viver Bem é distribuir racionalmente a água e aproveitá-la de maneira correta. O Ministro das Relações Exteriores comenta que a água é o leite dos seres que habitam o planeta. “Temos muitas coisas, recursos naturais, água e, por exemplo, a França não tem a quantidade de água nem a quantidade de terra que há em nosso país, mas vemos que não há nenhum Movimento Sem Terra, assim que devemos valorizar o que temos e preservá-lo o melhor possível, isso é Viver Bem”.

Escutar os anciãos
Viver Bem é ler as rugas dos avós para poder retomar o caminho. O Chanceler destaca que uma das principais fontes de aprendizagem são os anciãos das comunidades, que guardam histórias e costumes que com o passar dos anos vão se perdendo. “Nossos avós são bibliotecas ambulantes, assim que devemos aprender com eles”, menciona. Portanto, os anciãos são respeitados e consultados nas comunidades indígenas do país.

quinta-feira, 18 de março de 2010

Classe média num país injusto

Frei Betto

A população brasileira é, hoje, de 190 milhões de pessoas, divididas em classes segundo o poder aquisitivo. Pertencem às classes A e B as de renda mensal superior a R$ 4.807,00 – os ricos do Brasil.

R$ 4.807,00 não é salário de dar tranqüilidade financeira a ninguém. O aluguel de um apartamento de dois quartos na capital paulista consome metade desse valor. Mas, dentre os ricos, muitos recebem remunerações astronômicas, além de possuírem patrimônio invejável. Nas grandes empresas de São Paulo, o salário mensal de um diretor varia de R$ 40 mil a R$ 60 mil.

Análise recente da Fundação Getúlio Vargas, divulgada em fevereiro de 2010, revela que integram esse segmento privilegiado apenas 10,42% da população, ou seja, 19,4 milhões de pessoas. Elas concentram em mãos 44% da renda nacional. Muita riqueza para pouca gente.

A classe C, conhecida como média, possui renda mensal de R$ 1.115,00 a R$ 4.807,00. Tem crescido nos últimos anos, graças à política econômica do governo Lula. Em 2003 abrangia 37,56% da população, num total de 64,1 milhões de brasileiros. Hoje, inclui 91 milhões – quase metade da população do país (49,22%) – que detêm 46% da renda nacional.

Na classe D – os pobres – estão 43 milhões de pessoas, com renda mensal de R$ 768 a R$ 1.115, obrigadas a dividir apenas 8% da riqueza nacional. E na classe E – os miseráveis, com renda até R$ 768/mês – se encontram 29,9 milhões de brasileiros (16,02% da população), condenados a repartir entre si apenas 2% da renda nacional.

Embora a distribuição de renda no Brasil continue escandalosamente desigual, constata-se que o brasileiro, como diria La Fontaine, começa a ser mais formiga que cigarra. Graças às políticas sociais do governo, como Bolsa Família, aposentadorias e crédito consignado, há um nítido aumento de consumo. Porém, falta ao Bolsa Família encontrar, como frisa o economista Marcelo Néri, a porta de entrada no mercado formal de trabalho.

Dos 91 milhões de brasileiros de classe média, 58,87% têm computador em casa; 57,04% freqüentam escolas particulares; 46,25% fazem curso superior; 58,47% habitam casa própria. E um dado interessante: o aumento da renda familiar se deve ao ingresso de maior número de mulheres no mercado de trabalho.

Já foi o tempo em que o homem trabalhava (patrimônio) e a mulher cuidava da casa (matrimônio). De 2003 a 2008, os salários das mulheres cresceram 37%. O dos homens, 24,6%, embora eles continuem a ser melhor remunerados do que elas.

Segundo a Fundação Getúlio Vargas, o governo Lula tirou da pobreza 19,3 milhões de brasileiros e alavancou outros 32 milhões para degraus superiores da escala social, inserindo-as nas classes A, B e C. Desde 2003, foram criados 8,5 milhões de novos empregos formais. É verdade que, a maioria, de baixa remuneração.

No início dos anos 90, de nossas crianças de 7 a 14 anos, 15% estavam fora da escola. Hoje, são menos de 2,5%. O aumento da escolaridade facilita a inserção no mercado de trabalho, apesar de o Brasil padecer de ensino público de má qualidade e particular de alto custo.

Quanto à educação, estão insatisfeitas com a sua qualidade 40% das pessoas com curso superior; 59% daquelas com ensino médio; 63% das com ensino fundamental; e 69% dos semiescolarizados (cf. “A classe média brasileira”, Amaury de Souza e Bolívar Lamounier, SP, Campus, 2010).

A escola faz de conta que ensina, o aluno finge que aprende, os níveis de capacitação profissional e cultural são vergonhosos comparados aos de outros países emergentes. Quem dera que, no Brasil, houvesse tantas livrarias quanto farmácias.

Hoje há mais consumo no país, o que os economistas chamam de forte demanda por bens e serviços. Processo, contudo, ameaçado pela instabilidade no emprego e o crescimento da inadimplência – a classe média tende a gastar mais do que ganha, atraída fortemente pela aquisição de produtos supérfluos que simbolizam ascensão social.

A classe média ascendente aspira a ter seu próprio negócio. Porém, o empreendedorismo no Brasil é travado pela falta de crédito, conhecimento técnico e capacidade de gestão. E demasiadas exigências legais e trabalhistas, somadas à pesada carga tributária, multiplicam as falências de pequenas e médias empresas e dilatam o mercado informal de trabalho.

Embora a classe média detenha em mãos poderoso capital político, ela tem dificuldade de se organizar, de criar redes sociais, estabelecer vínculos de solidariedade. Praticamente só se associa quando se trata de religião. E revela aversão à política, sobretudo devido à corrupção.

Descrente na capacidade de o governo e o Judiciário combaterem a criminalidade e a corrupção, a classe média torna-se vulnerável aos “salvadores da pátria” - figuras caudilhescas que lhe prometam ação enérgica e punições impiedosas. Foi esse o caldo de cultura capaz de fomentar a ascensão de Hitler e Mussolini.

Reduzir a desigualdade social, assegurar educação de qualidade a todos e aumentar o poder de organização e mobilização da sociedade civil, eis os maiores desafios do Brasil atual.

domingo, 14 de março de 2010

Belo Monte: a volta triunfante da ditadura militar?


Leonardo Boff *

Adital - O Governo Lula possui méritos inegáveis na questão social. Mas na questão ambiental é de uma inconsciência e de um atraso palmar. Ao analisar o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) temos a impressão de sermos devolvidos ao século XIX. É a mesma mentalidade que vê a natureza como mera reserva de recursos, base para alavancar projetos faraônicos, levados avante a ferro e fogo, dentro de um modelo de crescimento ultrapassado que favorece as grandes empresas à custa da depredação da natureza e da criação de muita pobreza. Este modelo está sendo questionado no mundo inteiro por desestabilizar o planeta Terra como um todo e mesmo assim é assumido pelo PAC sem qualquer escrúpulo. A discussão com as populações afetadas e com a sociedade foi pífia. Impera a lógica autoritária; primeiro decide-se depois se convoca a audiência pública. Pois é exatamente isto que está ocorrendo com o projeto da construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte no rio Xingu no Estado do Pará.

Tudo está sendo levado aos trambolhões, atropelando processos, ocultando o importante parecer 114/09 de dezembro de 2009, emitido pelo IBAMA (órgão que cuida das questões ambientais) contrário à construção da usina, a opinião da maioria dos ambientalistas nacionais e internacionais que dizem ser este projeto um grave equívoco com consequências ambientais imprevisíveis.

O Ministério Público Federal que encaminhou processos de embargo, eventualmente levando a questão a foros internacionais, sofreu coação da Advocacia Geral da União (AGU), com o apoio público do Presidente, de processar os procuradores e promotores destas ações por abuso de poder.

Esse projeto vem da ditadura militar dos anos 70. Sob pressão dos indígenas apoiados pelo cantor Sting em parceria com o cacique Raoni foi engavetado em 1989. Agora, com a licença prévia concedida no dia 1º de fevereiro, o projeto da ditadura pôde voltar triunfalmente, apresentado pelo Governo como a maior obra do PAC.

Neste projeto tudo é megalômano: inundação de 51.600 ha de floresta, com um espelho d'água de 516 km2, desvio do rio com a construção de dois canais de 500m de largura e 30 km de comprimento, deixando 100 km de leito seco, submergindo a parte mais bela do Xingu, a Volta Grande e um terço de Altamira, com um custo entre 17 e 30 bilhões de reais, desalojando cerca de 20 mil pessoas e atraindo para as obras cerca de 80 mil trabalhadores para produzir 11.233 MW de energia no tempo das cheias (4 meses) e somente 4 mil MW no resto do ano, para por fim, transportá-la até 5 mil km de distância.

Esse gigantismo, típico de mentes tecnocráticas, beira a insensatez, pois, dada a crise ambiental global, todos recomendam obras menores, valorizando matrizes energéticas alternativas, baseadas na água, no vento, no sol e na biomassa. E tudo isso nós temos em abundância. Considerando as opiniões dos especialistas podemos dizer: a usina hidrelétrica de Monte Belo é tecnicamente desaconselhável, exageradamente cara, ecologicamente desastrosa, socialmente perversa, perturbadora da floresta amazônica e uma grave agressão ao sistema-Terra.

Este projeto se caracteriza pelo desrespeito: às dezenas de etnias indígenas que lá vivem há milhares de anos e que sequer foram ouvidas; desrespeito à floresta amazônica cuja vocação não é produzir energia elétrica mas bens e serviços naturais de grande valor econômico; desrespeito aos técnicos do IBAMA e a outras autoridades científicas contrárias a esse empreendimento; desrespeito à consciência ecológica que devido às ameaças que pesam sobre o sistema da vida, pedem extremo cuidado com as florestas; desrespeito ao Bem Comum da Terra e da Humanidade, a nova centralidade das políticas mundiais.

Se houvesse um Tribunal Mundial de Crimes contra a Terra, como está sendo projetado por um grupo altamente qualificado que estuda a reinvenção da ONU sob a coordenação de Miguel d'Escoto, ex-Presidente da Assembleia (2008-2009) seguramente os promotores da hidrelétrica Monte Santo estariam na mira deste tribunal.

Ainda há tempo de frear a construção desta monstruosidade, porque há alternativas melhores. Não queremos que se realizem as palavras do bispo Dom Erwin Kräutler, defensor dos indígenas e contra Belo Monte: "Lula entrará na história como o grande depredador da Amazônia e o coveiro dos povos indígenas e ribeirinhos do Xingu".

[Leonardo Boff é representante e co-redator da Carta da Terra].

OBS: Queiram escrever para esses e-mails oficiais, seja da Presidência da República, seja do Ministério do Meio Ambiente, seja do IBAMA e demais autoridades para reforçar a campanha da suspensão do projeto da construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte no Xingu, por amor aos povos indígenas, à Amazônia e à Mãe Terra.



Ao Sr. Presidente da Republica, Luiz Inácio Lula da Silva
Ao Sr. Ministro de Energia, Edison Lobão
Ao Sr Ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc
Ao Sr. Presidente do IBAMA, Roberto Messias Franco

Cc: A Subprocuradora Geral da República, Sra. Débora Duprat
Ao Secretário-Executivo do MME, Sr. Márcio Pereira Zimmermann
Ao Chefe de Gabinete do MME, Sr. José Antonio Corrêa Coimbra
A Secretaria Executiva do MMA, Sra. Izabella Mônica Vieira Teixeira
Ao Secretario de energia Elétrica do MME, Sr. Josias Matos de Araujo
Ao Chefe de Gabinete do IBAMA, Sr Vitor Carlos Kaniak

* Teólogo, filósofo e escrito

segunda-feira, 8 de março de 2010

Haiti: um credor, não um devedor


Artigo de Naomi Klein

“Nossa dívida com o Haiti provém principalmente de quatro fontes: a escravidão, a ocupação norte-americana, a ditadura e a mudança climática. Esses reclamos não são fantasiosos nem puramente retóricos. Descansam sobre múltiplas violações de normas e acordos legais”, escreve Naomi Klein em artigo publicado no jornal inglês The Nation, 11-02-2010. Tomamos aqui, para tradução, a versão espanhola publicada no sítio Sin Permiso. A tradução é do Cepat.

Naomi Klein é jornalista e autora dos bestsellers A Doutrina do Choque. A ascensão do capitalismo de desastre. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008, e Sem Logo. A tirania das marcas em um planeta vendido. Rio de Janeiro: 2002.

Eis o artigo.

Se dermos crédito aos ministros das Finanças do G-7, o Haiti está para conseguir algo que merecia há muito tempo: o “perdão” total de sua dívida externa. Em Porto Príncipe, o economista haitiano Camille Chalmers acompanhou estes acontecimentos com um otimismo cauteloso. O cancelamento da dívida é um bom começo, disse à rede Al Jazeera em sua versão inglesa, mas “é tempo de ir além. Temos que falar sobre reparações e indenizações pelas devastadoras consequências da dívida”. Em sua declaração, a ideia de que o Haiti é um país devedor, deve ser abandonada. O Haiti, argumenta, é um país credor – e somos nós, do Ocidente, que estamos atrasados no pagamento de nossas obrigações.

Nossa dívida com o Haiti provém principalmente de quatro fontes: a escravidão, a ocupação norte-americana, a ditadura e a mudança climática. Esses reclamos não são fantasiosos nem puramente retóricos. Descansam sobre múltiplas violações de normas e acordos legais. Aqui, mesmo que brevemente, oferecemos alguns aspectos do caso haitiano.

A dívida da escravidão. Quando os haitianos ganharam a sua independência da França, em 1804, tiveram todo o direito de reclamar reparações aos poderes que se haviam aproveitado durante 300 anos do trabalho roubado. A França, de todo modo, estava convencida de que haviam sido os haitianos que haviam roubado a propriedade dos donos de escravos negando-se a trabalhar gratuitamente. Por isso, em 1825, com uma frota de barcos de guerra atracados na costa haitiana ameaçando voltar a escravizar a ex-colônia, o rei Carlos X veio fazer a coleta: 90 milhões de francos em ouro – dez vezes a renda anual do Haiti naquele momento. Sem capacidade para impedir, e sem possibilidades para pagar, a jovem nação foi amarrada a uma dívida que levaria 122 ano para ser paga.

Em 2003, o presidente haitiano Jean-Bertrand Aristide, enfrentando um intenso embargo econômico, anunciou que o Haiti levaria o governo francês aos tribunais pelo roubo perpetrado tempos atrás. “Nosso argumento”, me disse o ex-advogado de Aristide, Ira Kurzban, “foi que o contrato era um acordo sem validade porque foi baseado na ameaça de re-escravização em tempos em que a comunidade internacional considerava a escravidão um mal”. O governo francês esteve preocupado o bastante para enviar um mediador a Porto Príncipe para que mantivesse o caso fora dos Tribunais. Finalmente, sem embargo, seu problema foi eliminado: enquanto eram levados a cabo os preparativos do processo, Aristide foi deposto. O processo desapareceu, mas para muitos haitianos os reclamos de reparação ainda continuam.

A dívida da ditadura. De 1957 a 1986, o Haiti foi governado pelo regime desafiadoramente cleptocrático de Duvalier. Ao contrário da dívida francesa, o caso contra Duvalier foi exposto em vários tribunais que rastrearam os fundos haitianos até uma elaborada rede de contas bancárias na Suíça e faustuosas propriedades. Em 1988, Kurzban ganhou um importante processo contra Jean-Claude “Baby Doc” Duvalier quando uma Corte de Distrito em Miami determinou que o deposto governante havia “malversado mais de 504 milhões de dólares de fundos públicos”.

Os haitianos, evidentemente, ainda continuam esperando a restituição desse dinheiro – mas este foi apenas o começo de suas perdas. Durante mais de dez anos os credores do país insistiram em que os haitianos deviam pagar as astronômicas dívidas contraídas por Duvalier, estimadas em 844 milhões de dólares, grande parte das quais pertenciam a instituições como o FMI e o Banco Mundial. Só em serviços da dívida, os haitianos teriam que pagar 10 milhões de dólares por ano.

Era legal para os emprestadores estrangeiros cobrar as dívidas de Duvalier sendo que grande parte desse dinheiro nunca foi gasto no Haiti? Muito provavelmente não. Como me afirmou Cephas Lumina, o expert independente em dívida externa da ONU, “o caso do Haiti é um dos melhores exemplos de dívida odiosa no mundo. Só sobre essa base a dívida deveria ser cancelada incondicionalmente”. Mas, mesmo se o Haiti viesse a ter cancelada a totalidade da sua dívida (e destaco o se), este não extinguiria o seu direito de ser compensado pelas dívidas ilegais que já foram contraídas.

A dívida climática. Apoiado por muitos países em desenvolvimento na Cúpula sobre a Mudança Climática em Copenhague, o caso da dívida climática é simples. Os países ricos, que fracassaram espetacularmente em resolver a crise climática causada por eles, têm uma dívida com os países em desenvolvimento que contribuíram pouco para a crise, mas que sofrem os seus efeitos de maneira desproporcional. Em resumo, quem polui, paga. O Haiti tem um argumento irrefutável. Sua contribuição para a mudança climática foi insignificante; as emissões de carbono per capita do Haiti representam apenas 1% das emissões dos Estados Unidos. Mesmo assim, o Haiti está entre os países mais afetados – de acordo com um índice, apenas a Somália é mais vulnerável à mudança climática.

A vulnerabilidade do Haiti à mudança climática não se deve só – nem sequer principalmente – à sua geografia. Efetivamente, o país enfrenta tempestades cada vez mais devastadoras. Mas é a débil infra-estrutura do Haiti que converte situações de alerta em desastres, e os desastres em completas catástrofes. O terremoto, apesar de que não tenha relação com a mudança climática, é um excelente exemplo. E aqui é onde todos esses pagamentos de dívidas ilegais podem ter seu custo mais devastador. Cada pagamento a um credor estrangeiro é dinheiro que não foi utilizado para construir uma estrada, uma escola, uma linha elétrica. E essa mesma dívida ilegítima incrementa o poder do FMI e do Banco Mundial para impor onerosas condições para cada novo empréstimo, requerendo que o Haiti desregule sua economia e diminua ainda mais seu setor público. Ao falhar no cumprimento dessas condições foi castigado com um embargo de ajuda desde 2001 até 2004, os sinos de morte para a esfera pública haitiana.

Esta história precisa ser confrontada agora, porque ameaça repetir-se. Os credores do Haiti já estão utilizando a desesperada necessidade de ajuda por conta do terremoto para pressionar pela quintuplicação da produção no setor têxtil, um dos trabalhos mais exploradores no país. Os haitianos não têm muito prestígio nestas conversações, porque são considerados receptores passivos de ajuda, não participantes dignos e plenos em um processo de reparação e indenização.

O cálculo sobre as dívidas que o mundo tem com o Haiti poderia mudar radicalmente a sua dinâmica venenosa. Aqui é onde começa o verdadeiro caminho para a reparação: mediante o reconhecimento do direito dos haitianos de serem reparados.

sábado, 6 de março de 2010

Economia centrada na vida

Frei Betto

Adital - O tema da Campanha da Fraternidade 2010, promovida pela CNBB e o CONIC (Conselho Nacional das Igrejas Cristãs do Brasil), é "Economia e vida". Lançada na Quarta-Feira de Cinzas, a campanha tem como lema o versículo do evangelho de Mateus: "Não se pode servir a Deus e ao dinheiro" (6, 24).

Em plena crise do sistema capitalista, que ameaça as finanças de vários países, o tema escolhido por bispos e pastores cristãos é de suma atualidade no ano em que os eleitores brasileiros deverão escolher seus novos governantes. A economia, palavra que deriva do grego oikos+nomos, "administração da casa", não deveria ser encarada pela ótica da maximização do lucro, e sim pelo bem-estar da coletividade.

A Campanha da Fraternidade objetiva sensibilizar a sociedade sobre o valor sagrado de cada pessoa que a constitui; criticar o consumismo e superar o individualismo; enfatizar a relação entre fé e vida, através da prática da justiça; ampliar a democracia firmada em metas de sustentabilidade.

Isso significa "denunciar a perversidade de todo modelo econômico que vise, em primeiro lugar, ao lucro, sem se importar com a desigualdade, a miséria, a fome e a morte; educar para a prática de uma economia de solidariedade; conclamar igrejas, religiões e sociedade para ações sociais e políticas que levem à implantação de um modelo econômico de solidariedade e justiça."

O documento reconhece que "um bom número de brasileiros, na última década, saiu do estado convencionalmente definido de pobreza, mas o Brasil confirma hoje a realidade de enorme desigualdade na distribuição de renda e elevados níveis de pobreza. Segundo o Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade, em 2007 existiam no Brasil 10,7 milhões de indigentes (ou seja, famintos), e 46,3 milhões de pobres (ou seja, sem acesso às necessidades básicas: alimentação, habitação, vestuário, higiene, saúde, educação, transporte, lazer, entre outras), considerando valor dos bens em cada local pesquisado."

A parcela da população brasileira que vive em estado classificado, tecnicamente, como de extrema pobreza, continuará a ser indigente, pois não consegue, de modo geral, quebrar esse círculo vicioso, a não ser que a sociedade se organize de outro modo, colocando acima dos interesses de mercado o ser humano.

Na raiz da desigualdade social está a concentração de terras rurais em mãos de poucas famílias ou empresas. Cerca de 3% do total das propriedades rurais do Brasil são latifúndios, ou seja, têm mais de 1.000 ha e ocupam 57% das terras agriculturáveis - de acordo com o Atlas Fundiário do INCRA. É como se a área ocupada pelos estados de São Paulo e Paraná, juntos, estivesse em mãos dos 300 maiores proprietários rurais, enquanto 4,8 milhões de famílias sem-terra estão à espera de chão para plantar.

A lógica econômica que predomina na política do governo insiste em elevar os juros para favorecer o mercado financeiro e prejudicar os consumidores. Basta dizer que governo federal gastou em 2008, com a dívida pública, 30,57% do orçamento da União, para irrigar a especulação financeira. E apenas 11,73% com saúde (4,81%), educação (2,57%), assistência social (3,08%), habitação (0,02%), segurança pública (0,59%), organização agrária (0,27%), saneamento (0,05%), urbanismo (0,12%), cultura (0,06%) e gestão ambiental (0,16%).

E, no Brasil, quem mais paga impostos são os pobres, pois os 10% mais pobres da população destinam 32,8% de sua escassa renda ao pagamento de tributos, enquanto os 10% mais ricos apenas 22,7% da renda.

A Campanha da Fraternidade convida os fiéis a refletirem sobre a contradição de um sistema econômico prensado entre cidadãos interessados em satisfazer suas necessidades e desejos, e empreendedores e agentes financeiros em busca da maximização do lucro. Uma importante parcela da moderna economia capitalista é meramente virtual, decorre de vultosas movimentações de capital, não gera bens e produtos em benefício da sociedade, serve apenas para o enriquecimento de uns poucos com o fruto da especulação financeira.

O ciclo da moderna economia política fecha-se num mundo autossuficiente, indiferente a qualquer consideração ética sobre a vida humana e a preservação da natureza. A evolução da história, a miséria em que vive grande parte da humanidade, põem em questão o rigor e a seriedade dessa ciência e a bondade das políticas econômicas voltadas mais ao crescimento e à acumulação da riqueza do que ao verdadeiro desenvolvimento sustentável.

A CNBB e o CONIC propõem a realização de um plebiscito no próximo 7 de setembro - data da Independência do Brasil e dia do Grito dos Excluídos - em prol do limite de propriedade da terra e em defesa da reforma agrária e da soberania territorial e alimentar. É preciso que haja leis limitando o tamanho das propriedades rurais no Brasil, de modo a evitar latifúndios improdutivos, êxodo rural, trabalho escravo e exploração da mão de obra migrante, como ocorre em canaviais.

O Evangelho, ao contrapor serviço a Deus e ao dinheiro, apela à nossa consciência: as riquezas resultantes da natureza e do trabalho humano se destinam ao bem-estar de toda a humanidade ou à apropriação privada de uns poucos que, nos novos templos chamados bancos, adoram a Mamon, o ídolo que traz felicidade à minoria que se nutre do sofrimento, da miséria e da morte da maioria?

Escritor e assessor de movimentos sociais. [Autor de "Calendário do Poder" (Rocco), entre outros livros. Copyright 2010 - FREI BETTO - É proibida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato - MHPAL - Agência Literária (mhpal@terra.com.br)]

quarta-feira, 3 de março de 2010

Deus e o Dinheiro


Antonio Galvão

A Campanha da Fraternidade nem tinha sido bem lançada e a mídia nacional, nas edições da Quarta-feira de Cinzas já havia publicado vários textos que revelavam uma posição defensiva, quando não antagônica, com o fito de tachá-la de polêmica e até anacrônica, visando desmerecer a reflexão proposta pela Igreja do Brasil, a partir da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). A mídia do Brasil, capitalista ou a serviço de grupos econômicos não admite qualquer reflexão que contrarie seus ideários. Uma chamada de consciência como a da CF 2010 converte-se num insulto, quando não uma ameaça.

Nesse esforço se viu muita gente criticando o lema “Ninguém pode servir a dois senhores: a Deus ou ao dinheiro” como egresso de ideologias socialistas, resumo de conclaves, como o “fórum social mundial” ou fruto de outros movimentos, cujas palavras-de-ordem atacam os ricos e o capital. Há nessas críticas uma deliberada intenção de ataque (à Igreja) e defesa (do capitalismo), uma vez que sempre que se combate a ganância, a exploração e a exclusão que brotam do mau uso do dinheiro, a oposição, o boicote e a censura evidenciam que se tocou na ferida de adversários poderosos.

Na verdade, o “Ninguém pode servir a dois senhores: a Deus ou ao dinheiro” não brota de nenhuma cartilha de inspiração marxista, mas do Evangelho de Mateus (6,24) e de Lucas (16,13). Os textos originais alertavam para a impossibilidade de servir a Mámon, que no simbolismo palestino apontava para uma divindade cananéia, que se alimentava de dinheiro, indo inclusive ao sacrifício de pessoas humanas para esse fim. Ao proibir os cultos a Mámon ao invés de a Deus, os antigos repudiavam aquilo que chamavam de idolatria. Hoje, em alguns casos, a idolatria do mercado, o mercantilismo e algumas formas de globalização, por serem excludentes e sectárias, trazem consigo muitas características daquela pantagruélica entidade.

A “chave de leitura” do texto básico da campanha está no ato entender o sentido do verbo servir. Nós servimos a Deus porque é o Senhor e usamos o dinheiro (porque ele é coisa) para nosso bem-estar. As distorções econômicas, sociais e éticas ocorrem a partir do momento em que desprezamos a Deus e nos tornamos ou escravos do dinheiro. Não é crime nem pecado ter dinheiro, como resultado do trabalho e de alguma atividade ética. O ilícito está em acumular a partir da exploração dos outros, da montagem de esquemas espúrios e da entronização do dinheiro em detrimento do crescimento das pessoas. O dinheiro é coisa boa e útil desde que não seja transformado em divindade que exija culto e subserviência.

O autor é Doutor em Teologia Moral