sexta-feira, 26 de março de 2010

Bolívia: 25 postulados para entender o ‘Viver Bem’


Em uma entrevista, o ministro das Relações Exteriores da Bolívia e especialista em cosmovisão andina, David Choquehuanca, explica os principais detalhes desta proposta que situa a vida e a natureza como eixos centrais.

A matéria está publicada no jornal boliviano La Razón, 31/01/2010. A tradução é do Cepat.

O Viver Bem, modelo que o governo de Evo Morales busca implementar, pode ser resumido como viver em harmonia com a natureza, algo que retomaria os princípios ancestrais das culturas da região. Estas considerariam que o ser humano passa a um segundo plano em relação ao meio ambiente.

O chanceler David Choquehuanca e um dos estudiosos aimara desse modelo e especialista em cosmovisão andina, conversou com La Razón durante uma hora e meia e explicou os detalhes destes princípios reconhecidos no artigo 8 da Constituição Política do Estado Boliviano (CPE).

“Queremos voltar a Viver Bem, o que significa que agora começamos a valorizar a nossa história, a nossa música, a nossa vestimenta, a nossa cultura, o nosso idioma, os nossos recursos naturais, e, depois de valorizar, decidimos recuperar tudo o que é nosso, voltar a ser o que éramos”.

O artigo 8 da CPE estabelece que: “O Estado assume e promove como princípios ético-morais da sociedade plural: ama qhilla, ama llulla, ama suwa (não sejas preguiçoso, não sejas mentiroso nem ladrão), suma qamaña (viver bem), ñandereko (vida harmoniosa), teko kavi (vida boa), ivi maraei (terra sem males) y qhapaj ñan (caminho ou vida nobre).

O Chanceler marcou distância com o socialismo e mais ainda com o capitalismo. O primeiro busca satisfazer as necessidades humanas e para o capitalismo o mais importante é o dinheiro e a mais-valia.

De acordo com David Choquehuanca, o Viver Bem é um processo que está apenas começando e que pouco a pouco irá se massificando.

“Para os que pertencem à cultura da vida, o mais importante não é o dinheiro nem o ouro, nem o ser humano, porque ele está em último lugar. O mais importante são os rios, o ar, as montanhas, as estrelas, as formigas, as borboletas (...) O ser humano está em último lugar, para nós o mais importante é a vida”.

Nas culturas
Aimara – antigamente os moradores das comunidades aimara na Bolívia aspiravam a ser qamiris (pessoas que vivem bem).

Quechuas – igualmente, as pessoas desta cultura desejavam ser um qhapaj (pessoa que vive bem). Um bem-estar que não é econômico.

Guarani – o guarani sempre aspira a ser uma pessoa que se move em harmonia com a natureza, isto é, que espera algum dia ser iyambae.

O Viver Bem dá prioridade à natureza mais que ao ser humano
Estas são as características que pouco a pouco serão implementadas no novo Estado Plurinacional da Bolívia.

Priorizar a vida
Viver Bem é buscar a vivência em comunidade, onde todos os integrantes se preocupam com todos. O mais importante não é o ser humano (como afirma o socialismo) nem o dinheiro (como postula o capitalismo), mas a vida. Pretende-se buscar uma vida mais simples. Que seja o caminho da harmonia com a natureza e a vida, com o objetivo de salvar o planeta e dar a prioridade à humanidade.

Obter acordos consensuados
Viver Bem é buscar o consenso entre todos, o que implica que mesmo que as pessoas tenham diferenças, na hora de dialogar se chegue a um ponto de neutralidade em que todas coincidam e não se provoquem conflitos. “Não somos contra a democracia, mas o que faremos é aprofundá-la, porque nela existe também a palavra submissão e submeter o próximo não é viver bem”, esclareceu o chanceler David Choquehuanca.

Respeitar as diferenças
Viver Bem é respeitar o outro, saber escutar todo aquele que deseja falar, sem discriminação ou qualquer tipo de submissão. Não se postula a tolerância, mas o respeito, já que, mesmo que cada cultura ou região tenha uma forma diferente de pensar, para viver bem e em harmonia é necessário respeitar essas diferenças. Esta doutrina inclui todos os seres que habitam o planeta, como os animais e as plantas.

Viver em complementaridade
Viver Bem é priorizar a complementaridade, que postula que todos os seres que vivem no planeta se complementam uns com os outros. Nas comunidades, a criança se complementa com o avô, o homem com a mulher, etc. Um exemplo colocado pelo Chanceler especifica que o homem não deve matar as plantas, porque elas complementam a sua existência e ajudam para que sobreviva.

Equilíbrio com a natureza
Viver Bem é levar uma vida equilibrada com todos os seres dentro de uma comunidade. Assim como a democracia, a justiça também é considerada excludente, de acordo com o chanceler David Choquehuanca, porque só leva em conta as pessoas dentro de uma comunidade e não o que é mais importante: a vida e a harmonia do ser humano com a natureza. É por isso que Viver Bem aspira a ter uma sociedade com equidade e sem exclusão.

Defender a identidade
Viver Bem é valorizar e recuperar a identidade. Dentro do novo modelo, a identidade dos povos é muito mais importante do que a dignidade. A identidade implica em desfrutar plenamente de uma vida baseada em valores que resistiram mais de 500 anos (desde a conquista espanhola) e que foram legados pelas famílias e comunidades que viveram em harmonia com a natureza e o cosmos.

Um dos principais objetivos do Viver Bem é retomar a unidade de todos os povos
O ministro das Relações Exteriores, David Choquehuanca, explicou que o saber comer, beber, dançar, comunicar-se e trabalhar também são alguns aspectos fundamentais.

Aceitar as diferenças
Viver Bem é respeitar as semelhanças e diferenças entre os seres que vivem no mesmo planeta. Ultrapassa o conceito da diversidade. “Não há unidade na diversidade, mas é semelhança e diferença, porque quando se fala de diversidade só se fala de pessoas”, diz o Chanceler. Esta colocação se traduz em que os seres semelhantes ou diferentes jamais devem se ofender.

Priorizar direitos cósmicos
Viver Bem é dar prioridade aos direitos cósmicos antes que aos Direitos Humanos. Quando o Governo fala de mudança climática, também se refere aos direitos cósmicos, garante o Ministro das Relações Exteriores. “Por isso, o Presidente (Evo Morales) diz que vai ser mais importante falar sobre os direitos da Mãe Terra do que falar sobre os direitos humanos”.

Saber comer
Viver Bem é saber alimentar-se, saber combinar os alimentos adequados a partir das estações do ano (alimentos de acordo com a época). O ministro das Relações Exteriores, David Choquehuanca, explica que esta consigna deve se reger com base na prática dos ancestrais que se alimentam com um determinado produto durante toda a estação. Comenta que alimentar-se bem garante boa saúde.

Saber beber
Viver Bem é saber beber álcool com moderação. Nas comunidades indígenas cada festa tem um significado e o álcool está presente na celebração, mas é consumido sem exageros ou ofender alguém. “Temos que saber beber; em nossas comunidades tínhamos verdadeiras festas que estavam relacionadas com as estações do ano. Não é ir a uma cantina e se envenenar com cerveja e matar os neurônios”.

Saber dançar
Viver Bem é saber dançar [danzar], não simplesmente saber bailar [bailar]. A dança se relaciona com alguns fatos concretos, como a colheita ou o plantio. As comunidades continuam honrando com dança e música a Pachamama, principalmente em épocas agrícolas; entretanto, nas cidades as danças originárias são consideradas expressões folclóricas. Na nova doutrina se renovará o verdadeiro significado do dançar.

Saber trabalhar
Viver Bem é considerar o trabalho como festa. “O trabalho para nós é felicidade”, disse o chanceler David Choquehuanca, que recalca que ao contrário do capitalismo onde se paga para trabalhar, no novo modelo do Estado Plurinacional, se retoma o pensamento ancestral de considerar o trabalho como festa. É uma forma de crescimento, é por isso que nas culturas indígenas se trabalha desde pequeno.

Retomar o Abya Yala
Viver bem é promover a união de todos os povos em uma grande família. Para o Chanceler, isto implica em que todas as regiões do país se reconstituam no que ancestralmente se considerou como uma grande comunidade. “Isto tem que se estender a todos os países. É por isso que vemos bons sinais de presidentes que estão na tarefa de unir todos os povos e voltar a ser o Abya Yala que fomos”.

Reincorporar a agricultura
Viver Bem é reincorporar a agricultura às comunidades. Parte desta doutrina do novo Estado Plurinacional é recuperar as formas de vivência em comunidade, como o trabalho na terra, cultivando produtos para cobrir as necessidades básicas para a subsistência. Neste ponto se fará a devolução de terras às comunidades, de maneira que se produzam as economias locais.

Saber se comunicar
Viver Bem é saber se comunicar. No novo Estado Pluninacional se pretende retomar a comunicação que existia nas comunidades ancestrais. O diálogo é o resultado desta boa comunicação mencionada pelo Chanceler. “Temos que nos comunicar como antes os nossos pais o faziam, e resolviam os problemas sem que se apresentassem conflitos, não temos que perder isso”.

O Viver Bem não é “viver melhor”, como propugna o capitalismo
Entre os preceitos estabelecidos pelo novo modelo do Estado Plurinacional, figuram o controle social, a reciprocidade e o respeito à mulher e ao idoso.

Controle social
Viver Bem é realizar um controle obrigatório entre os habitantes de uma comunidade. “Este controle é diferente do proposto pela Participação Popular, que foi rechaçado (por algumas comunidades) porque reduz a verdadeira participação das pessoas”, disse o chanceler Choquehuanca. Nos tempos ancestrais, “todos se encarregavam de controlar as funções que suas principais autoridades realizavam”.

Trabalhar em reciprocidade
Viver Bem é retomar a reciprocidade do trabalho nas comunidades. Nos povos indígenas esta prática se denomina ayni, que não é mais do que devolver em trabalho a ajuda prestada por uma família em uma atividade agrícola, como o plantio ou a colheita. “É mais um dos princípios ou códigos que garantirão o equilíbrio nas grandes secas”, explica o Ministro das Relações Exteriores.

Não roubar e não mentir
Viver Bem é basear-se no ama suwa e ama qhilla (não roubar e não mentir, em quéchua). É um dos preceitos que também estão incluídos na nova Constituição Política do Estado e que o Presidente prometeu respeitar. Do mesmo modo, para o Chanceler é fundamental que dentro das comunidades se respeitem estes princípios para conseguir o bem-estar e confiança em seus habitantes. “Todos são códigos que devem ser seguidos para que consigamos viver bem no futuro”.

Proteger as sementes
Viver Bem é proteger e guardar as sementes para que no futuro se evite o uso de produtos transgênicos. O livro Viver Bem, como resposta à crise global, da Chancelaria da Bolívia, especifica que uma das características deste novo modelo é preservar a riqueza agrícola ancestral com a criação de bancos de sementes que evitem a utilização de transgênicos para incrementar a produtividade, porque se diz que esta mistura com químicos prejudica e acaba com as sementes milenares.

Respeitar a mulher
Viver Bem é respeitar a mulher, porque ela representa a Pachamama, que é a Mãe Terra que tem a capacidade de dar vida e de cuidar de todos os seus frutos. Por estas razões, dentro das comunidades, a mulher é valorizada e está presente em todas as atividades orientadas à vida, à criação, à educação e à revitalização da cultura. Os moradores das comunidades indígenas valorizam a mulher como base da organização social, porque transmitem aos seus filhos os saberes de sua cultura.

Viver Bem e NÃO melhor
Viver Bem é diferente de viver melhor, o que se relaciona com o capitalismo. Para a nova doutrina do Estado Plurinacional, viver melhor se traduz em egoísmo, desinteresse pelos outros, individualismo e pensar somente no lucro. Considera que a doutrina capitalista impulsiona a exploração das pessoas para a concentração de riquezas em poucas mãos, ao passo que o Viver Bem aponta para uma vida simples, que mantém uma produção equilibrada.

Recuperar recursos
Viver Bem é recuperar a riqueza natural do país e permitir que todos se beneficiem desta de maneira equilibrada e equitativa. A finalidade da doutrina do Viver Bem também é a de nacionalizar e recuperar as empresas estratégicas do país no marco do equilíbrio e da convivência entre o ser humano e a natureza em contraposição à exploração irracional dos recursos naturais. “Deve-se, sobretudo, priorizar a natureza”, acrescentou o Chanceler.

Exercer a soberania
Viver Bem é construir, a partir das comunidades, o exercício da soberania no país. Isto significa, segundo o livro Viver Bem, como resposta à crise global, que se chegará a uma soberania por meio do consenso comunal que defina e construa a unidade e a responsabilidade a favor do bem comum, sem que nada falte. Nesse marco, se reconstruirão as comunidades e nações para construir uma sociedade soberana que será administrada em harmonia com o indivíduo, a natureza e o cosmos.

Aproveitar a água
Viver Bem é distribuir racionalmente a água e aproveitá-la de maneira correta. O Ministro das Relações Exteriores comenta que a água é o leite dos seres que habitam o planeta. “Temos muitas coisas, recursos naturais, água e, por exemplo, a França não tem a quantidade de água nem a quantidade de terra que há em nosso país, mas vemos que não há nenhum Movimento Sem Terra, assim que devemos valorizar o que temos e preservá-lo o melhor possível, isso é Viver Bem”.

Escutar os anciãos
Viver Bem é ler as rugas dos avós para poder retomar o caminho. O Chanceler destaca que uma das principais fontes de aprendizagem são os anciãos das comunidades, que guardam histórias e costumes que com o passar dos anos vão se perdendo. “Nossos avós são bibliotecas ambulantes, assim que devemos aprender com eles”, menciona. Portanto, os anciãos são respeitados e consultados nas comunidades indígenas do país.

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