quarta-feira, 29 de abril de 2009

A religiosidade popular da Folia de Reis



Somos despertados pela alegria dos cantos e da alegria. O galo canta, o sol inicia sua aurora e nela já estão de pé os mensageiros da Folia. Todos os anos somos convidados a interpretar e compreender este fenômeno da religiosidade popular brasileira que estimula-nos a refletir a importância da cultura católica no imaginário popular, bem como a fé como fonte de vida para àqueles e àquelas que recebem a visita dos foliões em suas casas.

A Folia de Reis é uma festa popular herdada da cultura portuguesa que chegou ao Brasil no século XVIII e que assumiu características próprias principalmente entre os camponeses tornando-se uma manifestação religiosa de rara beleza com simplicidade. Em Portugal, em meados do século XVII, tinha a principal finalidade de divertir o povo, enquanto aqui no Brasil passou a ter um caráter mais religioso do que de diversão.

Lembro-me neste dia particular a cidade de Goiás, Itapirapuã, Itapuranga e Itaberaí onde pude conviver mais de perto com esta realidade. Podia-se ouvir de longe ou encontrar os grupos especiais de músicos, cantadores e rezadores trajando seus fardamentos coloridos (expressando a alegria) e entoando os versos que anunciam o nascimento do menino Jesus, o Verbo que se encarna e entre nós faz sua morada, e também, homenageando os Reis Magos (Baltazar, Belchior e Gaspar) num memorial bíblico “(...) vimos a sua estrela no Oriente, e viemos adorá-lo” (Mt 2, 2) ou como se canta em nossas comunidades: Vimos sua estrela no Oriente e viemos adorar o Rei d’gente. Estou, evidentemente, falando da Folia de Reis que durante os dias 24 de dezembro a 06 de janeiro, dia dos Santos Reis, faz sua peregrinação à procura de acolhida ou em direção a alguma comunidade que já se encontra à espera dos foliões. Os versos são preservados como tesouro de geração após geração pela tradição oral.

Sem dúvida, trata-se de uma festa religiosa popular que não se encontra no calendário litúrgico oficial da Igreja. É uma festa do povo e com o povo. Portanto, sem nenhuma interferência da hierarquia da Igreja, pois se trata de uma expressão da religiosidade laical. Mas, não é apenas um folclore, um dado cultural do passado. A Folia contêm toda uma mística e uma espiritualidade que nasce e brota do povo escolhido por Deus. Emociona-nos ver os tocadores com suas sanfonas, reco-recos, caixas, pandeiros, chocalhos, violões e violas e outros tantos instrumentos que seguem os foliões pela noite e dia adentro, em longas caminhadas, levando a “bandeira” ou estandarte de madeira ornado com símbolos religiosos. Todos possuem o maior respeito à bandeira, pois se trata de um símbolo religioso. São liderados por mestre e contra-mestres, figuras de relevância dentro da Folia, pois são os entendidos nos versos e quase sempre são os puxadores do canto.

Em alguns lugares existe a promessa dos foliões em cumprir por um período de sete anos consecutivos saírem com a Folia e arrecadarem em suas andanças donativos para realizarem anualmente a Festa de São Sebastião no dia 20 de janeiro, festa com cantorias e ladainhas versadas pelos benditos.

Os personagens somam ao todo doze pessoas. Todos os integrantes do grupo trajam roupas bastante coloridas, sendo eles: mestre, contra-mestre, três Reis Magos, palhaço e foliões.O Mestre e Contra-mestre é dono de conhecimentos sobre a manifestação, é quem comanda os foliões; O Palhaço com seu jeito cínico e dissimulado que deve proteger o Menino Jesus, confundindo os soldados de Herodes. O seu jeito alegre e suas vestimentas coloridas são responsáveis pela distração e divertimento de quem assiste à performance. Representando o mal, usa geralmente máscara confeccionada com pele de animal e vai sempre afastado um pouco da formação normal da Folia, nunca se adiantando à “bandeira”. Apesar de seu simbolismo é personagem alegre que dança e improvisa versos, criando momentos de grande descontração; Os Foliões são compostos de homens simples, geralmente de origem rural, são os participantes da festa, dão exemplo grandioso através de sua cantoria de fé; Reis Magos são três Reis Magos que fazem viagem de esperança, certos de encontrarem sua estrela.

O Alferes da Folia, chefe dos foliões, seguido dos palhaços do Reisado e de seus instrumentos, bate nas portas dos fiéis, de manhãzinha, para tomar café e recolher dinheiro para a Folia de Reis, oferecendo uma bandeira colorida, enfeitada com fitas e santinhos. Do lado de fora, os palhaços vestidos a caráter e cobertos por máscaras, representando os soldados do rei Herodes, de Jerusalém, dançam ao som do violão, do pandeiro e do cavaquinho, recitando versos. E a festa com orações, cantos, danças, comidas e bebidas vai até altas horas da noite e noutro dia tudo recomeça numa nova casa de acolhida.

O ponto alto da festa se dá quando dois grupos se encontram. Juntos, eles caminham em direção ao presépio da festa, o ponto final da caminhada. Os versos são simples, sempre com rimas, para que o povo possa decorar e passar para seus filhos e filhas. Vejamos:

Era meia noite em ponto Bateu asa e cantou o galo Bateu asa e cantou o galo...
Bateu asa e cantou o galoQuando o Salvador nasceu Quando o Salvador nasceu...
Que Jesus dê vida e saúde Só voltamos para o ano Só voltamos para o ano...
Com a ordem dos três ReisVou parar meus instrumentosVou parar meus instrumentos...
Desejamos vida e saúde Para todos da cidade Para todos da cidade...
Era meia noite em pontoBateu asa e cantou o galo Bateu asa e cantou o galo...
Que Jesus dê vida e saúdeSó voltamos para o ano
Só voltamos para o ano.
Somente quando participamos é que entendemos o mistério da Fé que está em Jesus. A alegria é mesma alegria Pascal, alegria dos pobres. Muitos dirão inflamando-se com seus dogmas católicos que não passa de uma crença ingênua, outros mais moralista dirão que é uma coisa do demônio, pois se trata de uma festa da carne como danças, comidas e bebidas e, outros, a tratarão com simples espetáculo do folclore brasileiro, pois nosso mundo não suporta mais comportamentos como estes.

No entanto, prefiro ver a Folia de Reis sob um outro ponto de vista, tendo em vista, os atores desse processo de religiosidade popular que são pobres e trabalhadores. Homens, mulheres e crianças que louvam ao Deus da Vida com seus sonhos e esperanças sem entender de teologia, mas fazem teologia; sem entender de cultura, mas fazem a cultura; sem entender até mesmo de religião e seus dogmas, mas são pessoas profundamente religiosas. Com isso, podemos acreditar que o Menino Deus habita em nosso meio porque ainda o Reisado acontece na liberdade da expressão realizada por pastores do povo que não se diferenciam do próprio povo, pois o louvor é do próprio povo.

Claudemiro Godoy do Nascimento

segunda-feira, 27 de abril de 2009

Tempo de pós-neoliberalismo ou acomodação social?



Muitos autores, entre eles Emir Sader, estão anunciando uma nova fase na humanidade: o pós-neoliberalismo. Este anúncio se deve aos novos acontecimentos que estão acontecendo no mundo, principalmente, com a formação de novos espaços políticos e econômicos que avançam em direções contrárias ao pragmatismo do FMI e do Banco Mundial.

Sabemos que os últimos anos da década passada, final do séc. XX, as nações entraram no surto que se alastra por todo o planeta ainda hoje, denominado de mundialização, globalização ou se quisermos politizar a questão, neoliberalização das relações nacionais e internacionais. Tal concepção tornou-se hegemônica dos anos 90 até nossos dias buscando incentivar a economia e seu crescimento por meio da reativação do capitalismo. Nestas condições faz-se necessário compreender o neoliberalismo como instrumento político que busca redefinir o papel da sociedade e das relações entre sociedade civil e sociedade política.

O capitalismo produziu o neoliberalismo como movimento ideológico em escala mundial. Isto fica bem claro nas palavras de Perry Anderson: "Trata-se de um corpo de doutrina coerente, autoconsciente, militante, lucidamente decidido a transformar todo o mundo à sua margem, em sua ambição estrutural e sua extensão internacional".

A partir de uma concepção weberiana, pode-se chamar o neoliberalismo de "novo credo" que busca pregar e dogmatizar ideologicamente a verdade de um Estado Mínimo obviamente sem afirmar tal absurdo com tanta veemência. As características principais do novo credo são, portanto, a desestatização e suas conseqüências drásticas, entre elas, a mais dura é a perda da soberania nacional.

O neoliberalismo é um fenômeno distinto do velho liberalismo clássico do séc. XIX. Nasce com o intuito de combater o Estado Intervencionista ou de Bem-Estar Social. F. Hayek (um dos maiores teóricos do novo credo) já afirmava que o Estado de Bem-Estar destruía a liberdade dos cidadãos e a vitalidade da concorrência. Seu pensamento se baseia na possibilidade de crescimento e aceleração da economia por meio da valorização sem precendentes da desigualdade social. Valorizar a desigualdade significa legitimar a fome, a miséria, a doença, o desemprego estrutural, o analfabetismo, enfim, significa na concepção de Hayek legitimar e perpetuar tais desigualdades para que a sociedade possa perceber o crescimento da economia.

Dois momentos históricos são marcos para que possamos compreender o crescimento e o avanço do neoliberalismo como fenômeno global. O primeiro refere-se ao fato de Margareth Thatcher ter se tornado a primeira ministra da Inglaterra em 1979. O segundo refere-se ao fato de que Ronald Reagan, em 1980, ter se tornado Presidente dos Estados Unidos contrariando todas as expectativas das críticas. Neste sentido, pode-se afirmar que a Europa e a América do Norte com o capitalismo avançado viram no neoliberalismo e em sua ideologia o possível triunfo do mercado.

O neoliberalismo inglês determinou regras mercadológicas que foram importantes para que fosse efetivada sem riscos de se perder em si mesma. Isto significou algumas posturas como o crescimento da emissão monetária, altas taxas de juros, impostos sobre rendimentos altos, abolição dos fluxos financeiros, implementação de uma legislação anti-sindical, o corte de gastos sociais e as privatizações. Em contrapartida, o neoliberalismo norte-americano se preocupou com o comunismo na hoje ex-União Soviética.

Aqueles governos que pretendiam não seguir os caminhos dos Estados Unidos e da Inglaterra tiveram que se reorientar devido às pressões do mercado internacional que se tornou o grande regulador das políticas públicas pensadas e definidas pelos Estados Nacionais. Esta reorientação está voltada a uma política ortodoxa o que representa a busca incansável de um determinismo político de cunho classista que defende unicamente os interesses das classes dominantes já que a mesma se encontra em vários setores da sociedade.

A América Latina, com seu autoritarismo político e a concentração do poder nas mãos do executivo, teve a primeira experiência neoliberal no Chile com a ditadura do General Pinochet na década de 70. Depois veio a Bolívia em 1985 e nos anos 90, as políticas neoliberais foram adotadas por Menem na Argentina, Pérez na Venezuela e Fujimori no Peru. No Brasil, deu-se início nos governos de Collor de Mello e de Itamar Franco, mas se efetivou concretamente com o governo de Fernando Henrique Cardoso. Todos governos de centro-direita. Será que com a nova composição política de centro-esquerda na América Latina, Chile com Bachelet, Argentina com Kirchner, Brasil com Lula, Venezuela com Chávez, Bolívia com Morales, Uruguai com Vasquez e Peru com Toledo serão um sinal de um possível pós-neoliberalismo?

No Brasil, o neoliberalismo possui sua essência na velha e clássica concepção de liberalismo existente que se difere do liberalismo europeu. O liberalismo brasileiro assim como nos países da América Latina traz em sim simbolismos de um autoritarismo ditatorial. Francisco de Oliveira trabalha com a idéia de divisor de águas entre o velho liberalismo ditatorial e o surgimento do neoliberalismo que se dá com a efetivação do Plano Real no Governo Itamar Franco em 1994 que tinha como Ministro da Fazenda o então senador Fernando Henrique Cardoso que viria a ser por oito longos anos Presidente da República. Na verdade, a efetivação do Plano Real alavancou a candidatura de FHC que venceu o candidato da oposição Luis Inácio Lula da Silva em 1994 e em 1998. O Plano Real fez com que a economia se recuperasse em contrapartida fez com que o social piorasse. Para Francisco Oliveira o Brasil implementou o programa neoliberal desde 1993 e pretendeu realizar a "destruição da esperança e a destruição das organizações sindicais, populares e de movimentos sociais que tiveram a capacidade de dar uma resposta à ideologia neoliberal".

Assim aconteceu nestes últimos anos com a depreciação moral por parte de veículos do Governo e da Mídia com as organizações da sociedade civil como a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Para a elite era preciso fortalecer a organização da Força Sindical ligada ideologicamente às classes dominantes e a organização dos grandes proprietários de terra ligadas à Banca Ruralista no Congresso Nacional e à União Democrática Ruralista (UDR). Um fato curioso é que o neoliberalismo encontra sua legitimação via regime democrático, em Estados constituídos democraticamente. Por quê? Por que se usa de categorias como democracia e cidadania para se construir um mundo onde se cresce a desigualdade social e se amplia os bolsões de pobreza?

Podemos então dizer: o mundo se curvou ao neoliberalismo? É possível dizer que sim. Então como podemos pensar uma sociedade pós-neoliberal? A única soberania nacional que ainda resiste é Cuba que corre por todos os lados para sair do embargo econômico ditado pelos Estados Unidos. Os países do leste europeu sucumbiram diante de fracassadas guerras civis e incorpora-se ao rol dos países pós-socialistas, hoje intitulados de sociais democratas com o pensamento único. A China, com um regime marxista ortodoxo abriu suas fronteiras para o mercado internacional, pois compreendeu que era necessário participar da fatia do bolo senão poderiam estar isolados diante da nova onda modista que assume o pensamento universal. Enfim, praticamente todos os países como Estados Nacionais se curvaram sim diante do neoliberalismo o que não implica afirmar que não houve e não há resistências por parte das minorias, das ONGs, dos movimentos populares e sociais em relação ao paradigma adotado.

As experiências dos países que adotaram o neoliberalismo perceberam que ele poderia ser a nova hegemonia ideológica do mundo e das consciências (mesmo que estes não viessem a ter noção do que seja neoliberalismo) pelo viés da economia monetária. Até mesmo os maiores inimigos da concepção neoliberal, os sociais democratas, romperam as fronteiras e assimilaram o discurso assumindo tal política em seus governos. Neste sentido, outros fatores podem ser questionados nesta nova dimensão, os conceitos de esquerda e direita. Aqueles que antes eram considerados de esquerda assumem o poder, com mandatos populares, com a missão de efetivar o sonho de construir uma sociedade mais justa e solidária e deixam o discurso esquerdista de lado, pois são ou obrigados a assumir as regulações impostas pelas agências internacionais ou a assumem como proposta de governo tais práticas. A própria direita se vê perdida. Não sabe também qual é o seu papel. Não possuem a experiência de oposição e sentem saudades do poder que agora está em mão de opositores políticos e não mais opositores ideológicos.

Deter a inflação é a base do discurso neoliberal que com a deflação possibilita-se uma maior geração dos lucros para os que possuem o monopólio especulativo do mercado. Juntamente com a detenção da inflação outras práticas são estimuladas como a derrota do movimento sindical, a contenção de salários e o aumento das taxas de desemprego para que se possa efetivas políticas públicas paliativas que cria o que denomino de cultura da acomodação social por parte dos pobres e miseráveis que são atendidos por programas que não possuem nenhuma transformação na qualidade de vida, na busca pela dignidade e na ampliação da cidadania destas milhões de pessoas. Por cultura da acomodação social entende-se determinadas ações governamentais que estão a serviço do mercado a fim de efetivar políticas públicas de cunho assistencialista, paternalistas e paliativas gerando, portanto, reações nos atores que recebem tais medidas implantadas pelo Estado Mínimo. Tais reações podem ser identificadas como atitudes e valores que vão sendo construídas de forma a negar a participação sócio-política, a cidadania e dimensão da luta por justiça social o que se caracteriza por meio de uma certa apatia coletiva o que não deixa de ser a criação de uma nova cultura à qual denomino de acomodação social. As pessoas que se encontram em situação de miserabilidade não possuem anseios e sonhos de transformação social. Se na sociedade do séc. XIX até os anos 80, os pobres possuíram uma força histórica, hoje, estão condicionados a permanecer inertes nesta nova conjuntura neoliberal.

A única intenção é a de silenciar, calar e amordaçar a voz destes neo-oprimidos do séc. XXI que se acomodam com programa x e projetos y. Para o neoliberalismo as taxas de desemprego existente na sociedade de um determinado Estado se tornou um "mecanismo natural e necessário de qualquer economia de mercado eficiente" afirmam Pablo Gentili e Emir Sader.

A obtenção do êxito neoliberal se evidencia por meio da deflação, dos lucros, dos empregos para poucos e da contenção com gastos públicos, principalmente, salários. O êxito possui uma finalidade que é a de reanimar o capitalismo avançado mundialmente. As finalidades do programa neoliberais não foram alcançadas, pois não houve alteração na taxa de crescimento econômico. Os países que adotaram a cartilha lutam a cada ano para crescer economicamente seus países o que não vem acontecendo, pois grandes partes das rendas per capita são desviadas para o pagamento das absurdas parcelas de juros das dívidas externas. O fato de não haver crescimento econômico se deve ao próprio programa que é mais propício à especulação do que à produção. Assim, pode-se concluir que, muito se especulou e pouco se produziu. Outro fator importante deve-se ao Estado de Bem-Estar Social que, mesmo sendo atacado pelas políticas neoliberais, não teve sua importância reduzida no cenário conjuntural. O Estado de Bem-Estar Social aumenta os gastos sociais devido à taxa de desemprego e aumenta a cada dia a taxa de previdenciários. Isto ficou bem evidente no Brasil que buscou realizar uma Reforma Previdenciária ainda incerta em 2003 o que não impede que haja um continuísmo das velhas práticas bem conhecidas pela história da humanidade.

Mesmo com tais paradoxos da ideologia neoliberal, as políticas implantadas continuam fortes e sendo adotadas, em alguns casos recriadas e em outros reinventados pelos governos que já não sabemos se de direita ou esquerda, seja na Europa ou na própria América. Com a queda do ideal socialista na ex-União Soviética o neoliberalismo se fortalece ainda mais se tornando visão unilateral de alguns a única via, o único caminho dinâmico.

O neoliberalismo é uma doutrina hegemônica que alcançou êxito política e ideologicamente falando. Fracassou economicamente, alcançando êxito socialmente ao realizar os programas de incentivos à desigualdade. No Brasil, tais programas podem ser percebidos pelos Programas: Bolsa-Escola, Salário-Escola, Renda Cidadã, Moradia Popular, PETI (Programa de Erradicação do Trabalho Infantil), Comunidade Solidária, Universidade Solidária e tantos outros. Hoje, o Governo Federal cumprindo as agendas internacionais vem unificando os programas federais um único Programa Universal a todos os estados da Federação.

O que seria o pós-neoliberalismo? Não podemos vislumbrar o que seria, pois o fato da conjuntura política na América Latina ou na Ásia estarem voltadas para um pseudo-socialismo democrático não nos permite afirmar a superação da ideologia neoliberal. Ela se encontra em pleno êxito, pois os bancos crescem, as especulações se tornam cada dia mais promissor para o mercado e os governos sofrem com as imposições unilaterais das agências. Talvez então o pós-neoliberalismo seja uma expressão de efetivação, pois com certeza, já superamos a fase de implantação do neoliberalismo e o que vivemos é sua efetivação. Resta-nos saber quando iremos superar a cultura da acomodação que cresce a cada dia devido aos programas (que não são políticas públicas) neoliberais adotados pelos nossos governos "pseudos-democráticos e populistas".
Claudemiro Godoy do Nascimento

sábado, 25 de abril de 2009

Invasão ou ocupação de terras? Quem é o vilão nesta história...



Delze dos Santos Laureano[1]

Às vezes dá até preguiça de ficar explicando todo dia o óbvio. Mas, é recorrente o mesmo fato. Toda vez que noticiamos a ocupação de terras rurais ou urbanas por famílias empobrecidas, o senso comum fala mais alto. Usualmente vamos ouvir de muitos dos nossos interlocutores: “Não sou contra a distribuição de terra e casa para quem precisa, mas tem muito oportunista no meio desta gente que só quer tirar proveito e vender depois a terra que ganhou do governo!” Outras vezes ouvimos: “Não podemos admitir o uso da violência pelos sem-terra ou sem-teto. Por que eles não fazem como eu que trabalhei muito para ter a minha casa!” Podemos ouvir ainda: “O que sou contra é a invasão de terra que tem dono, a propriedade tem de ser respeitada. Precisamos de segurança jurídica!”

Desde já posso garantir que todas essas afirmações são falsas. Vemos que a falta de informação acaba levando as pessoas, mesmo trabalhadoras, a repetirem o discurso das elites, capitaneado pela mídia subserviente desses interesses. Para provar o que afirmo vou começar bem do começo. Primeiro, toda grande propriedade no Brasil é injusta. Desafio alguém que consiga me provar que qualquer latifúndio existente no Brasil tenha sido comprado com dinheiro ganho honestamente. Todas as grandes propriedades, rurais e urbanas, resultaram de vantagens obtidas junto ao poder do Estado, com a grilagem de terras ou é fruto de herança, algo que perpetua a desigualdade entre as pessoas. Podemos citar, por exemplo, as grandes áreas adquiridas durante o regime das sesmarias. Enquanto em Portugal o donatário tinha de prestar contas do que produzia na pequena extensão de terra que recebia, no Brasil a doação de terras virou motivo de escândalos.

Em 1850, já no Segundo Império, ao ser promulgada a primeira Lei de Terras – Lei 601/1850, a obrigação legal imposta a todos os donatários foi a de que medissem as suas terras e fizessem o registro nas Paróquias respectivas. Muitos donatários não o fizeram, portanto caíram em comisso, ou seja, as terras que possuíam, ou as que passaram a seus herdeiros, perderam a legitimidade inicial e são devolutas. São terras públicas pertencentes à União federal ou aos Estados membros, por força do que dispõe a Constituição de 1988 nos artigos 20, II, e 26, IV. Essas terras destinam-se prioritariamente à Política Agrícola e de Reforma Agrária. No Estado de Minas Gerais, a titulação das terras devolutas em nome do atual possuidor é limitada a 250 hectares na zona rural, e em 500 metros quadrados na zona urbana. Em nível federal o limite é de 100 hectares, conforme dispõe Lei 6383/76. Infelizmente, agora, o presidente Lula assinou a Medida Provisória 458/09, que permite a legalização/titulação das terras griladas na Amazônia. Os primeiros 1500 hectares podem ocorrer de forma gratuita, outros 1.500 hectares podem ser adquiridos por meio de licitação. Como vemos, ao invés de avanços, retrocede a legislação agrária no país, o que apenas torna mais injusta ainda a nossa Política Agrária.

Mas, vamos imaginar que o donatário, tendo recebido um imenso latifúndio tenha medido a terra e realizado o registro. Toda essa extensão de terra, desde a confirmação da sesmaria deveria estar cultivada ou aplicada a alguma atividade agrária e cumprindo a função social, simultaneamente nos aspectos econômicos, ambientais e sociais. Tudo conforme já previa o Estatuto da Terra em 1964 e agora nos moldes estipulados pelo Art. 186 da Constituição de 1988. Caso contrário, devem ser desapropriadas para fins de reforma agrária.

Não podemos nos esquecer que a maioria dos grandes proprietários ocultaram por muito tempo a real extensão de suas terras para não pagar o valor devido do ITR - Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural -, previsto na Constituição como um imposto progressivo, Art. 153, de modo a desestimular a manutenção de propriedades improdutivas. Como a bancada ruralista existente no Congresso Nacional tem um peso muito grande nas decisões, não há efetivamente a valorização deste comando constitucional. O valor arrecadado com o ITR no país inteiro é insignificante. A reforma agrária, que deveria ser financiada com essa arrecadação, conforme a destinação prevista no Estatuto da Terra, continua sistematicamente adiada.

Os índices de produtividade utilizados pelo INCRA – Instituto Nacional de Reforma Agrária - para a avaliação do cumprimento da função social do imóvel rural, sob o aspecto econômico, são ainda os de 1975, permitindo a manutenção das atividades do agronegócio de baixa produtividade, inclusive da pecuária extensiva, que é a atividade agrária mais atrasada no Brasil. Some-se que os aspectos sociais, como a existência de trabalho escravo, a degradação do meio ambiente e os conflitos pela posse da terra são sistematicamente ignorados pelo Poder Judiciário ao julgar o aspecto do cumprimento da função social, restando somente o critério da produtividade.

É bom refrescar na memória também a doação de extensas áreas de terras rurais às empresas nas décadas de 1960 a 1980. O discurso dos militares assentava-se no desenvolvimentismo para contrapor à reforma agrária. Frases como “Exportar é o que importa!” e “Plante que o João garante!” justificaram as doações de terras para empresas. Essas se beneficiavam da renúncia fiscal para “desenvolver” o campo. Em 1988 o legislador constituinte entendeu necessário fazer uma revisão de todas essas doações. O dispositivo inscrito no Art. 51 da ADCT – Atos das Disposições Constitucionais Transitórias - nunca foi cumprido pelo Congresso Nacional, restando mais essa dívida moral para com a sociedade brasileira. Todos os estudos realizados dão conta de ter ocorrido desde essa época o maior êxodo rural do mundo, expulsando do meio rural mais de 40% da população brasileira em pouco mais de uma década. A propriedade da terra tornou-se ainda mais concentrada, enquanto uma massa de trabalhadores passou a disputar um posto de trabalho na cidade. Porém as oportunidades de emprego tornaram-se cada vez mais escassas, principalmente para a mão-de-obra excedente do campo, despreparada para o trabalho na indústria e nos serviços urbanos.

Não posso deixar de mencionar ainda as artimanhas utilizadas para a tão conhecida grilagem de terras. Como os antigos registros basearam-se nas medidas calculadas “no olho” por pessoas que tinham experiência nesse trabalho, por vezes havia pequenos ajustes a serem feitos, posteriormente, nos registros dos imóveis. Todavia, as retificações das áreas, na maioria das vezes, são indícios claros de legalização de terras solapadas dos antigos possuidores, normalmente pessoas pobres que foram constrangidas/violentadas para abandonarem suas terras por não possuírem o título de domínio. Muitas vezes são terras devolutas, que devido à inércia dos governos, desde 1850, nunca foram discriminadas, permanecendo na posse de grandes empreendedores, como são as empresas eucaliptadoras em Minas Gerais. Considerando que os cartórios são negócios privados no Brasil, portanto controlados pelos donos do poder, muitos documentos foram forjados e não resistem a um levantamento idôneo da cadeia dominial do imóvel.

Finalmente, cabe falar do problema dos imóveis urbanos. A especulação imobiliária urbana é conhecida de norte a sul, de leste a oeste do Brasil. Todos sabem que terra não tem um valor intrínseco, senão as obras e o trabalho realizados sobre a sua superfície ou o serviço que pode ser vendido em razão do seu direito de uso. Muitos proprietários urbanos ganham dinheiro beneficiando-se dos melhoramentos públicos realizados na região. Assim, detêm uma área de terra, não porque precisam ou porque efetivamente podem dar uma função social ao imóvel, mas esperando a sua valorização. Só que essa valorização ocorre em razão da aplicação dos recursos de toda a sociedade e que, portanto, deveriam ser revertidos em benefício de toda a sociedade. Mecanismo para isso existe na lei, como, por exemplo, a cobrança do IPTU progressivo, expressamente previsto na Constituição federal, ou a contribuição de melhoria em razão de obra que supervalorize o imóvel. Porém, como a propriedade é vista como direito absoluto, intocável, ela é sempre protegida pelos titulares do poder, ainda que contra a dignidade da pessoa humana. Basta ver a quantidade de pessoas que reivindicam um pedaço de chão para morar ou para trabalhar, enquanto são mantidos os privilégios de uma minoria proprietária que descumpre o preceito fundamento da função social do imóvel. Por tudo isso, só resta indagar: será que é defensável em um país com área de 850 milhões de hectares de terra existirem pessoas sem lugar para morar?

Juridicamente, o direito à propriedade é um direito real oponível erga omnes. Trocando em miúdos, é um direito que ocorre entre um sujeito, aquele que é o titular do domínio, em face de todos os outros integrantes daquela sociedade, que devem respeitar esse direito. Entretanto, para este sujeito dono é exigido o cumprimento da função social. Essa é a condição sine qua non para que todos os demais, não proprietários, respeitem o seu direito de propriedade. Descumprindo a função social, perde o proprietário o critério objetivo inerente à propriedade que é o direito de posse. Portanto, um imóvel que não cumpre a função social está vazio. Ninguém tem a sua posse, como consequência lógica não pode o Poder Judiciário, baseado somente no registro, dar as garantias da ação possessória. A propriedade, aspecto subjetivo, somente garante ao detentor do título de domínio, o direito à indenização, nos termos do Art. 5º, XXIV da Constituição. Portanto, errado falar que houve invasão do imóvel pelos atuais ocupantes. Quem é o invasor é aquele que se diz proprietário sem legitimidade.
Mesmo tendo dito o óbvio, acredito que valha a pena, de vez em quando, refrescar a memória dos mais desinformados acerca da legitimidade das ações dos que lutam de forma organizada pelo direito à moradia, pela reforma agrária, pelo direito de ter trabalho e renda. Todos os direitos sociais são tão protegidos pelas leis brasileiras quanto o direito à propriedade. Ressalvado apenas que o direito à propriedade sofre a restrição fundamental da exigência do cumprimento da função social, conforme explicado acima. Melhor pensar como os anarquistas: “Toda propriedade privada é um roubo!” Toda especulação imobiliária deve ser considerada um roubo e não merece proteção jurídica.

Para concluir, entendemos que os direitos individuais, como o direito de propriedade, que são os direitos de liberdade, só podem ser invocados se considerarmos na mesma medida o direito de igualdade. Nesta esteira é que proponho: antes de defendermos os direitos dos proprietários temos o dever de defender os direitos da maioria da população que vive condenada a uma desigualdade gritante. Um processo de exclusão mesmo, em um país tão rico como o Brasil. Se depender da boa vontade dos políticos de plantão nada será feito senão as migalhas assistencialistas. As mudanças estruturais só vão ocorrer com a luta do povo organizado.

Essa a nossa bandeira ao apoiar os movimentos sociais que contribuem na construção da via democrática popular no Brasil.

Belo Horizonte, 24/04/2009.
Delze dos Santos Laureano, e-mail:
delzesantos@hotmail.com
[1] Advogada, mestre em Direito pela UFMG, doutoranda em Direito pela PUC-Minas, professora de Direito Agrário na Escola Superior Dom Hélder Câmara, em Belo Horizonte, MG; Integra a Rede Nacional dos Advogados Populares – RENAP -; e-mail: delzesantos@hotmail.com

quinta-feira, 23 de abril de 2009

A Mídia e o Poder do Atraso



As críticas do Poder do Atraso representado pelo Editorial do Jornal O Estado de São Paulo comprovam que ainda precisamos avançar e muito na construção de um país mais democrático e justo. É, no mínimo, uma falta de coerência jornalística lançar um editorial com observações nazi-fascistas que comprovam o ódio das elites para com a construção de uma nova ordem mundial pautada num mundo e numa sociedade para todos e todas e não mais para alguns poucos privilegiados.

No dia 21 de novembro de 2006 o Editorial do Jornal O Estado de São Paulo tinha como tema central: Mutirão pelo retrocesso. Na verdade, uma crítica elitista ao Mutirão por um Novo Brasil organizado pela CNBB e movimentos sociais durante a 4ª Semana Social Brasileira. Num primeiro momento, o Editorial tenta, num nível de senso comum exagerado, explicar uma definição acerca do Mutirão. O que vem a ser Mutirão? Segundo o Editorial, "a prática do mutirão se originou do esforço coletivo para auxiliar um dos membros da comunidade envolvida - mais comum nas comunidades rurais -, mas chegou ao espaço público como evento de trabalho concentrado, liderado ou incentivado pela Administração, para a solução de problemas acumulados. Antes, por exemplo, era a festa para a construção, num domingo, de um celeiro; depois passou a ser o esforço concentrado de combate a epidemias, de aceleração de processos judiciais, de construção de casas populares e solução "por atacado" de inúmeras lacunas sociais". E afirma que se assim fosse o Mutirão por um Novo Brasil poder-se-ia até ser compreensivo. E chama a CNBB de órgão famigerado. Logo a CNBB! Pois, segundo o Editorial este Mutirão não seria por um novo Brasil, mas pelo retrocesso do país.

O Editorial ainda considera um retrocesso o Mutirão retomar algumas bandeiras de luta para o povo brasileiro, chamando tais bandeiras de arcaicas, pois se trata de desenterrar o defunto de uma possível sociedade socialista. Chama o Mutirão e a 4ª Semana Social brasileira de "conclave" da Igreja Progressista que se assemelha aos discursos ultrapassados do PSTU. Mas entendamos, o que seria o retrocesso para essa Mídia jornalística compactuada com a elite? Para este Jornal, é retrocesso o Mutirão tentar rever a privatização da Vale do Rio Doce, realizar auditoria da dívida externa e incentivar a comunicação alternativa. Para o Editorial, a Igreja Católica sobre a influência dos movimentos populares como se acaso fosse crime os movimentos populares participarem da Igreja, uma verdadeira contradição histórica.
Por fim, o Editorial bizarro justifica o porquê se deve dar descrédito a CNBB e partem para a ignorância absurda ao afirmar que o motivo do crescimento dos movimentos pentecostais se encontra nessa "famigerada" atuação da CNBB. O ano passado algumas correntes tentaram criminalizar os movimentos sociais, agora tentam criminalizar a CNBB por estar, em comunhão com os movimentos populares, buscando soluções e alternativas para um novo Brasil, um Brasil realmente possível, com mais justiça social e mais redistribuição de renda. Como não poderia deixar de acontecer, criticam o MST e a Via Campesina por buscarem um maior espaço de participação nos Conselhos Gestores do Governo Lula.
A 4ª Semana Social Brasileira, a exemplo de outros fóruns populares de debate e experiências, quer ser um instrumento de coalizão das forças sociais que lutam por uma outra sociedade, pós-neoliberal, socialmente democrática e politicamente participativa. Daí quando o povo participa é taxado de atrasado, de fazer retrocesso.
Agora, pergunto: Quem de fato quer o retrocesso, o atraso? Na carta final da 4ª Semana Social Brasileira busca-se apostar no fortalecimento da Assembléia Popular como instrumento que dinamiza as forças sociais no plano internacional, nacional, regional e local. E, também, fala-se no fortalecimento das redes sociais que surgem a cada dia, no fortalecimento dos Fóruns como espaços de construção da cidadania e de uma democracia participativa e no fortalecimento da comunicação alternativa e dos novos atores sociais que entram em cena nesta sociedade ainda desigual.
Será que o combate a exclusão social e a toda e qualquer forma de injustiça social virou sinônimo de retrocesso? Será que combater as injustiças e com isso promover a construção democrática de uma sociedade mais democrática significa promover o atraso na sociedade brasileira? É claro que não.
O Editorial do Jornal O Estado de São Paulo se utiliza de um chavão para esconder os interesses escusos que estão por detrás de seus pensamentos. Falar que a CNBB e os movimentos populares promovem o retrocesso deve ser usado para encobrir o retrocesso das elites que não possui nenhum desejo de mudança e querem dar continuidade aos 500 anos de despotismo político, cultural e econômico na sociedade brasileira. Este editorial se parece com os velhos discursos ditatoriais neofascistas promovidos pelas ditaduras militares na América Latina nos anos 70 e 80.
Por que tanto medo do Mutirão por um Novo Brasil? Por que difamar a CNBB neste processo de construção da democracia? Por que criminalizar os movimentos populares que lutam por melhores condições de vida para a sociedade brasileira? O que pretendem com o lançamento deste Editorial? Tumultuar, desarticular os movimentos, impor suas verdades como absolutas, dar continuidade ao processo de desmoralização dos movimentos sociais e da Igreja Católica? O que pretendem as elites ao culpar a Igreja por perder adeptos para os movimentos pentecostais? Não seria a própria Teologia da Prosperidade a base de enriquecimento de determinados grupos sociais que financiam reportagens como essa? É no mínimo confuso tudo isso. Uma falta de clareza, de senso crítico, de senso científico e senso humanitário para com as pessoas que participam das lutas sociais.
Na verdade, não se pode esmorecer com tais comentários do atraso. É a Mídia que se encontra a serviço do Poder do Atraso. A Igreja e os Movimentos Sociais se encontram na contramão da história dominante. Portanto, como promover o retrocesso sendo que o retrocesso é promovido pelos grupos que financiam reportagens como essa. Confuso. Contraditório. É chegada a hora dos movimentos sociais e da Igreja reafirmarem suas ações em prol do Mutirão por um novo Brasil. Trabalhar ainda mais na promoção de espaços e encontros populares como a Assembléia Popular que resgata todo o dinamismo do verdadeiro sentido da democracia participativa.
No Calendário das Ações Coletivas do Mutirão por um Novo Brasil, a participação nos eventos é importante para que possamos construir esta sociedade que queremos. Assim, a luta em defesa do Rio São Francisco e contra a transposição, a luta contra a ALCA, a luta pela anulação da venda da Vale do Rio Doce, Marchas pela valorização do Salário Mínimo, a Campanha da Fraternidade com o eixo temático voltado para a Amazônia, as lutas pelas reformas (sindical, política, trabalhista e previdenciária), a luta pela auditoria sobre a dívida externa, o fortalecimento do Grito dos Excluídos, a luta pela terra e por uma reforma agrária sustentável e a realização da II Assembléia Nacional por um Novo Brasil no ano de 2007. Todas essas lutas são realmente democráticas e participativas. Com certeza poderão contribuir para a construção de novas plataformas para o Governo Lula.
O que mais nos deixa numa posição de tristeza é o fato de saber que a Mídia ainda se submeta ao Poder das elites, poder do verdadeiro atraso e retrocesso. A história não deixará de nos contar a verdade dos fatos e dos porquês. Resta a todos e todas que acreditam na força popular continuar apoiando as ações coletivas da 4ª Semana Social Brasileira, dos movimentos populares e da Igreja que buscam a dignidade para todos e todas, até mesmo, para os defensores da elite.
Claudemiro Godoy do Nascimento

terça-feira, 21 de abril de 2009

O que significa e o que não significa "ressurreição"



A pedido da IHU On-Line e do escritório da Fundação de Ética Mundial, organicamente inserido no Instituto Humanitas Unisinos – IHU, o teólogo alemão Hans Küng enviou o artigo a seguir, extraído do livro Credo: a profissão de fé apostólica explicada ao homem contemporâneo (Porto Alegre: Instituto Piaget, 1992), como uma contribuição para refletir o sentido da Páscoa no século XXI.

Hans Küng

A pedido da IHU On-Line e do escritório da Fundação de Ética Mundial, organicamente inserido no Instituto Humanitas Unisinos – IHU, o teólogo alemão Hans Küng enviou o artigo a seguir, extraído do livro Credo: a profissão de fé apostólica explicada ao homem contemporâneo (Porto Alegre: Instituto Piaget, 1992), como uma contribuição para refletir o sentido da Páscoa no século XXI.
Teólogo católico, Küng vive desde 1967 em Tübingen, onde leciona na Universidade. Por suas posições firmes diante de Roma, sofreu duras represálias, que em 1979 culminaram na cassação de sua autorização canônica para lecionar Teologia em instituição superior católica. A partir desse fato, criou o Instituto de Pesquisas Ecumênicas, como unidade autônoma em relação à Faculdade de Teologia Católica. Em 1990, ao encerrar sua carreira na Universidade, Hans Küng lançou o Projeto de Ética Mundial. Recentemente, em setembro de 2005, o papa Bento XVI surpreendeu a opinião pública mundial ao receber Küng para uma longa conversa amigável, na residência de Castel Gandolfo. Também no Brasil, a obra de Küng Projeto de Ética Mundial. Uma moral ecumênica em vista da sobrevivência humana (São Paulo: Paulinas, 1992) foi marco fundador de uma discussão que, pela premência dos fatos, frutificou rapidamente e continua a angariar apoio. Seguiu-lhe a publicação de Uma ética global para a política e a economia mundiais (Petrópolis: Vozes, 1999). A obra mais recente de Hans Küng, traduzida para o português é O princípio de todas as coisas. Ciências Naturais e Religião (Petrópolis: Vozes, 2007). Sua última obra intitula-se Umstrittene Wahrheit. Erinnerungen (München-Zurich: Piper, 2007), traduzida em várias línguas. A tradução espanhola acaba de ser lançada.
Em visita ao Brasil no mês de outubro de 2007, Hans Küng esteve na Unisinos apresentando seu projeto de Ética Mundial. Na ocasião, a IHU On-Line dedicou uma revista especial sobre a temática, intitulada Projeto de Ética Mundial. Um debate. A edição número 240, de 22-10-2007, está disponível no sítio do IHU (
www.unisinos.br/ihu).

Confira o artigo.

É claro que os testemunhos mais antigos e mais curtos do Novo Testamento não apresentam a ressurreição de Jesus como uma devolução da vida mundana – portanto, não estabelecem uma analogia com a devolução da vida pela mão dos profetas no Antigo Testamento. Não, do ponto de vista do horizonte de esperança apocalíptico-judaico trata-se nitidamente do enaltecimento do Nazareno assassinado e sepultado por Deus e para junto de Deus, para junto de um Deus que ele próprio chama “Abba”, Pai.
Afinal, o que significa “Auferweckung”, uma palavra que transmite uma imagem, que significa literalmente despertar do sono? Agora posso responder resumidamente à pergunta:

ï Ressurreição não significa o regresso a esta vida espaço-temporal. A morte não é anulada (não se trata da animação de um cadáver). Pelo contrário, a morte é definitivamente superada. Trata-se da entrada numa vida totalmente diferente, imperecível, eterna, “celestial”. A ressurreição não é um “fato público”.
ï Ressurreição não significa uma continuação desta vida espaço-temporal. O fato de se falar em “depois” da morte é enganador; a eternidade não é determinada por um antes nem por um depois temporais. Pelo contrário, significa uma nova vida na esfera de Deus, invisível, incompreensível, que rompe com as dimensões de espaço e tempo, simbolicamente designado por “Céu”.
ï Ressurreição significa positivamente o seguinte: Jesus não morreu para dentro do Nada. Pelo contrário, morreu para dentro de uma realidade última e primeira, inconcebível, englobante. Foi recebido por essa realidade verdadeira a que chamamos Deus. O que espera o Homem ao encontrar o seu Eshaton, o fim da sua vida? Não o Nada, mas sim Tudo, isto é, Deus. O crente sabe desde então que a morte é a passagem para Deus, é a retirada para junto de Deus, nesse domínio que supera todas as ideias, que nenhum Homem alguma vez viu, alheio ao nosso toque, entendimento, reflexão e fantasia! A palavra mistério é bem empregue para descrever a ressurreição para a vida nova, porquanto se trata do domínio primordial de Deus.

Dito de outro modo, a fé dos discípulos é – tal como a morte de Jesus – um acontecimento histórico (apreensível por meios históricos); por sua vez, a ressurreição através de Deus para a vida eterna não é um acontecimento histórico, visível e imaginável, nem biológico. Todavia, trata-se de um acontecimento real na esfera de Deus. O que significa isto? O que significa “viver”? Um olhar para o quadro da ressurreição de Grünewald adverte-nos para o fato de o ressuscitado não ser meramente um outro ser puramente celestial, continua possuindo o corpo e a alma do homem Jesus de Nazaré, o crucificado. E a ressurreição não transforma este homem num fluido indeterminado, fundido com Deus e com o universo. Este homem permanece também na vida de Deus, o homem determinado, inconfundível que foi, porém, sem as limitações espaço-temporais da sua figura mundana! Daí a transição do seu rosto para pura luz em Grünewald. Segundo os testemunhos das escrituras a morte e a ressurreição não anulam a identidade da pessoa, mas preservam-na numa forma inimaginável, transformada, numa dimensão completamente diferente.
A consequência? Atualmente para nós, com formação científica, tem que se falar claramente. Para que a identidade da pessoa seja preservada, Deus não necessita dos restos físicos da existência mundana de Jesus. Estamos perante a ressurreição para uma forma de existência totalmente diferente. Talvez a possamos comparar com a existência das borboletas, que saem do casulo da lagarta. Tal como esse ser vivo deixa a velha forma de existência (“lagarta”) e aceita uma nova forma de existência inimaginável, liberta e leve (“borboleta”), assim podemos imaginar o processo de transformação de nós mesmos através de Deus. Uma imagem. Não estamos obrigados a qualquer tipo de ideias fisiológicas de ressurreição.
Afinal a ressurreição está ligada a quê? Não ao substrato constantemente a mudar ou aos elementos deste corpo particular, mas sim à identidade dessa pessoa inconfundível. O caráter físico da ressurreição não exige – nem outrora nem hoje – que o corpo morto seja reanimado. Pois, Deus ressuscita o Homem numa nova forma, inimaginável, como consta do paradoxo de Paulo: como “soma pneumatikón”, de “caráter físico-espiritual”. Com estas palavras, de fato, paradoxais, Paulo pretendia transmitir-nos simultaneamente as seguintes duas mensagens: continuidade – porque o “caráter físico” representa a identidade da pessoa até ao momento, que se desfaz, como se a história vivida e sofrida até ao momento se tivesse tornado irrelevante – e, simultaneamente, descontinuidade – porque o “caráter espiritual” não representa simplesmente a continuação ou a reanimação do antigo corpo, mas sim a nova dimensão, a dimensão do infinito, que depois da morte de tudo o que é finito se transforma, tem seu efeito.

Leia mais...

Hans Küng concedeu outras entrevistas à IHU On-Line. Elas estão disponíveis na nossa página eletrônica (
www.unisinos.br/ihu).

Entrevistas:

• Jesus Cristo: A alegre e agradável mensagem de uma nova liberdade. Entrevista publicada em 21-12-2006;
• A dignidade humana em primeiro plano, a base da moral da Ética Mundial. Entrevista publicada em 20-10-2007;
• A dignidade humana em primeiro plano, a base da moral do Weltethos. Edição número 240, de 22-10-2007, intitulada Projeto de Ética Mundial. Um debate.

Fonte:
http://www.unisinos.br/ihuonline/index.php?option=com_tema_capa&Itemid=23&task=detalhe&id=1543

quarta-feira, 15 de abril de 2009

Estatuto-manifesto por uma pedagogia viva da liberdade



João Evangelista Rodrigues[1]

Fica decretado:

Art. 1º Que a vida seja um dom natural e a arte de viver, uma conquista permanente e inegociável. Que todas as crianças, jovens e adolescentes, todos os alunos, de todos os níveis de ensino, tenham direito à liberdade de expressão, de manifestar seus pensamentos, seus desejos, suas angústias, suas tristezas e alegrias diante da vida, da realidade de seu país e de sua escola.

Art. 2º Que o sol e a chuva, o vento e as estrelas, as geleiras e os mares, os rios e as floretas pertençam a todos os homens da Terra. Que todos os estudantes sejam sujeitos e cidadãos do mundo, e que a todos os seus direitos correspondam deveres, em um processo mútuo de participação responsável, crítica e transformadora, pela construção do conhecimento e defesa do patrimônio físico, espiritual e intelectual e da memória da escola em que estudam, da sociedade onde atuam e do País onde vivem.

Art. 3º Que o sonho não acabou e a história do mundo continua a ser escrita. Que mesmo em tempos de globalização, do advento de novas tecnologias e de um neoliberalismo, temporariamente triunfante, e de crise dos paradigmas científicos, éticos e estéticos, todos os estudantes tenham direito de pensar o mundo, de nele intervir e de sonhar com um futuro melhor para a humanidade.

Art. 4º Que o Universo seja a casa do saber. Que a escola deva ser um espaço confortável e agradável, propício à construção coletiva da liberdade e do conhecimento, através de uma convivência respeitável e de trocas sinceras e justas entre seus atores – estudantes, professores, gestores e funcionários - e dos diversos saberes e sabores que nela florescem.

Art. 5º Que a palavra luz habite o mundo e mova a vida. Que a sala de aula não se restrinja a um quadrilátero rígido e árido, mas se expanda mundo afora, para, generosamente, dar e receber, de maneira democrática e plural, superando a distância entre teoria e prática, as diversas formas de conhecimento, de arte e de cultura existentes no vasto e inesgotável campo do universo.

Art. 6º Que a escuridão prometa fantasmas e, ao mesmo tempo, realce mais o brilho das constelações. Que a palavra educação não floresça no quintal do medo. Não possa introjetar em seu coração, sob qualquer pretexto, as causas do medo, isto é, o próprio medo, protagonista de modelos pedagógicos técno-burocráticos, em detrimento de uma visão educativa ampla e integradora, humana, viva e libertária.

Art. 7º Que o homem seja o artífice do mundo em que vive. Que a arte e a cultura, a poesia e o prazer devam fazer parte do cotidiano das escolas, da mesma forma que o ar que respiramos, a água que bebemos e as linguagens através das quais nos comunicamos.

Art. 8º Que o mundo da linguagem seja a plumagem, a razão e o vôo dos pássaros. Que todos os estudantes tenham acesso à informação, ao conhecimento, à leitura, à arte e ao diálogo franco, em um ambiente lúdico, constituindo-se como sujeitos e agentes do processo de ensino-aprendizagem, em um mundo ameaçado pelo individualismo, pela violência, pela falta de ética na política, pelo desequilíbrio de poder no campo econômico-financeiro e geopolítico, pela destruição do Planeta pelo sistema capitalista e pelo aquecimento global.

Art. 9º Que a canção da vida seja composta em parceria e cantada por todos os seres de mãos dadas. Que a educação, em suas dimensões de ensino, pesquisa e extensão, não seja tratada como mercadoria, nem os estudantes, como clientes ou objetos regidos pela lei de mercado. Que o ato educativo seja fator de construção da cidadania, de emancipação e autonomia dos estudantes, empenhados em se prepararem para a vida e para sua inserção no processo produtivo, cada vez mais exigente, dinâmico e competitivo, em escala mundial.

Art. 10º Que a vida valha pelo que conhecemos e amamos. Pelo que descobrimos e inventamos. Que o sol possa ser azul, ou vermelho, amarelo ou laranja, conforme seja a imaginação, o sentimento e a criatividade de quem o admira e o transfigura através dos meios de comunicação e de qualquer outra forma de expressão – como cinema, fotografia, literatura, xérox, teatro, música, Internet, grafite, desenho, charge, colagem ou pintura. Fica decretado que todos os seres da Terra - animados ou inanimados- todos que andam, nadam, voam ou rastejam e mesmo a pedra inerte - todos sejamos irmãos e que tudo mereça respeito e proteção, de acordo com princípios e valores que norteiam a Ética do Cuidado. Todos habitamos a palavra Mundo, de todos e de qualquer mundo. Que todos sejamos mais serenos e sensatos, mais justos e sinceros.

Que todos sejamos felizes.

[1] Poeta, jornalista, compositor, fotógrafo; nasceu em Arcos, MG, perto das nascentes do Rio São Francisco. E-mail: jevare@uai.com.br

segunda-feira, 13 de abril de 2009

Terra de Deus, Terra de Irmãos



Há duas semanas foi aprovado o relatório da morte, um relatório do ódio e da opressão organizado pela Bancada Ruralista do Congresso Nacional tendo à frente os velhos oligárquicos do sistema fundiário brasileiro. Uma queda de braço vencida com facilidade, pois a bancada da CPMI da Terra tinha em sua maioria membros ligados à União Democrática Ruralista (UDR). Enquanto os outros membros, a minoria, pertenciam aos movimentos sociais do campo e organizações que apóiam a luta pela terra e pela Reforma Agrária como o MST e a Comissão Pastoral da Terra.

Foi relator da CPMI da Terra o Deputado João Alfredo (PSOL-CE) que retratou um mapa da situação de conflitos no campo ocasionados pela omissão do Estado em combater os desmandos de grupos de grileiros, fazendeiros, madeireiras, mineradoras etc. Além disso, fez um balanço das conquistas e lutas sociais em defesa da Reforma Agrária. Não se contendo com este relatório, a bancada ruralista elaborou um projeto alternativo por meio do Deputado Abelardo Lupion (PFL-PR) que fez o oposto do relator, indicando que o conflito parte dos movimentos sociais, em especial, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e de outros e propõe a criminalização dos movimentos sociais do campo, pois se trata de uma rede organizada de terrorismo que atua no Brasil com o objetivo de deslegitimar o direito “sagrado” da propriedade privada. Acusam os integrantes do MST e de outros movimentos de promover a guerra no campo e que todos os que apóiam o MST não passam de um braço nacional ou internacional do movimento. Na votação realizada, venceu o projeto alternativo da Bancada Ruralista que mais uma vez mostrou sua força política dentro do Congresso Nacional que continua sendo a Casa das Oligarquias.

A questão da terra é um problema no Brasil desde a chegada dos europeus. Os portugueses que aqui chegaram encontram uma terra livre, sem cercas, com muitos povos indígenas que viviam conflitos entre si, mas que jamais ousaram cercar um pedaço de terra e dizer: Isto é meu! Os portugueses desde o princípio criaram as Capitanias Hereditárias, uma grande extensão de Terras dadas a poucos que, por sua vez, distribuíam aos donatários que usavam a terra por um tempo, numa espécie de contrato. Criou-se o mito da propriedade privada. Mito de que todos e todas têm o direito a ela e de que sua origem é sagrada.

O mito da propriedade privada serve até hoje para justificar abusos como estes da CPMI da Terra, entre outros tantos já cometidos. Justifica-se o latifúndio por meio dela. O Deputado Abelardo Lupion (PFL-PR) em sua tese de defesa utilizou desse mito ao comparar que seu apartamento poderia ser “invadido” por grupos de sem teto. Dois profundos equívocos. Primeiro, a CPMI tratava de um assunto da Terra no âmbito rural, agrário. Segundo, a questão da moradia é assunto para outra CPMI já que está em moda formar várias CMPIs.

Com o desenvolvimento do mito da propriedade privada criou-se uma cultura de que todos os que possuem terras são seus verdadeiros donos. A Terra é dele e tudo o que estiver em cima da terra lhe pertence. Foi assim, que os senhores tratavam os escravos. Os escravos também eram propriedade privada junto com a terra em que pisavam. Os únicos que não aceitaram muito essa idéia foram os povos indígenas. Resultado dessa não aceitação da propriedade privada, um genocídio de povos indígenas nestes 505 anos de invasão lusitana e européia no Brasil. Um verdadeiro massacre de índios que nunca compreenderam bem os reais motivos de se cercar um pedaço de chão e dizer: Isto agora é meu! Isto me pertence! Para os povos indígenas, não existe o conceito de propriedade privada, mas o conceito de propriedade coletiva. A Terra é um bem de todos e todas, daí a necessidade de um cuidado terno e fraterno para com ela, pois é nossa Pacha Mama ou Gaia.

Assim, foram se formando os verdadeiros paraísos de latifúndios pelo Brasil. Os latifúndios são grandes extensões de terras devolutas, griladas ou mesmo compradas por grandes empresas multinacionais. Mas, em sua maioria, as terras são griladas de posseiros e de índios, ou mesmo, do próprio Estado. Engana-se quem pensa que os latifúndios são fazendas de pessoas que conseguiram com muito esforço do trabalho compra-la. Não é bem assim a verdade das coisas no meio rural.

Foi somente no século XX que os pobres começam a se organizar em sindicatos, movimentos sociais e populares e nas Ligas Camponesas com o objetivo de lutar pela posse da terra. Foi o que aconteceu, principalmente, dos anos 50 em diante. Isso gerou conflitos no meio rural. Conflitos políticos, culturais, religiosos e econômicos. Alguns entendem que são conflitos de interesses e de classes. Pode ser, mas a questão chave se encontra no surgimento de uma oposição ao modelo de propriedade privada tida como sagrada. Os excluídos começam a questionar quando se organizam nos movimentos sociais. E, resumidamente, foi assim que se deu todo o processo de construção do imaginário coletivo dos que defendem a propriedade privada enquanto latifúndio e o agronegócio e os que defendem a reforma agrária.

Na Campanha da Fraternidade de 1986 as comunidades refletiram sobre a questão da Terra – Terra de Deus, Terra de Irmãos – e nunca se negou que todos tenham o direito de acesso à posse da terra. No entanto, clamava-se por uma redistribuição justa e eqüitativa da Terra, ainda nas mãos de poucos. Passados 20 anos muito pouco se alterou neste cenário. Pode-se dizer que as questões agrárias tomaram rumos de um avanço do capitalismo no campo com a implantação do Agronegócio e do Hidronegócio. Agora, terra e água são produtos do latifúndio legitimado. Hoje, é muito mais fácil conseguir crédito rural para se plantar soja transgênica enquanto empresário do campo do que conseguir o mesmo crédito como agricultor familiar para se plantar sua roça.
Ainda não se tem um modelo ideal de Reforma Agrária baseado numa cultura da cooperação e da associação entre as famílias. Daí que o pequeno agricultor assentado depois de anos na luta debaixo da lona dos acampamentos para conseguir o pedaço de terra não consiga sobreviver no campo. A concorrência com as grandes e médias empresas rurais e suas tecnologias de ponta atropela qualquer tentativa do pequeno agricultor familiar. O governo, por meio do INCRA, quando cria novos assentamentos não investe na formação de uma nova cultura para os assentados. As pessoas, humanas, são jogadas na terra como gado é jogado no pasto sem nenhuma condição para se iniciar um projeto de desenvolvimento sustentável para as famílias e comunidades. O circulo vicioso continua o mesmo, de uma propriedade latifundiária cria-se várias propriedades privadas minifundiárias desconectadas entre elas. Sozinho, o pequeno camponês, luta com todas as forças para sobreviver. Daí o sensacionalismo da mídia e das elites em afirmar que os sem terras vendem suas terras, que ganham a terra e depois vendem, como se não existissem motivos concretos para casos de desistência. Desiste-se da terra porque há injustiça no meio rural.

De nada adianta se não investir na formação dos pequenos camponeses numa cultura do cooperativismo e do associativismo. Juntos, poderão ter mais força no mercado e na concorrência com o grande proprietário que faz de sua propriedade privada um enorme oásis de plantação de soja transgênica ou de reprodução da bovinocultura de corte para o abate.

No entanto, a CPMI da terra perdeu uma oportunidade de mudar este quadro de injustiça histórica no meio rural. Mais uma vez os defensores da “sagrada” propriedade privada venceram. O que isso significa? Significa que os latifúndios determinam as relações políticas no Congresso. Significa que o ódio da ganância venceu o amor da partilha e da redistribuição da terra. É um momento de Cruz no meio rural, para os movimentos sociais e populares. Um momento de redefinir as ações e planejar novas estratégias. Pois teremos a Páscoa e ela virá, com uma reforma agrária verdadeira onde os assentados e assentadas tenham a compreensão de que sozinhos nada poderão fazer, mas juntos, em comunhão pode-se transformar essa realidade injusta.

Mas, podemos afirmar juntos com o MST e outros movimentos sociais do campo que: Crime hediondo são as cercas e os jagunços que a protegem de seus verdadeiros donos, os que não a têm porque dela foram expulsos. Chamar os movimentos sociais e populares do campo de terroristas foi a gota d’água de um processo histórico que demonstra os mandos e desmandos do poder oligárquico de atraso existente no meio rural brasileiro. Mas, o grande problema é que os defensores dessa tese de criminalização buscam defender o dogma de que a propriedade privada é um direito universal e sagrada. A terra é um bem de todos os povos. Devemos romper com o mito de que o latifúndio seja propriedade privada legitimada pelo direito sagrado e universal. Daí a necessidade de formar uma nova cultura que permita o uso da terra como bem comum de todos com justa e eqüitativa redistribuição de seus bens.

As elites continuarão a atacar por meio da mídia as ações do MST e de outros movimentos sociais do campo. As oligarquias rurais continuarão seus mandos e desmandos fazendo com que a própria terra se volte contra suas atitudes de ecocídio. E os pequenos camponeses, com criminalização ou sem criminalização continuaram a lutar pela vida, a dançar a esperança, a construir História e, assim, na esperança do canto provar-se-á de que hediondo é a ganância e que crime é fazer de um direito social um direito sagrado, um dogma, a propriedade privada. Por isso, ao que parece, os movimentos sociais do campo continuaram a marchar rumo à Terra Prometida encantando a todos nós e cantando com voz forte sempre: Ocupar, Resistir e Produzir porque a Terra é Terra de Deus, Terra de Irmãos.

Claudemiro Godoy do Nascimento

Publicado em 2006.

sábado, 11 de abril de 2009

Moisés, Maomé, Jesus: Leituras do sagrado e fundamentalismos



Luiz José Dietrich

Terça-feira, 31 de março de 2009 - 15h12min

Todas as culturas produziram religião. As religiões respondem a necessidades fundamentais da humanidade. Dentro delas elaboram-se maneiras de enfrentar as chamadas grandes questões existenciais da humanidade: de onde viemos? Porque vivemos? O que acontece conosco ou para onde iremos após a morte? E existe alguma força que interfere no curso de nossas vidas pessoais e coletivas? As religiões ajudam as culturas a elaborarem sentidos para sua existência de forma a permitir a convivência social, a fornecer identidade e dignidade para os grupos humanos.
As religiões nascem e se desenvolvem a partir de práticas e propostas significativas para um determinado grupo de pessoas. Aparecem como uma coisa boa. Nascem de uma experiência de vida, de promoção da vida, de resgate da dignidade, de libertação, ou de paz e salvação. Surgem possibilitando uma elevação do patamar da qualidade de vida.
Mas, se é assim, porque a história nos relata tantos massacres e tantas guerras promovidas em nome de religiões? Aqui não estamos pensando nem abordaremos todas as religiões de modo genérico. Trataremos principalmente das três principais religiões de matriz semita que estão mais recentemente ocupando os noticiários e também são as que chegaram mais próximo de nós: Judaísmo, Cristianismo e Islamismo. Moisés, Jesus e Maomé. Não falaremos diretamente das religiões dos povos nativos do Brasil e do continente americano, nem das religiões africanas e afro-brasileiras. Mas podem ser consideradas indiretamente, já que muitas vezes na história, estas religiões foram atacadas e suas culturas e seus povos foram destruídos por representantes das religiões semitas. Mas se as religiões nascem como coisas boas para o povo, como "boas notícias", o que acontece no desenvolvimento e na compreensão das religiões para que elas passem a legitimar ataques, violências, até a morte, a guerra e a destruição de outros povos? Geralmente nos referimos a estas manifestações mais radicais como manifestações de "fundamentalismo". Mas precisamos também ter em mente que nem todo fundamentalismo expressa-se de formas truculentas e agressivas, e que ao falar sobre o fundamentalismo devemos utilizar o conceito no plural, uma vez que "existem diferentes fundamentalismos conforme os diferentes contextos culturais e religiosos em que nasceram e atuam os movimentos, grupos e organizações extremistas."1

Um equívoco epistemológico

Em primeiro lugar é necessário uma tomada de posição no sentido epistemológico. As religiões precisam ser compreendidas, também pelos seus próprios membros, de forma crítica, assumindo "conscientemente a evidência de que o ser humano e nenhum nível, tampouco em nível de conhecimento pode pretender ser o sujeito possuidor de um ponto de vista absoluto. Essa pretensão é absurda e contraditória. A condição insuperável da finitude faz dela uma ilusão impossível. [...] Na religião, como em qualquer outra área da experiência do conhecimento do ser humano, a finitude humana significa um estar obrigado ao exercício ou para a práxis da tolerância, que é também um exercício da escuta e da tolerância do outro." 2
Fornet-Betancourt segue afirmando que é um fato indubitável "que toda a cultura desenvolva sistemas referenciais próprios que se condensam em tradições que, por sua vez, sirvam como fronteiras para tudo o que resulta familiar e compreensível no interior dessa cultura. Não obstante esse fato de que uma cultura possa prover o ser humano que nela nasce de um horizonte com sentido, não suprime a condição de finitude. Esse horizonte é o horizonte de um ‘umbral' cultural, quer dizer, da ‘fronteira' traçada pelas experiências de uma grupo humano. Por isso nenhuma cultura pode pretender ignorar essa condição da finitude, e elevar sua tradição, seus sistemas de referências etc. à categoria da tradição humana sem mais. Nenhuma tradição humana pode dizer de si mesma que é a tradição humana." 3
Uma das causas da intolerância e da violência legitimadas com leituras para a guerra de seus referenciais religiosos é sem dúvida o esquecimento desta condição, principalmente no discurso que impera dentro de largos setores das religiões acima mencionadas. No caso do cristianismo isto acontece também porque "o ocidente, a partir de sua expansão sistemática desde 1492, não se entende como uma região, mas como eixo da história universal, e confunde desde então o universal com sua própria tradição."4 Mas outra causa esta relacionada com a posse de um livro sagrado, considerado "a Palavra de Deus", e ao qual se faz constante referência.

Livro sagrado: livro que salva, livro que mata

O que ocorre, pelo menos nas três religiões aqui analisadas, é que elas possuem um livro sagrado, uma Palavra de Deus. Por isso são também conhecidas como "religiões do livro". Sucede que ao longo de suas histórias, judaísmo, cristianismo e islamismo, elaboraram livros e num determinado momento estes livros foram ungidos com caráter de santidade e foram instituídos como livros sagrados. Este é outro aspecto que precisa ser muito bem pesado na questão que nos propomos analisar. Livros, mesmo aqueles escritos por uma só pessoa em um curto espaço de tempo, são por si só obras polissêmicas, abertas a várias possíveis linhas interpretativas. Quanto mais o serão a Bíblia Hebraica, a Bíblia Cristã e o Alcorão, posto que devem o texto com que atualmente apresentam-se para nós ao trabalho redacional de incontáveis autores por períodos de tempo que variam entre meia centena de anos (Alcorão), mais ou menos três séculos (Bíblia Cristã) e quase um milênio (Bíblia Hebraica). Além disso, no círculo hermenêutico devem ser consideradas também todas as possíveis contextualizações a partir das quais estes textos são lidos. Assim um livro como o Alcorão, por exemplo, pode ser lido "como um texto que fala de Deus e das coisas que um ser humano tem que fazer para estar em harmonia com Sua vontade; como um código normativo válido para as organizações sociais; como um texto de antropologia e de cosmologia; como um tratado de filosofia da história; e, por fim, como o código lingüístico fundamental da nova língua, o árabe." 5
Mas a existência de um livro sagrado e a relação muito específica que se estabelece entre o crente e o livro é um aspecto decisivo. Pois "a existência de um livro sagrado e a relação particularíssima que se vem a criar entre o crente e o livro são aspectos que contribuem decididamente para uma definição mais precisa do perfil deste movimento religioso. De facto, só podemos falar de fundamentalismo quando estão presentes os seguintes elementos:

a) Crença no princípio da inerrância do conteúdo do livro sagrado, sendo este último assumido no seu todo como uma totalidade de sentido e de significados que não podem ser seleccionados (eliminando, por exemplo, as partes mitológicas e aceitando as que apresentam, simultaneamente, uma validade histórica e universal) e interpretados livremente pela razão humana sob pena de uma deturpação da verdade que o livro sagrado contém;
b) Assunção do princípio da astoricidade da verdade e do livro' que a conserva; astoricidade significa que a razão não tem poderes para perspectivar historicamente a mensagem religiosa nem deve ousar adaptá-la as novas condições que se vão produzindo no decurso dos tempos;
c) Baseado nos dois anteriores princípios, a crença de que é possível deduzir do livro sagrado um modelo integral de sociedade perfeita - superior a qualquer forma de sociedade humana existente, conforme o princípio da superioridade da lei divina sobre a lei terrena - pois a soberania política é legitimada somente pela soberania divina;
d) Por fim, a referência a um princípio absoluto estimula a imaginar a possibilidade de decalcar a «cidade terrena» sobre o modelo ideal de sociedade apresentado nolivro sagrado, numa tensão entre o presente e o passado que atribui ao primado do mito da fundação da identidade de um grupo, ou de um povo inteiro, a função simultânea de assinalar o carácter absoluto do sistema de crenças a que cada crente deve aderir e o sentido profundo de coesão que une todos aqueles que a ela pertencem (a ética da fraternidade).6

Esta longa citação se impôs porque, segundo Pace e Stefani, "estes quatro elementos constituem as características distintivas do fundamentalismo e, por isso, podemos assumi-los como quadro que permite uma definição suficientemente ampla capaz de abarcar as várias formas do fenômeno em questão."7

Livro Sagrado: antes de tudo fruto da história humana

Acontece que estes livros permitem leituras para a paz como permitem leituras para a guerra por que nasceram dentro da história humana e são, por isso, marcados pelas virtudes e pelas sombras da humanidade.
Assim leituras para a guerra são também possíveis porque já no próprio processo de constituição tanto destas religiões como de seus livros, em certos estágios elas são apropriadas por determinados grupos sociais que as integram dentro de um projeto de poder. Num primeiro momento essas religiões existem no meio dos seus povos como tradição oral, viva na memória, nas histórias, nas práticas e nas instituições de suas sociedades. Nesse momento não estão ligadas a estruturas estatais, monárquicas e ou imperiais. Mas depois serão integradas dentro da organização sócio-política de um estado e/ou império. O que acontece é que será somente nesse estágio que essas religiões começam a ser codificadas em textos escritos. É nessas condições que a religião que circulavas entre o povo nas tradições orais ganhará expressão escrita. Torna-se livro. Na forma de livro, escrita, lei do rei, do estado, do imperador, a religião passará a desempenhar outros papéis, será, porém, orientada por uma hermenêutica do poder e para o poder. É claro que a codificação escrita não mata, não esgota e nem faz desaparecer a religião viva nas histórias orais e na memória do povo, que a instituiu, antes da escrita, como uma palavra boa, como uma Palavra de Deus, como uma religião. O que acontece é que estas duas formas dessas mesmas religiões coexistem, não só no meio do povo, mas também no corpo dos escritos. Coexistem nos textos, ora colidindo, ora competindo, ora excluindo uma a outra. Coexistem porque o livro para ser sagrado precisa nutrir-se do sagrado instituído antes pelo povo, precisa permitir que o povo se reconheça, se identifique com as palavras escritas, senão não terá a força almejada. Assim os textos sagrados, e a história destas três grandes religiões são como que atravessados por dois riachos de águas abundantes: de um deles, porém, se tiram águas para a guerra, do outro se tiram águas para a paz e para a vida.

Moisés

No caso da religião de Israel, embora o livro sagrado, inicie com a narrativa da criação do mundo, o surgimento do povo e da fé de Israel está ligado com o que ficou conhecido como o Êxodo: a libertação dos escravos da opressão do faraó do Egito. Hoje se sabe que se, por um lado, o grupo dos escravos que se libertaram da opressão egípcia não foi tão grande como se pode inferir de uma leitura mais apressada e superficial dos textos bíblicos - que fala em 600.000 homens, sem contar as mulheres e crianças, além de uma mistura de gente (Ex 12, 37-38) - por outro lado essa história apresenta-se grandiosa, engrandecida, inchada por conter dentro de si, nas linhas e entrelinhas muitas outras histórias de opressão e libertação. A história dos escravos tornou-se o paradigma preferido para denunciar processos de opressão e para contar experiências de libertação. Assim dentro do que hoje conhecemos como o "Êxodo" temos, por exemplo, também a experiência dos milhares de camponeses cananeus que se libertaram da exploração a que duplamente estavam submetidos nas mãos dos reis cananeus sob o poder do império egípcio. Estes, sem nunca terem pisado no Egito, também foram libertados da opressão egípcia, pois a terra de Canaã estava submetida ao império dos faraós.

Uma nova experiência de Deus

Esta experiência de libertação foi interpretada como fruto de uma intervenção de Deus. Um Deus completamente diferente dos outros deuses conhecidos. Um Deus dos oprimidos, que vê a miséria, ouve o clamor, conhece o sofrimento e desce para libertar os oprimidos (Ex 3,7-8). Essa experiência de Deus foi radicalmente diferente de todas as outras experiências de Deus que conheciam na época. Os Deuses mais poderosos, vencedores eram os deuses dos reis cananeus, dos faros egípcios. Havia entre os Deuses uma hierarquia semelhante a que havia entre as pessoas. Não se conhecia nenhum Deus libertador dentro das teologias até então existentes. Os escravos do Egito é que são portadores desta revelação: Existe um Deus contrário à opressão e à exploração. Um Deus que milita para libertar os oprimidos. Essa experiência de Deus é a pedra fundamental para a constituição de Israel, que se concretizará, após a derrubada das cidades-estado cananéias e com a libertação dos camponeses cananeus, no estabelecimento de uma sociedade tribal. Nas tribos a terra e o poder são partilhados, e nelas as relações são mediadas por leis coerentes com o espírito do Deus libertador, leis que impedem o acúmulo de terras e bens, a opressão e a exploração, e que promovem a solidariedade.

A Monarquia apropria-se do Deus dos camponeses

Israel tribal existe mais ou menos desta forma, sem poder centralizado, entre os anos 1250-1050 a.C. E entre 1050-950 a.C. processos de acumulação de riquezas e poder militar rompem essa sociedade, fazendo surgir uma elite que institui a monarquia e consolida as relações assimétricas. Pela longa duração desse processo podemos ver que ele não aconteceu sem resistência. A monarquia significa uma centralização de poder, que se faz explorando o trabalho e a produção dos camponeses. Estes são obrigados a entregarem parte de sua produção agro-pastoril, suas filhas e filhos para trabalharem nas obras e guerras decididas pela corte (1Sm 8,11-17). Essa grande modificação introduzida na sociedade exige uma legitimação, que será buscada construindo um grande templo ao Deus libertador a antiga cidade cananéia de Jerusalém e codificando uma teologia, uma espiritualidade e uma liturgia oficial a partir do culto mais importante entre as tribos, o culto ao Deus YHWH. E dali em diante Israel terá duas principais vertentes teológicas: uma a que vem da libertação e da partilha da terra, viva na memória, nos vários santuários tribais e entre as organizações camponesas remanescentes do tribalismo que, de tempos em tempos, é retomada e reapresentada pelos profetas; outra, a teologia oficial da corte e do Templo de Jerusalém, dos sacerdotes, escribas e funcionários do rei. É então somente a partir da instalação da monarquia, principalmente com Davi e Salomão que a Bíblia começará a ser escrita. Estas duas teologias estão entrelaçadas nos textos sagrados do Judaísmo.

Jesus

Algo semelhante sucede no movimento de Jesus. Jesus, como um reformador da fé de Israel busca resgatar os princípios e as práticas que deram origem ao povo de Israel. Bebe, inspira-se na vertente popular do Deus libertador do Êxodo, na partilha da terra e do poder experimentado no tribalismo, presentes nas mais genuínas tradições de Israel. De mãos dadas com os profetas de Israel, busca superar o legalismo, o ritualismo que se haviam instalado em Israel. Resgata as práticas de solidariedade acolhendo a pessoas pobres, doentes que por serem consideradas impuras eram excluídas do convívio social. Ataca as elites que desta forma se auto-legitimavam como justas e puras e cumpridoras da vontade de Deus. Anuncia o julgamento de deus para as elites e o Reino de Deus para os pobres. Seus seguidores organizados em pequenas comunidades domésticas nas periferias das grandes cidades do império romano, traduziram a proposta de Jesus para este contexto criando comunidades de partilha do pão, resgatando a dignidade dos pobres, dos sem-terra, sem-lugar, sem cidadania, sem-liberdade. Comunidades reunidas em torno de mesas onde se desfaziam todas as hierarquizações e discriminações existentes tanto nas comunidades judaicas mais tradicionais como na sociedade greco-romana em geral. Ali já "não se distingue mais o judeu do grego, o homem da mulher, o senhor do escravo" (Cf. Gl 3, 27 e 28). A mesa do pão partilhado, em nome do pai e do filho, torna a todos irmãos no mesmo espírito do Deus libertador, e a partir dela cresce uma ética que deve invadir todas as relações que perfazem o cotidiano dos seguidores e seguidoras de Jesus. Começam a viver concretamente aqui e agora os sinais do que será o Reino de Deus. Assim o cristianismo cresce e se espalha por todo o império. Para reforçar e defender esta prática surgem os escritos que comporão o novo testamento.
Porém dentro do cristianismo, emparedado pelas perseguições contra ele movidas pelo império romano no final do primeiro e no segundo século, crescem algumas correntes que acentuam o patriarcalismo, o espiritualismo e o ritualismo, onde a ética que o distinguia do império se desvanece, correntes que estão prontas para aceitar o imperador em seu meio, e assim certa linha do cristianismo, mais ou menos em torno do ano 400 d.C., torna-se a religião oficial do império romano. A partir dessa aceitação começamos a ter também duas formas de ver o cristianismo. Uma, mais coerente com a vida de Jesus e das primeiras comunidades e outra, instituída e organizada a partir do poder e integrada nos projetos de poder do império romano.
Um pouco diferente do processo do judaísmo é a questão dos escritos. Os escritos do Novo Testamento a estas alturas já estava elaborados. Mas a influência de Constantino se fará sentir na definição do Cânon cristão, na ordem dos livros dentro dele, e principalmente na estruturação do poder e da hierarquia dentro da igreja romana, e na elaboração teológica e na codificação doutrinal que se fará dentro desta nova hermenêutica cristã.
Essas duas vertentes perpassam a Bíblia e adentram na história cristã. Numa alinham-se os profetas, Jesus, e a fraternidade da mesa partilhada na igreja primitiva; da outra provêm a exigência dos sacrifícios, oferendas e tributos, o legalismo e o ritualismo que excluem os pobres e beneficiam e justificam as elites. Embora se refiram a um mesmo Deus, os conflitos entre eles revelam que seus Deuses são diferentes. Entretanto, estas diversas leituras incorporam-se ao texto bíblico e às teologias e fundamentam e possibilitam as várias leituras bíblicas para a paz e para a guerra existentes.

Maomé

Também no Islamismo se pode notar um hiato entre o "Alcorão oral" e o "Alcorão escrito". Em outras palavras, entre aquilo que através da viva voz do profeta foi considerado revelação de Deus; e a fixação do cânon da vulgata oficial escrita do Alcorão.
Maomé, nascido em torno de 570 d.C., órfão muito cedo tem uma infância miserável, é criado por um tio, onde com dificuldades torna-se mercador. Depois casa-se com Khadija, rica herdeira de dois casamentos anteriores, com ela Muhamad tem vários filhos, que morrem precocemente, e umas quatro filhas, entre as quais Fátima, que era a sua predileta. Este casamento dá a Muhamad uma posição social e também mais tempo para si. Assim, os relatos referem-se á suas primeiras experiências extáticas quando tinha em torno de 35 anos de idade. Os habitantes da Península árabe adoravam muitos deuses e deusa e estavam separados por diversas crenças concorrentes, além de entre eles haverem seguidores do Judaísmo e também do cristianismo. Essa diversidade de divindades e crenças, aliadas às diferenças sociais, à diversidade de interesses políticos e comerciais, tornava o mundo árabe uma enorme colcha de retalhos, altamente compósito, fragmentado, dilacerado e hierarquizado, fraco e dominado na relação com os povos vizinhos. Mas esta diversidade era fonte de lucro para a oligarquia que controlava a cidade de Meca, entregue ao comércio, ávida de lucros e prazeres. No meio de um povo sem identidade definida, dividido e sem força, situação que a alguns beneficiava, mas que para a maioria era causa de submissão e pobreza, Maomé começa a pregar a igualdade, o amor, o repúdio à usura e a certeza de uma vida melhor no além-túmulo para quem assim procedesse.
Nesse ambiente a pregação de Maomé é marcada por uma solidariedade ética que decisivamente ultrapassava os limites das tradicionais pertenças étnicas, clânicas e religiosas. Irmanam-se frente a Deus e a suas leis. Atraía sobretudo os descontentes com as injustiças sociais e desgostosos com as práticas das classes dominantes. Esta pequena comunidade ao ser ameaçada pelos grupos que não aceitam a nova proposta apresentada por Maomé, defende-se, inclusive militarmente. Isso já acontece após a Hégira, migração de Meca para Yathrib, depois será chamada de al Madinat - Medina, a cidade. Também assim haviam agido as tribos de Israel.
Apesar de muitos percalços e perigos Maomé se fortalece e sai vitorioso e em 630 chega ao poder em Meca. Longe de mostrar-se vingativo com aqueles que o combateram, age com moderação e magnanimidade perdoando inclusive chefes dos seus inimigos. Embora tenha destruído cerca de trezentos dos ídolos adorados em Meca, e proibido a reprodução das formas humanas, procurou modificar o menos possível os rituais religiosos, inclusive mantendo a peregrinação anual e o caráter sagrado da Caaba, incorporando assim o principal rito árabe pagão ao islamismo, e designando Meca como o novo ponto focal da oração muçulmana, dessa forma deixou de ser um dissidente para tornar-se um reformador que cheio de amor por sua cidade natal resolveu purificá-la e fazer dela o centro social e religioso do Islam.
Maomé morre em 8 de junho de 632. E é só depois de sua morte que se coloca a questão da sistematização da palavra sagrada num texto definitivo. Maomé não deixou nada escrito de seu próprio punho. A redação do Alcorão ocorrerá somente depois de sua morte, entre os anos 644-656, em um momento preciso no qual a estrutura do califado começa a mudar de estatuto para se tornar a estrutura de poder de poderosas famílias dinásticas. Os 114 capítulos (em árabe: suras) são tradicionalmente divididos entre os que remontariam ao período inicial do profeta em Meca e outros que derivariam de Medina. No texto a ordem está invertida com relação a ordem histórica que foi de Medina para Meca. Da mesma forma como na Bíblia as coisas não são tão pacíficas como parecem. A organização dos textos reflete um plano coerente com as necessidades de um poder que sente a exigência de fundamentar a autoridade às novas organizações sociais e políticas que estavam sendo criadas.
Os capítulos que seriam oriundos de Meca refletem a condição extática do profeta, numa linguagem profética cifrada, típica, reforçando mais os aspectos de uma religião de liberdade individual. E nos de Medina, predomina a forma de artigos de um código jurídico, em linguagem prescritiva, tanto para o ambiente jurídico quanto para o ambiente ritual, com o intuito de padronizar o comportamento das pessoas, funcional aos aparelhos de poder do tempo em que o Texto sagrado é redigido e dotado da unção oficial. Mas aí já começam também os tempos de império e de violência

Concluindo

Para um mundo de convivência fraterna entre os povos, onde predominem as leituras dos textos sagrados para a paz muito ainda há por avançar. É claro que não é só uma questão de mudança de hermenêutica, mas sem dúvida esta mudança é fundamental. Igualmente uma auto-compreensão menos arrogante, historicamente situada, de nossas tradições religiosas, o reconhecimento dos erros e um pedido de perdão pelas violências cometidas. Entretanto a efetividade destas atitudes se verificará com o desmantelamento das estruturas e doutrinas que tornaram possíveis e aceitáveis estas violências no passado. Se este desmantelamento não ocorrer o pedido de perdão será inócuo, pois as atitudes violentas continuarão aninhadas nos velhos suportes e neles encontrarão apoio para suas novas estocadas. É preciso contemplar no mistério da Vida este grande mistério ao qual a humanidade dá muitos nomes. Não devemos adorar um Deus tão pequeno que possa que caiba totalmente dentro de nossos livros sagrados, ou de nossas culturas e religiões. Quando se perde a noção do mistério acaba a humildade, entra a prepotência e vai se acabando a humanidade, porque afinal de contas humildade e humanidade tem ambas raiz na finitude do húmus. Mas acima de tudo esta atitude de superioridade nos leva a sermos algozes da vida, na inferiorização do outro, da outra, sejam estes humanos ou não, e não permite que experimentemos com profundidade o prazer se ser aprendizes e co-autores da grande sinfonia da vida em toda a sua tremenda e complexa diversidade.

Referências Bibliográficas

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Fonte:
http://www.cebi.org.br/noticia-impressao.php?noticiaId=1081