segunda-feira, 13 de abril de 2009

Terra de Deus, Terra de Irmãos



Há duas semanas foi aprovado o relatório da morte, um relatório do ódio e da opressão organizado pela Bancada Ruralista do Congresso Nacional tendo à frente os velhos oligárquicos do sistema fundiário brasileiro. Uma queda de braço vencida com facilidade, pois a bancada da CPMI da Terra tinha em sua maioria membros ligados à União Democrática Ruralista (UDR). Enquanto os outros membros, a minoria, pertenciam aos movimentos sociais do campo e organizações que apóiam a luta pela terra e pela Reforma Agrária como o MST e a Comissão Pastoral da Terra.

Foi relator da CPMI da Terra o Deputado João Alfredo (PSOL-CE) que retratou um mapa da situação de conflitos no campo ocasionados pela omissão do Estado em combater os desmandos de grupos de grileiros, fazendeiros, madeireiras, mineradoras etc. Além disso, fez um balanço das conquistas e lutas sociais em defesa da Reforma Agrária. Não se contendo com este relatório, a bancada ruralista elaborou um projeto alternativo por meio do Deputado Abelardo Lupion (PFL-PR) que fez o oposto do relator, indicando que o conflito parte dos movimentos sociais, em especial, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e de outros e propõe a criminalização dos movimentos sociais do campo, pois se trata de uma rede organizada de terrorismo que atua no Brasil com o objetivo de deslegitimar o direito “sagrado” da propriedade privada. Acusam os integrantes do MST e de outros movimentos de promover a guerra no campo e que todos os que apóiam o MST não passam de um braço nacional ou internacional do movimento. Na votação realizada, venceu o projeto alternativo da Bancada Ruralista que mais uma vez mostrou sua força política dentro do Congresso Nacional que continua sendo a Casa das Oligarquias.

A questão da terra é um problema no Brasil desde a chegada dos europeus. Os portugueses que aqui chegaram encontram uma terra livre, sem cercas, com muitos povos indígenas que viviam conflitos entre si, mas que jamais ousaram cercar um pedaço de terra e dizer: Isto é meu! Os portugueses desde o princípio criaram as Capitanias Hereditárias, uma grande extensão de Terras dadas a poucos que, por sua vez, distribuíam aos donatários que usavam a terra por um tempo, numa espécie de contrato. Criou-se o mito da propriedade privada. Mito de que todos e todas têm o direito a ela e de que sua origem é sagrada.

O mito da propriedade privada serve até hoje para justificar abusos como estes da CPMI da Terra, entre outros tantos já cometidos. Justifica-se o latifúndio por meio dela. O Deputado Abelardo Lupion (PFL-PR) em sua tese de defesa utilizou desse mito ao comparar que seu apartamento poderia ser “invadido” por grupos de sem teto. Dois profundos equívocos. Primeiro, a CPMI tratava de um assunto da Terra no âmbito rural, agrário. Segundo, a questão da moradia é assunto para outra CPMI já que está em moda formar várias CMPIs.

Com o desenvolvimento do mito da propriedade privada criou-se uma cultura de que todos os que possuem terras são seus verdadeiros donos. A Terra é dele e tudo o que estiver em cima da terra lhe pertence. Foi assim, que os senhores tratavam os escravos. Os escravos também eram propriedade privada junto com a terra em que pisavam. Os únicos que não aceitaram muito essa idéia foram os povos indígenas. Resultado dessa não aceitação da propriedade privada, um genocídio de povos indígenas nestes 505 anos de invasão lusitana e européia no Brasil. Um verdadeiro massacre de índios que nunca compreenderam bem os reais motivos de se cercar um pedaço de chão e dizer: Isto agora é meu! Isto me pertence! Para os povos indígenas, não existe o conceito de propriedade privada, mas o conceito de propriedade coletiva. A Terra é um bem de todos e todas, daí a necessidade de um cuidado terno e fraterno para com ela, pois é nossa Pacha Mama ou Gaia.

Assim, foram se formando os verdadeiros paraísos de latifúndios pelo Brasil. Os latifúndios são grandes extensões de terras devolutas, griladas ou mesmo compradas por grandes empresas multinacionais. Mas, em sua maioria, as terras são griladas de posseiros e de índios, ou mesmo, do próprio Estado. Engana-se quem pensa que os latifúndios são fazendas de pessoas que conseguiram com muito esforço do trabalho compra-la. Não é bem assim a verdade das coisas no meio rural.

Foi somente no século XX que os pobres começam a se organizar em sindicatos, movimentos sociais e populares e nas Ligas Camponesas com o objetivo de lutar pela posse da terra. Foi o que aconteceu, principalmente, dos anos 50 em diante. Isso gerou conflitos no meio rural. Conflitos políticos, culturais, religiosos e econômicos. Alguns entendem que são conflitos de interesses e de classes. Pode ser, mas a questão chave se encontra no surgimento de uma oposição ao modelo de propriedade privada tida como sagrada. Os excluídos começam a questionar quando se organizam nos movimentos sociais. E, resumidamente, foi assim que se deu todo o processo de construção do imaginário coletivo dos que defendem a propriedade privada enquanto latifúndio e o agronegócio e os que defendem a reforma agrária.

Na Campanha da Fraternidade de 1986 as comunidades refletiram sobre a questão da Terra – Terra de Deus, Terra de Irmãos – e nunca se negou que todos tenham o direito de acesso à posse da terra. No entanto, clamava-se por uma redistribuição justa e eqüitativa da Terra, ainda nas mãos de poucos. Passados 20 anos muito pouco se alterou neste cenário. Pode-se dizer que as questões agrárias tomaram rumos de um avanço do capitalismo no campo com a implantação do Agronegócio e do Hidronegócio. Agora, terra e água são produtos do latifúndio legitimado. Hoje, é muito mais fácil conseguir crédito rural para se plantar soja transgênica enquanto empresário do campo do que conseguir o mesmo crédito como agricultor familiar para se plantar sua roça.
Ainda não se tem um modelo ideal de Reforma Agrária baseado numa cultura da cooperação e da associação entre as famílias. Daí que o pequeno agricultor assentado depois de anos na luta debaixo da lona dos acampamentos para conseguir o pedaço de terra não consiga sobreviver no campo. A concorrência com as grandes e médias empresas rurais e suas tecnologias de ponta atropela qualquer tentativa do pequeno agricultor familiar. O governo, por meio do INCRA, quando cria novos assentamentos não investe na formação de uma nova cultura para os assentados. As pessoas, humanas, são jogadas na terra como gado é jogado no pasto sem nenhuma condição para se iniciar um projeto de desenvolvimento sustentável para as famílias e comunidades. O circulo vicioso continua o mesmo, de uma propriedade latifundiária cria-se várias propriedades privadas minifundiárias desconectadas entre elas. Sozinho, o pequeno camponês, luta com todas as forças para sobreviver. Daí o sensacionalismo da mídia e das elites em afirmar que os sem terras vendem suas terras, que ganham a terra e depois vendem, como se não existissem motivos concretos para casos de desistência. Desiste-se da terra porque há injustiça no meio rural.

De nada adianta se não investir na formação dos pequenos camponeses numa cultura do cooperativismo e do associativismo. Juntos, poderão ter mais força no mercado e na concorrência com o grande proprietário que faz de sua propriedade privada um enorme oásis de plantação de soja transgênica ou de reprodução da bovinocultura de corte para o abate.

No entanto, a CPMI da terra perdeu uma oportunidade de mudar este quadro de injustiça histórica no meio rural. Mais uma vez os defensores da “sagrada” propriedade privada venceram. O que isso significa? Significa que os latifúndios determinam as relações políticas no Congresso. Significa que o ódio da ganância venceu o amor da partilha e da redistribuição da terra. É um momento de Cruz no meio rural, para os movimentos sociais e populares. Um momento de redefinir as ações e planejar novas estratégias. Pois teremos a Páscoa e ela virá, com uma reforma agrária verdadeira onde os assentados e assentadas tenham a compreensão de que sozinhos nada poderão fazer, mas juntos, em comunhão pode-se transformar essa realidade injusta.

Mas, podemos afirmar juntos com o MST e outros movimentos sociais do campo que: Crime hediondo são as cercas e os jagunços que a protegem de seus verdadeiros donos, os que não a têm porque dela foram expulsos. Chamar os movimentos sociais e populares do campo de terroristas foi a gota d’água de um processo histórico que demonstra os mandos e desmandos do poder oligárquico de atraso existente no meio rural brasileiro. Mas, o grande problema é que os defensores dessa tese de criminalização buscam defender o dogma de que a propriedade privada é um direito universal e sagrada. A terra é um bem de todos os povos. Devemos romper com o mito de que o latifúndio seja propriedade privada legitimada pelo direito sagrado e universal. Daí a necessidade de formar uma nova cultura que permita o uso da terra como bem comum de todos com justa e eqüitativa redistribuição de seus bens.

As elites continuarão a atacar por meio da mídia as ações do MST e de outros movimentos sociais do campo. As oligarquias rurais continuarão seus mandos e desmandos fazendo com que a própria terra se volte contra suas atitudes de ecocídio. E os pequenos camponeses, com criminalização ou sem criminalização continuaram a lutar pela vida, a dançar a esperança, a construir História e, assim, na esperança do canto provar-se-á de que hediondo é a ganância e que crime é fazer de um direito social um direito sagrado, um dogma, a propriedade privada. Por isso, ao que parece, os movimentos sociais do campo continuaram a marchar rumo à Terra Prometida encantando a todos nós e cantando com voz forte sempre: Ocupar, Resistir e Produzir porque a Terra é Terra de Deus, Terra de Irmãos.

Claudemiro Godoy do Nascimento

Publicado em 2006.

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