Somos despertados pela alegria dos cantos e da alegria. O galo canta, o sol inicia sua aurora e nela já estão de pé os mensageiros da Folia. Todos os anos somos convidados a interpretar e compreender este fenômeno da religiosidade popular brasileira que estimula-nos a refletir a importância da cultura católica no imaginário popular, bem como a fé como fonte de vida para àqueles e àquelas que recebem a visita dos foliões em suas casas.
A Folia de Reis é uma festa popular herdada da cultura portuguesa que chegou ao Brasil no século XVIII e que assumiu características próprias principalmente entre os camponeses tornando-se uma manifestação religiosa de rara beleza com simplicidade. Em Portugal, em meados do século XVII, tinha a principal finalidade de divertir o povo, enquanto aqui no Brasil passou a ter um caráter mais religioso do que de diversão.
Lembro-me neste dia particular a cidade de Goiás, Itapirapuã, Itapuranga e Itaberaí onde pude conviver mais de perto com esta realidade. Podia-se ouvir de longe ou encontrar os grupos especiais de músicos, cantadores e rezadores trajando seus fardamentos coloridos (expressando a alegria) e entoando os versos que anunciam o nascimento do menino Jesus, o Verbo que se encarna e entre nós faz sua morada, e também, homenageando os Reis Magos (Baltazar, Belchior e Gaspar) num memorial bíblico “(...) vimos a sua estrela no Oriente, e viemos adorá-lo” (Mt 2, 2) ou como se canta em nossas comunidades: Vimos sua estrela no Oriente e viemos adorar o Rei d’gente. Estou, evidentemente, falando da Folia de Reis que durante os dias 24 de dezembro a 06 de janeiro, dia dos Santos Reis, faz sua peregrinação à procura de acolhida ou em direção a alguma comunidade que já se encontra à espera dos foliões. Os versos são preservados como tesouro de geração após geração pela tradição oral.
Sem dúvida, trata-se de uma festa religiosa popular que não se encontra no calendário litúrgico oficial da Igreja. É uma festa do povo e com o povo. Portanto, sem nenhuma interferência da hierarquia da Igreja, pois se trata de uma expressão da religiosidade laical. Mas, não é apenas um folclore, um dado cultural do passado. A Folia contêm toda uma mística e uma espiritualidade que nasce e brota do povo escolhido por Deus. Emociona-nos ver os tocadores com suas sanfonas, reco-recos, caixas, pandeiros, chocalhos, violões e violas e outros tantos instrumentos que seguem os foliões pela noite e dia adentro, em longas caminhadas, levando a “bandeira” ou estandarte de madeira ornado com símbolos religiosos. Todos possuem o maior respeito à bandeira, pois se trata de um símbolo religioso. São liderados por mestre e contra-mestres, figuras de relevância dentro da Folia, pois são os entendidos nos versos e quase sempre são os puxadores do canto.
Em alguns lugares existe a promessa dos foliões em cumprir por um período de sete anos consecutivos saírem com a Folia e arrecadarem em suas andanças donativos para realizarem anualmente a Festa de São Sebastião no dia 20 de janeiro, festa com cantorias e ladainhas versadas pelos benditos.
Os personagens somam ao todo doze pessoas. Todos os integrantes do grupo trajam roupas bastante coloridas, sendo eles: mestre, contra-mestre, três Reis Magos, palhaço e foliões.O Mestre e Contra-mestre é dono de conhecimentos sobre a manifestação, é quem comanda os foliões; O Palhaço com seu jeito cínico e dissimulado que deve proteger o Menino Jesus, confundindo os soldados de Herodes. O seu jeito alegre e suas vestimentas coloridas são responsáveis pela distração e divertimento de quem assiste à performance. Representando o mal, usa geralmente máscara confeccionada com pele de animal e vai sempre afastado um pouco da formação normal da Folia, nunca se adiantando à “bandeira”. Apesar de seu simbolismo é personagem alegre que dança e improvisa versos, criando momentos de grande descontração; Os Foliões são compostos de homens simples, geralmente de origem rural, são os participantes da festa, dão exemplo grandioso através de sua cantoria de fé; Reis Magos são três Reis Magos que fazem viagem de esperança, certos de encontrarem sua estrela.
O Alferes da Folia, chefe dos foliões, seguido dos palhaços do Reisado e de seus instrumentos, bate nas portas dos fiéis, de manhãzinha, para tomar café e recolher dinheiro para a Folia de Reis, oferecendo uma bandeira colorida, enfeitada com fitas e santinhos. Do lado de fora, os palhaços vestidos a caráter e cobertos por máscaras, representando os soldados do rei Herodes, de Jerusalém, dançam ao som do violão, do pandeiro e do cavaquinho, recitando versos. E a festa com orações, cantos, danças, comidas e bebidas vai até altas horas da noite e noutro dia tudo recomeça numa nova casa de acolhida.
O ponto alto da festa se dá quando dois grupos se encontram. Juntos, eles caminham em direção ao presépio da festa, o ponto final da caminhada. Os versos são simples, sempre com rimas, para que o povo possa decorar e passar para seus filhos e filhas. Vejamos:
Era meia noite em ponto Bateu asa e cantou o galo Bateu asa e cantou o galo...
Bateu asa e cantou o galoQuando o Salvador nasceu Quando o Salvador nasceu...
Que Jesus dê vida e saúde Só voltamos para o ano Só voltamos para o ano...
Com a ordem dos três ReisVou parar meus instrumentosVou parar meus instrumentos...
Desejamos vida e saúde Para todos da cidade Para todos da cidade...
Era meia noite em pontoBateu asa e cantou o galo Bateu asa e cantou o galo...
Que Jesus dê vida e saúdeSó voltamos para o ano
Só voltamos para o ano.
Somente quando participamos é que entendemos o mistério da Fé que está em Jesus. A alegria é mesma alegria Pascal, alegria dos pobres. Muitos dirão inflamando-se com seus dogmas católicos que não passa de uma crença ingênua, outros mais moralista dirão que é uma coisa do demônio, pois se trata de uma festa da carne como danças, comidas e bebidas e, outros, a tratarão com simples espetáculo do folclore brasileiro, pois nosso mundo não suporta mais comportamentos como estes.
No entanto, prefiro ver a Folia de Reis sob um outro ponto de vista, tendo em vista, os atores desse processo de religiosidade popular que são pobres e trabalhadores. Homens, mulheres e crianças que louvam ao Deus da Vida com seus sonhos e esperanças sem entender de teologia, mas fazem teologia; sem entender de cultura, mas fazem a cultura; sem entender até mesmo de religião e seus dogmas, mas são pessoas profundamente religiosas. Com isso, podemos acreditar que o Menino Deus habita em nosso meio porque ainda o Reisado acontece na liberdade da expressão realizada por pastores do povo que não se diferenciam do próprio povo, pois o louvor é do próprio povo.
Claudemiro Godoy do Nascimento
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