Por João Heliofar de Jesus Villar (FSP, 04/01/2010, p. A3)
PLEITO ESTÁ DESENHADO PARA NÃO FUNCIONAR.
Quem atua na fiscalização das eleições sabe que todo o sistema foi desenhado para não funcionar e que a fiscalização é impossível
O escândalo envolvendo o governo do Distrito Federal gerou diversas manifestações acerca da causa da corrupção no país. A impunidade é uma das mais lembradas. Ninguém duvida de que a impunidade é um câncer, mas o diagnóstico de quem vê aí o motor da corrupção está distorcido. Impunidade há em todo lugar, tanto no narcotráfico quanto no homicídio, e não é um mal específico do assalto aos cofres públicos.
Quem acompanha de perto o jogo político e as campanhas eleitorais não tem dúvida de qual é a fonte da roubalheira oficial no Brasil. O ovo da serpente é o financiamento da corrida eleitoral. Como procurador regional eleitoral no Rio Grande do Sul, tive a oportunidade de atuar em quatro eleições e refletir demoradamente sobre essa loucura que é o processo das eleições no Brasil.
Quem trabalha na fiscalização dos pleitos sabe que o sistema está desenhado para não funcionar. Não se trata de fiscalização ineficiente e sim de fiscalização impossível. Num Estado como São Paulo, participam das eleições gerais milhares de candidatos, cada um com sua campanha, suas contas e seu financiamento. Nesse quadro, que fiscalização seria possível? Não se trata de uma campanha por partido, como ditaria a racionalidade e como acontece na maioria dos países da Europa. Também não é uma campanha por distrito, como ocorre nos Estados Unidos, em que o partido possui apenas um candidato por distrito.
A campanha no Brasil é uma geleia geral, com mais de uma centena de candidatos por partido, cada um com sua campanha, brigando contra todos, inclusive contra correligionários.
O quadro é de uma irracionalidade inacreditável. Na verdade, cada candidato é uma campanha eleitoral, e o partido atua como mero coadjuvante.
Pois bem, impossível a fiscalização, surge um outro agravante. As campanhas são caríssimas. Um candidato a deputado federal, por exemplo, que pretenda se eleger e fazer uma campanha competitiva, precisará despender uma soma enorme de recursos. Há quem fale em quinhentos mil reais (os dados não são exatos, pois não se dispõe de estatísticas confiáveis, na medida em que ninguém pode afirmar que os recursos declarados espelhem a realidade). Como um candidato, com renda mediana, reunirá essa soma de recursos para se lançar numa aventura de sucesso incerto?
Como se vê, os candidatos dependem desesperadamente de recursos para competir em igualdade de armas com os demais, num sistema de fiscalização inviável. Um candidato não pode contar com o seu partido. Resultado: a necessidade absurda de obter recursos do setor privado torna a via lícita de arrecadação estreita demais, razão por que há um consenso silencioso na classe política de que o caixa dois é uma necessidade inafastável na vida real e de que esta nada tem a ver com o desenho platônico das regras que regulam a arrecadação de recursos na legislação eleitoral.
Pois bem, o caixa dois corre solto e o sistema permite que a classe política considere o artifício moralmente justificável: "Sou uma vítima do sistema". Não é de graça que todo agente público, flagrado com dinheiro na cueca ou na meia, usa sempre a mesma defesa, "a propina se destinava ao caixa de campanha". O leigo se pergunta: "Como alguém pode se defender de um crime confessando outro delito?". É que o caixa dois seria, por assim dizer, inevitável. É ilícito mas não tem nem a sombra da reprovabilidade moral da corrupção. Caixa dois na campanha é como contrabando de sacoleiro, previsto na legislação penal, mas tolerado por todos. É algo, alguém diria, que só os hipócritas condenam, pois quem vive na vida real da política sabe que sua prática é necessária. E mais, o dilema é invencível.
Ou se admite o caixa dois ou se inviabiliza a competitividade na eleição. O duro é que o caixa dois não é assim tão inocente. Cria um vínculo maldito entre financiador e candidato, pois a dívida que surge na campanha será paga na administração. Como o eleito vai tratar com isenção um empresário que alimentou substancialmente sua campanha? E o vínculo do financiamento eleitoral tende a se converter na promiscuidade da administração. E tudo será justificado pela necessidade de se financiar futuras corridas eleitorais. E o círculo vicioso não terá fim, especialmente porque a generosidade do financiador, estimulada pelos privilégios da administração, tende a se avantajar, e os recursos públicos e privados, agora já indistinguíveis, financiarão, além da campanha, um carro novo, um iate, uma amante etc. etc.
O que fazer? Esse quadro não vai mudar até que a sociedade se conscientize de que o sistema eleitoral está sob maldição. Ou se muda o sistema ou se mantém intacto o ovo da serpente.
PLEITO ESTÁ DESENHADO PARA NÃO FUNCIONAR.
Quem atua na fiscalização das eleições sabe que todo o sistema foi desenhado para não funcionar e que a fiscalização é impossível
O escândalo envolvendo o governo do Distrito Federal gerou diversas manifestações acerca da causa da corrupção no país. A impunidade é uma das mais lembradas. Ninguém duvida de que a impunidade é um câncer, mas o diagnóstico de quem vê aí o motor da corrupção está distorcido. Impunidade há em todo lugar, tanto no narcotráfico quanto no homicídio, e não é um mal específico do assalto aos cofres públicos.
Quem acompanha de perto o jogo político e as campanhas eleitorais não tem dúvida de qual é a fonte da roubalheira oficial no Brasil. O ovo da serpente é o financiamento da corrida eleitoral. Como procurador regional eleitoral no Rio Grande do Sul, tive a oportunidade de atuar em quatro eleições e refletir demoradamente sobre essa loucura que é o processo das eleições no Brasil.
Quem trabalha na fiscalização dos pleitos sabe que o sistema está desenhado para não funcionar. Não se trata de fiscalização ineficiente e sim de fiscalização impossível. Num Estado como São Paulo, participam das eleições gerais milhares de candidatos, cada um com sua campanha, suas contas e seu financiamento. Nesse quadro, que fiscalização seria possível? Não se trata de uma campanha por partido, como ditaria a racionalidade e como acontece na maioria dos países da Europa. Também não é uma campanha por distrito, como ocorre nos Estados Unidos, em que o partido possui apenas um candidato por distrito.
A campanha no Brasil é uma geleia geral, com mais de uma centena de candidatos por partido, cada um com sua campanha, brigando contra todos, inclusive contra correligionários.
O quadro é de uma irracionalidade inacreditável. Na verdade, cada candidato é uma campanha eleitoral, e o partido atua como mero coadjuvante.
Pois bem, impossível a fiscalização, surge um outro agravante. As campanhas são caríssimas. Um candidato a deputado federal, por exemplo, que pretenda se eleger e fazer uma campanha competitiva, precisará despender uma soma enorme de recursos. Há quem fale em quinhentos mil reais (os dados não são exatos, pois não se dispõe de estatísticas confiáveis, na medida em que ninguém pode afirmar que os recursos declarados espelhem a realidade). Como um candidato, com renda mediana, reunirá essa soma de recursos para se lançar numa aventura de sucesso incerto?
Como se vê, os candidatos dependem desesperadamente de recursos para competir em igualdade de armas com os demais, num sistema de fiscalização inviável. Um candidato não pode contar com o seu partido. Resultado: a necessidade absurda de obter recursos do setor privado torna a via lícita de arrecadação estreita demais, razão por que há um consenso silencioso na classe política de que o caixa dois é uma necessidade inafastável na vida real e de que esta nada tem a ver com o desenho platônico das regras que regulam a arrecadação de recursos na legislação eleitoral.
Pois bem, o caixa dois corre solto e o sistema permite que a classe política considere o artifício moralmente justificável: "Sou uma vítima do sistema". Não é de graça que todo agente público, flagrado com dinheiro na cueca ou na meia, usa sempre a mesma defesa, "a propina se destinava ao caixa de campanha". O leigo se pergunta: "Como alguém pode se defender de um crime confessando outro delito?". É que o caixa dois seria, por assim dizer, inevitável. É ilícito mas não tem nem a sombra da reprovabilidade moral da corrupção. Caixa dois na campanha é como contrabando de sacoleiro, previsto na legislação penal, mas tolerado por todos. É algo, alguém diria, que só os hipócritas condenam, pois quem vive na vida real da política sabe que sua prática é necessária. E mais, o dilema é invencível.
Ou se admite o caixa dois ou se inviabiliza a competitividade na eleição. O duro é que o caixa dois não é assim tão inocente. Cria um vínculo maldito entre financiador e candidato, pois a dívida que surge na campanha será paga na administração. Como o eleito vai tratar com isenção um empresário que alimentou substancialmente sua campanha? E o vínculo do financiamento eleitoral tende a se converter na promiscuidade da administração. E tudo será justificado pela necessidade de se financiar futuras corridas eleitorais. E o círculo vicioso não terá fim, especialmente porque a generosidade do financiador, estimulada pelos privilégios da administração, tende a se avantajar, e os recursos públicos e privados, agora já indistinguíveis, financiarão, além da campanha, um carro novo, um iate, uma amante etc. etc.
O que fazer? Esse quadro não vai mudar até que a sociedade se conscientize de que o sistema eleitoral está sob maldição. Ou se muda o sistema ou se mantém intacto o ovo da serpente.
JOÃO HELIOFAR DE JESUS VILLAR, 47, é membro do Ministério Público Federal e atua na Procuradoria Regional da República na 4ª Região. Foi procurador regional eleitoral do Rio Grande do Sul de 2004 a 2008.
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