segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Uma Igreja tradicionalista nunca será criativa


Luiz Carlos Susin

“Creio que há um esforço enorme em torno de um sonho impossível: a restauração do catolicismo europeu de tempos que não voltam porque a cultura da Europa, atualmente, de modo geral, tem muita estética, mas pouca alma de verdade, e virou turismo e savoir vivre”. A opinião é do teólogo Luiz Carlos Susin e foi expressa na entrevista que segue, concedida, por e-mail, à IHU On-Line. Para ele, a novidade da Igreja Católica reside justamente em um aspecto já conhecido: o tradicionalismo. Entretanto, ele faz um alerta: “Há uma dose de violência institucional junto com o tradicionalismo, certa embriaguez de poder, ainda que frequentemente seja apenas simbólico”. Isso cria, justifica, “armadilhas a médio prazo, como estas aparentes surpresas em torno de desequilíbrios humanos elementares porque estavam até certo ponto ‘sublimados’”. E acrescenta: “Numa centralização muito hierárquica, acontece também uma disfunção de comunicação entre o centro, o topo, e as bases, a periferia. Vivemos uma época em que oficialmente tudo parece se tornar melhor disciplinado, mas, na verdade, há muito desencontro vital”.
Susin cursou mestrado e doutorado em Teologia na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, Itália. Leciona na PUCRS e na Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana – ESTEF, em Porto Alegre. É autor de inúmeras obras, entre as quais citamos Teologia para outro mundo possível (Paulinas, 2006).

Confira a entrevista.
IHU On-Line – O pontificado de Bento XVI está prestes a completar cinco anos. Que perspectivas esse papado abre para o futuro da Igreja no século XXI?
Luiz Carlos Susin – Cinco anos foi o tempo do pontificado de João XXIII . Esta comparação é quase inevitável. Aquele Papa foi confiante e audaz. Este é prudente, e aprendeu da sua própria teologia o método da suspeita. Mas há tempos em que o papado faz história, e há tempos – que são mais frequentes - em que a história acontece nas periferias das instituições. A menos que aconteçam alguns fatos ainda mais graves do que os que vieram sacudindo os últimos tempos, Roma não está para peixe. Creio que há um esforço enorme em torno de um sonho impossível: a restauração do catolicismo europeu de tempos que não voltam porque a cultura da Europa, atualmente, de modo geral, tem muita estética, mas pouca alma de verdade, e virou turismo e savoir vivre. A parte mais viva da Europa está entre os imigrantes, mesmo católicos. Mas grande parte não é católica.

IHU On-Line – O ano de 2009 foi repleto de “polêmicas” envolvendo a Igreja de Roma: a revogação da excomunhão dos lefebvrianos, os escândalos na Irlanda e entre os Legionários, as investigações sobre religiosas nos EUA, a questão dos anglicanos etc. Qual a sua avaliação dos caminhos que a Igreja vem tomando ultimamente?
Luiz Carlos Susin – Até mesmo vaticanistas mais conservadores, como Sandro Magister, reconhecem que a novidade vem pelo lado tradicionalista: são oficialmente bem-vindos e ganham apoio e prestígio. Mas por eles vieram também os constrangimentos da última década. Há uma dose de violência institucional junto com o tradicionalismo, certa embriaguez de poder, ainda que frequentemente seja apenas simbólico. E isso cria armadilhas a médio prazo, como estas aparentes surpresas em torno de desequilíbrios humanos elementares porque estavam até certo ponto “sublimados”. Numa centralização muito hierárquica acontece também uma disfunção de comunicação entre o centro, o topo, e as bases, a periferia. Vivemos uma época em que oficialmente tudo parece se tornar melhor disciplinado, mas na verdade há muito desencontro vital.

IHU On-Line – Diversos analistas apontam que o grande embate da Igreja atual, sob o papado de Bento XVI, é contra o secularismo. Em sua opinião, o secularismo é também uma preocupação da Igreja latino-americana?
Luiz Carlos Susin – O secularismo é um fenômeno “ocidental” muito ligado às contradições da própria Igreja. Lembra o título do último livro de Ivan Illich, A corrupção do melhor engendra o pior. Por isso, quanto mais se vai para o centro da instituição, mais se percebe perto dela o clima de secularismo, que vai além do reconhecimento da autonomia das realidades sociais – a secularidade do mundo – mas um clima de mútuos ressentimentos, acusações e cobranças. Quanto mais se vai para as periferias menos se sente este clima. Na América Latina, isto é sentido de forma vertical: o povo que está na base integra melhor seu cotidiano com sua fé, mas quando se sobe na sociedade, são mais marcantes as incongruências entre fé e vida social, que chega por aqui também a uma dissociação e até a um secularismo eticamente cínico.

IHU On-Line – Outra tendência da Igreja é o silenciamento ou censura de teólogos ou padres ativistas, como recentemente o jesuíta John Haight e o Maryknoll Roy Bourgeois. O que isso simboliza para o debate teológico e a missão social da Igreja?
Luiz Carlos Susin – Teólogos, religiosos e militantes sociais não podem ser “teólogos de corte”, nem “cabras mandados”, pois precisam de liberdade evangélica para interpretar e para criar. Embora devam lealdade e obséquio ao magistério da Igreja e à comunidade eclesial como um todo, precisam manter a parrésia, essa coragem profética pela qual acabam sempre pagando algum preço inclusive dentro da própria Igreja. Giovanni Batista Montini, que seria mais tarde Paulo VI, quando era arcebispo de Milão, sabendo que tinha sido afastado de Roma por manobras na Cúria, deixou escrito uma intrigante afirmação: “Às vezes se sofre pela Igreja, e às vezes se sofre também pelas mãos da Igreja”. Mais do que o silêncio de teólogos, o que nos faz sofrer na América Latina é o silêncio a respeito dos inúmeros mártires que deram suas vidas em nosso continente.

IHU On-Line – O conceito de “minoria criativa” também saiu dos lábios do Papa ao se referir à Igreja com relação ao seu futuro. Qual a sua opinião sobre essa perspectiva de Igreja na sociedade contemporânea?
Luiz Carlos Susin – “Minoria criativa” é uma realidade positiva na sociedade em diversos níveis, desde lideranças populares até lideranças dos países emergentes. Na Igreja, foi uma minoria criativa que liderou o Concílio Vaticano II e também a mais famosa e eficaz Assembleia de bispos da América Latina, em Medellín. Num mundo pluralista, com múltiplas tradições religiosas, reconhecer-se uma entre as outras tradições religiosas é um sinal saudável. Nesse caso, minorias criativas serão aquelas que buscarem ativamente o diálogo por um mundo que deve ser transformado. Tradicionalistas nunca foram e nunca serão criativos, sejam minoria ou maioria. Tentando uma analogia: por sua estrutura, ao invés de criativos, estão mais para reprodutivos por clonagem, repetição sem novidade.

IHU On-Line – Quais são os "sinais dos tempos" que mais inquietam a Igreja institucional hoje? E que outros sinais, também importantes, passam despercebidos?
Luiz Carlos Susin – Estamos repletos de sinais, há muitos sinais. Por exemplo, a eleição de Obama, mesmo que ele revele limites com o passar do tempo. Quando o presidente da mais poderosa nação do mundo, em tempo de férias, sai caminhando com um boné na cabeça para ir à padaria comprar o pão para sua família, isso é um grande sinal. Há uma vontade de identificação e de participação que provém de povos que até agora estavam calados, como os indígenas por toda a América Latina. Há uma movimentação migratória igual às que marcaram as grandes etapas da história. Reciclador de lixo tem discurso político. As mulheres têm palavra própria. São sinais de empoderamento. A única forma de tratar estes sinais é a interlocução sem tutela.

IHU On-Line – O Papa Bento XVI diz que a fome é o pior sinal da pobreza, chama a um estilo de vida austero, levanta sua voz contra o desperdício alimentar, além de pedir uma economia mais justa com a publicação da "Caritas in veritate". Por outro lado, cresce o número de famintos e pobres em todo o mundo. Quais são as grandes tendências da Igreja hoje com relação aos mais pobres? Concretamente, eles ainda são uma "opção preferencial" da Igreja do século XXI?
Luiz Carlos Susin – De fato, a fome é o absoluto antidivino ao lado do absoluto de Deus, os únicos dois absolutos. “Quem tem fome tem pressa”, dizia o saudoso Betinho. E quem tem fome se torna perigoso, pois só quem come é pacificado. Da proposta de economia do Papa, inspirado na economia do “dom”, pode-se desenhar uma economia mais humana. Mas, na realidade, são os pobres que mais costumam praticar a economia sem exagero de medidas, própria do dom. A opção preferencial pelos pobres é, nesse ponto, uma aprendizagem, mas é também uma experiência evangélica sem retorno. No século XIX, repetiu-se muito, para o bem da unidade da Igreja num mundo hostil, que onde está o Papa aí está a Igreja (Ubi Petrus ibi Ecclesia). Isso soa ao “universal concreto” de Hegel, cujo outro exemplo era Napoleão. Talvez toda autoridade institucional tenha este estatuto. Mas a Igreja institucional tem um problema: Jesus! Ele disse que “onde está um pequenino, aí eu estou”. O universal concreto da Igreja de Jesus só podem ser os pequeninos, os pobres. Portanto, onde está o pobre, aí está a Igreja (ubi pauper ibi Ecclesia). Todo retorno seria cínico.
IHU On-Line – Como ser Igreja no século XXI, tempo incerto, "líquido", marcado por categorias como pós-(contemporânea, histórica, metafísica, secular, religiosa etc.)?
Luiz Carlos Susin – João Paulo I, em seus 33 dias de pontificado, ainda meio desajeitado à estatura do cargo, saiu-se com uma pérola. Disse aos jornalistas que lhe fizessem perguntas essenciais, e não como os que teriam ido entrevistar Napoleão e lhe perguntaram sobre a cor preferida de suas ceroulas. Napoleão teria respondido que ele era um general, e que as perguntas deviam ser sobre estratégias de guerra. E o papa acrescentou: “se quiserem me perguntar sobre a Igreja, saibam em primeiro lugar que a história da Igreja não é a história dos papas, mas dos santos!” De fato, há papas santos e outros nem tanto. Uns fizeram um capítulo de história mais mundano. Mas os santos fazem a história que começou em Jesus, são a expressão eficaz da Igreja de Jesus. E há santos na Amazônia, nas periferias de São Paulo, nos riscos missionários por toda parte. Neles há algo de absolutamente sólido e transcendente.

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