domingo, 28 de dezembro de 2008

Marx, Marx & Marx


Frei Betto*

O arcebispo católico de Munique, Reinhard Marx, lançou há pouco um livro intitulado "O Capital". A capa contém as mesmas cores e fontes gráficas da primeira edição de "O Capital", de Karl Marx, publicada em Hamburgo, em 1867.

"Marx não está morto e é preciso levá-lo a sério", disse o prelado por ocasião do lançamento da obra. "Há que se confrontar com a obra de Karl Marx, que nos ajuda a entender as teorias da acumulação capitalista e o mercantilismo. Isso não significa deixar-se atrair pelas aberrações e atrocidades cometidas em seu nome no século XX".

O autor do novo "O Capital" qualifica de "sociais-éticos" os princípios defendidos em seu livro, critica o capitalismo neoliberal, qualifica a especulação de "selvagem" e "pecado", e advoga que a economia precisa ser redesenhada segundo normas éticas de uma nova ordem econômica e política.

"As regras do jogo devem ter qualidade ética. Nesse sentido, a doutrina social da Igreja é crítica frente ao capitalismo", afirma o arcebispo. E acrescenta: "Um capitalismo sem marco regulatório é hostil às pessoas".

O religioso reflete bem a posição oficial da Igreja Católica perante o capitalismo: criticam-se seus "abusos", como se esses não fizessem parte de sua própria essência, baseada na acumulação privada da riqueza.

E quem haverá de pôr o guizo no pescoço do gato? O Estado capitalista é capaz de exercer a função de "marco regulatório" e impor limites à especulação e à exploração? Se um governo democrático-popular o faz, como ocorre hoje em países da América do Sul, desencadeia-se a grita geral de que é "populista" e "totalitário".

O livro se inicia com uma carta de Reinhard Marx a Karl Marx, a quem chama de "querido homônimo", falecido em 1883. Roga-lhe reconhecer agora seu equívoco quanto à inexistência de Deus. O que sugere, nas entrelinhas, que o religioso admite que o autor do "Manifesto Comunista" se encontra entre os que, do outro lado da vida, desfrutam da visão beatífica de Deus.

O lançamento da obra coincide com a turbulência financeira que, de certa forma, confirma as teorias de Karl Marx quanto às crises cíclicas do capitalismo. Contudo, o arcebispo ressalta que seu homônimo acertou muito pouco em suas previsões revolucionárias, como o surgimento do socialismo em países de avançado desenvolvimento capitalista. O que se viu foi o contrário, o socialismo florescer primeiro num país semi-feudal como a Rússia.

Falta ao livro explicar por que a Igreja Católica da Alemanha jamais excomungou Hitler, que se dizia católico, e também se equivocou ao aplicar boa parte de seus fundos no banco Lehman Brothers, cuja falência confirma, sim, as previsões do velho Marx.

Tudo indica que a obra de monsenhor Reinhard fomentará um novo interesse pelas do seu homônimo, assim como nas décadas de 1960 e 1970 muitos jovens, encantados em abraçar o marxismo, foram aprendê-lo no livro "O pensamento de Karl Marx", escrito, para refutá-lo, pelo jesuíta Jean-Yves Calvez. Sua edição portuguesa, em dois tomos, era disputadíssima em meus tempos de prisão sob a ditadura militar.

Entre um Marx e outro convém não esquecer de um terceiro que figura entre os dois: Groucho Marx. Em matéria de concepções materialistas o humorista estadunidense não merece reparos: "Há coisas mais importantes que o dinheiro, mas... custam tanto!"

Que o digam aqueles que, ao ocuparem funções de poder, abandonaram suas antigas concepções socialistas e, hoje, liberam R$ 8 bilhões (metade a União, metade o governo de São Paulo) para salvar da crise a indústria automobilística instalada no Brasil. Por que não destinar tais recursos à ampliação do metrô, que favorece a coletividade?

Só mesmo Groucho Marx para explicar: "Estes são meus princípios; se você não gosta deles, eu tenho outros".

* Frei Betto é escritor, autor de "Calendário do Poder" (Rocco), entre outros livros.

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

"Violência e Direitos Humanos – violações cotidianas, invisíveis e institucionalizadas"


A QUEM SERVE A EXCLUSÃO?
Urgências para superação dos modelos de segregação
Prof. Virgílio Cunha Mattos
[1]

“(...) cada um sentindo-se observado pelos outros e observando-os, o ser humano hoje sendo um ser humano exposto à observação, observado que é pelo Estado por meio de métodos cada vez mais refinados, tentando com desespero crescente escapar desse ser observado, o Estado sendo cada vez mais suspeito aos olhos do homem e o homem sendo cada vez mais suspeito aos olhos do Estado
[2].”

Boa noite a todos nós. Nós os singelos que dizemos não. Esses singelos combatentes dessa guerra em todas as frentes.
A pergunta me fez mergulhar fundo e ficar com a apavorante “cara de cerco” que assusta tanto aos alunos. Fez-me lembrar um conto de Friedrich Dürrenmatt, um suíço pouco conhecido entre nós, denominado A PANE
[3], nele, ao passar por uma cidadezinha e ter o carro enguiçado, o protagonista tem a mais inesperada das surpresas, mas não quero fazer-lhes perder o contato com a boa literatura, leiam o livro. Basta que trabalhemos com duas pequenas passagens.

A primeira, a fala do promotor:
“- Temos que investigar – conteve-se o promotor finalmente – o que não existe, não existe
[4].”

A segunda, a fala do advogado de defesa:
“(...) – Então o senhor insiste em não deixar sua tática equivocada e continuar fazendo papel de inocente? Não entendeu ainda? É preciso confessar, querendo-se ou não, e sempre se tem algo a confessar, aos poucos isso tem de lhe ficar claro!
[5]

À pergunta, “a quem serve a exclusão?”, a resposta é rápida e simples: ao Governo do Estado de Minas Gerais, seus executores, áulicos, servidores “intere$$ado$”, apoiadores idem, empreiteiros em geral e em pouquíssimas palavras a todos aqueles que não dizem NÃO.
Aos que lucram com a desgraça alheia. Essa pode ser uma resposta sintética.
Entretanto, a resposta é mais complexa. Vivemos desde o início da chamada era Reagan (1980/1988) uma guinada à direita na questão prisional que o fez e faz avançar para trás.

Para dizermos com WACQUANT ao fazer sua contundente análise sobre a matriz do sistema de encarceramento em massa:
“Hoje, os Estados Unidos estão gastando mais de 200 bilhões de dólares por ano na indústria de controle do crime, e a ‘face’ do Estado mais familiar para os jovens residentes no gueto é aquela do policial, do encarregado de liberdade condicional e do guarda da prisão
[6]”.
O Estado só aparece entre nós via 190 ou 197. Quando o Estado aparece menos mal na fotografia é quando você disca 193. Pobre só aciona o Estado pelo telefone, discando um desses três números.
Ao miserável, menos do que o antigo pobre, o underclass, o que faz parte do subproletariado, a este o Estado Penal, que lhe construirá cárceres em lugar de casas e ali lhe dará ensino primário e formação para atividades que não exigem qualificação ou têm qualquer repercussão fora do cárcere, como costurar bolas, por exemplo.
A desregulamentação do século XXI com jornadas de trabalho do século XIX e salários do século XVIII. Sem garantias trabalhistas, sem direitos. Sem rede de proteção por baixo da corda bamba.
Já saíram da promessa e estão investindo pesado na contenção do subproletariado e lucrando com isso. Mas há uma dificuldade grande quando temos que pensar o método. Nos meios de imprensa tradicional é impossível o espaço. Se conquistamos o espaço não veiculamos a mensagem. Se damos a sorte de conquistar o espaço e levar a mensagem eles repetem a idéia hegemônica, made in USA, de que é preciso encarcerar mais e por mais tempo. Mais do mesmo é a novidade que alardeiam de forma massiva em todas as mídias. Diuturnamente. Escancaradamente. É preciso contornar a rede paga de informações com nossa rede solidária de informações. Cada um de nós um multiplicador. Operar onde as idéias circulem e as cem flores rivalizem, como dizia o velho Mao. Talvez a maior violência institucionalizada nem seja a da censura dos meios de comunicação, mas a questão prisional.
Recebemos, aqui mesmo neste auditório do CRP – Conselho Regional de Psicologia -, onde nos reunimos semanalmente há um ano, com o Grupo de Amigos e Familiares de Pessoas em Privação de Liberdade, reiteradas notícias de torturas em todas as unidades prisionais da Região Metropolitana de Belo Horizonte. Os encaminhamentos são os mais variados, mas não resultam em efetividade.
São quase 50 mortos queimados e sufocados. Os índices de suicídios, tentados e consumados, sobe vertiginosamente.
É o consumo de gente mesmo dentro do cárcere. A “máquina de gastar gente”, como dizia Darcy Ribeiro.
No que diz respeito ao encarceramento feminino na capital “67% delas é de presas primárias, sem contato anterior com o sistema penal, logo, não são “vagabundas” ou mesmo com “personalidade voltada para o crime”, como alguns membros do Judiciário ainda têm o desplante de dizer. 82% têm filhos, dois deles é a faixa prevalente (32%), ficam jogados quando não têm a possibilidade de serem criados com a avó. 23% do total de filhos nasceram dentro da prisão, o que é espantoso. Um número tremendamente espantoso. A perda de liberdade significa também a perda de todo e qualquer contato com o mundo exterior para 11% delas, que não recebe qualquer tipo de visitas. São as “caídas”.
Mas se anuncia ainda mais do pior com a privatização. As estratégias são bastante conhecidas por nós, mas incompreensível para as massas. Primeiro trabalham na expansão vertical, com a hiperinflação carcerária. Na origem estadunidense, campeão mundial em aprisionamento, há mais de 55 milhões de “fichados”, 2 milhões de presos e uma taxa de 740 presos por 100 mil habitantes.
[7] Segundo, é preciso trabalhar a expansão horizontal e o resultado é que 6,5 milhões de estadunidenses estão sob supervisão do direito penal, seja em suspensão condicional da pena ou do processo, seja por monitoramento eletrônico. Terceiro, o advento do grande governo penal, com redução de investimentos no que possa representar bem-estar social e massivo privilégio no que diz respeito ao encarceramento. Por fim, mas talvez o mais importante, o desenvolvimento frenético de uma indústria carcerária privada. Fazer com que o subproletariado pague por isso.

É preciso dizer não ao modelo de Estado Penal neoliberal.
É preciso dizer não ao modelo de privataria da tucanalha, até mesmo dos presídios.
É preciso dizer não, mil vezes não, à intolerância, para podermos dizer sim à vida e construirmos um mundo melhor e solidário para os nossos filhos e netos.
Mas há um grande empecilho travando o curso da História: A “cruzada fascista” que se espalha e se espraia em nossas praias de Minas. Até os mais insuspeitos freis carmelitas estão sendo alvo de campanha difamatória. O “quase santificado” – se é que existe essa figura no Direito Canônico – Frei Cláudio e seu fiel escudeiro Frei Gilvander.
Quando o assunto é o governo ou o governador de Minas não pode haver um acorde dissonante, um registro diferente. Até as pichações que contém o nome do governador pedindo que ele deixe o povo trabalhar e abra um concurso na CEMIG são apagadas. Não se pode citar o nome do Füher. O Duce só gosta de elogios e paparicações. Não se pode sequer dizer que ele tem o nariz grande. Todos os movimentos populares são acusados de “ligações com o crime organizado”. Associação criminosa é o Governo do Estado, que quer modificar até mesmo a ciência matemática e fazer o povo crer que R$600,00 – que é quanto custa um preso no sistema APAC – é mais caro do que R$1.740,00 – que é quanto eles dizem ser o custo do preso no sistema atual – que é mais caro do que R$ 2.200,00 – que é o que eles dizem que irá custar o preso no sistema de “palhaçada público-privada” – para usarmos a feliz expressão cunhada por Rodrigo Torres de Oliveira para se referir ao sistema das nefastas PPPs.
Nem originais conseguem ser: a mesma acusação, de ligação com organizações criminosas, vem sendo feita pela Brigada Militar do Rio Grande do Sul em relação ao MST já lá se vão quase dez anos.
São obtusos. São pouco criativos. São patéticos esses poderosos estaduais. Teremos deles, em abundância, no campo municipal também. É bom aguardarmos, a composição da Câmara nunca foi tão ruim, politicamente falando. As derrotas dos campos populares e um adesismo incontrolável por parte de todos os outros partidos nos prometem dias intranqüilos, para dizer elegantemente.
Depois dizem que burros não fazem insights, mas observem se isso não é um insight... Lembrei-me de DÜRRENMATT
[8] de novo, talvez o encontro com o antigo orientador amanhã no seminário em homenagem a Niklas Luhmann, que gosta tanto de Dürrenmatt, explique essa implicação em meu inconsciente. A imagem agora é de um outro belo conto Däs Tunnel, instantes antes do momento do impacto, a bordo de um trem descontrolado, a mais de 210 km/h, quando ele se precipita no vazio, o chefe de trem pergunta:

“- O que devemos fazer?”
“- O que devemos fazer?” Berra novamente.
“- Nada”, responde com fantástica serenidade o outro personagem.

Que não desempenhemos nenhum dos dois papéis, nem o que não sabe o que deve ser feito e nem o de pensar que nada pode ser feito é o que desejo a todos nós.

{2009 tá aí mesmo, gente, um ano novinho, cheio de lutas e vitórias!}

ANISTIA, TODO PRESO AINDA É PRESO POLÍTICO!
PELO FIM DOS MANICÔMIOS E DAS PRISÕES!
Prof. Virgílio Matos: e-mail:
virgiliodematos@terra.com.br

[1] - Doutor em Direito pela Università Degli Studi de Lecce (IT). Especialista em Ciências Penais e Mestre em Direito pela UFMG. Coordenador do Grupo de Pesquisas Violência, Criminalidade e Direitos Humanos. Professor de Criminologia nos Cursos de Pós-Graduação da SENASP/RENAESP do Ministério de Justiça. Membro da Comissão Jurídica do Grupo de Amigos e Familiares de Pessoas em Privação de Liberdade. Editor da Revista Veredas do Direito. E-mail: virgiliodematos@terra.com.br
[2] - Dürrenmatt, Friedrich. A TAREFA ou Da observação do observador dos observadores. Tradução de Sérgio Tellaroli. São Paulo : Cia das Letras, 1992, pp. 18-19.
[3] - São Paulo : Códex, 2003.
[4] - p. 31.
[5] - p. 43.
[6] - Wacquant, Loïc. As duas faces do gueto. São Paulo : Boitempo, 2008, p. 59.
[7] - idem, p. 123-124.
[8] - Dürrenmatt, Friedrich. O túnel. Escrito em 1952 e revisto em 1978. Há uma edição em português.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

Natal: de Noel à Jesus



O Natal é uma festa. Disso todos/as estão em comum acordo, há uma espécie de consenso. Trata-se de uma festa da humanidade. Todos comemoram o “espírito” de paz, fraternidade e de amizade. Há confraternizações em todas as partes do mundo. Mas o que podemos esperar desse “espírito” que acontece todos os anos em nossas vidas? Refletir sobre o Natal não é fácil, pois somos interpelados a cair na mesmice, na falácia ou na repetição seja ela crítica ou acrítica.

Contudo, estamos às portas de um novo Natal que se abre para vivenciarmos a passagem de um novo ano. Mas o que podemos celebrar neste Natal? Festas, presentes, risos e choros, alegrias e tristezas, a esperança e também a desesperança? O que mais me intriga é o real sentido do Natal. Há algum tempo venho me propondo a refletir sobre esta festividade culturalmente cristã e economicamente pagã em nossos tempos de idolatria ao mercado, ao consumo, ao individualismo.

Em 2005, refletirmos sobre “O Natal de Jesus da Silva” que ainda se encontra nos porões da vida buscando a sua ceia com ou sem “peru” nos lixos das grandes e pequenas cidades, restos das sobras de nossas “gulas” e de nossos banquetes que sintonizam o real compromisso que não temos com o projeto de uma sociedade mais justa, solidária e sem opressão. O Jesus da Silva continua a nos desafiar e para os que acreditam que ele não existe é só olharmos ao nosso redor que o veremos, mesmo que ele, nestes últimos tempos esteja sendo socorrido/a pelo assistencialismo “Bolsa-Família” que acomoda e “despolitiza” as pessoas a lutarem pela dignidade.

Em 2007, refletimos sobre “E... Mais um Natal se aproxima” onde buscamos possibilitar uma crítica ao sentido do Natal capitalista e à própria cultura do capital que se instalou em nossas “consciências coisificadas” como já afirmavam os filósofos da Escola de Frankfurt, Adorno e Horkheimer. Estamos “coisificados” o que significa uma adaptação ao consumo sem limites. Recentemente o próprio Presidente da República diante da ameaça da crise econômica nos pede para consumir, comprar, valorar os produtos. Nem precisava, pois o próprio espírito natalino já é um forte indicativo para que possamos estar adaptados à compra.

O Papai Noel conhecido entre todos/as, principalmente, com as crianças representa este “espírito” natalino do consumo. Evidentemente que vemos na mídia vários atores/as, pessoas conhecidas, vestidas de Noel para entregar um presentinho para os que se encontram nos porões da vida e sem poder de compra. Logo, excluídos do mercado. Vejo isso como uma forma de compensação, de minimizar a consciência se é que existe alguma. O Noel realmente se encontra na hegemonia de um projeto de sociedade. Este projeto de sociedade alicerçado na lógica do capital percebe no Noel a possibilidade de conquistas de mais e mais consumidores, fiéis adoradores do deus-mercado.

Já o projeto oposto, aquele que culturalmente temos em nossas “consciências coisificadas” como sendo a memória do menino-Deus, Jesus de Nazaré, não possui hegemonia alguma em nossos tempos de sociedade globalizada. Aliás, o projeto de sociedade apresentado por Jesus se encontra na subalternidade, considerado perigoso e subversivo aos olhos do deus-mercado. Diria que nem contra-hegemônico está sendo o projeto de Jesus. O que existe são sementes não hegemônicas que se estabelecem a partir de alguns setores da sociedade mundial não adaptada e não coisificada pela bíblia do deus-mercado.

E, com isso, o verdadeiro sentido do Natal cai no esquecimento. Há uma dialética do esquecimento em relação ao propósito do Natal. Esquecemos daquele menino que veio ao mundo para iniciar uma nova história, uma história nova, que parte do princípio da libertação aos pobres. A “manjedoura” é um símbolo emancipatório que nos indica o caminho que o projeto de Jesus aponta a toda humanidade. Não se trata de religião, de missas ou cultos, mas de libertação das pessoas. Para sua época, Jesus fora considerado um perigo, um subversivo que vinha ao mundo para apresentar um novo projeto de sociedade. Hoje, igualmente, o verdadeiro menino-Deus é um perigo ao deus “mercado” que quer ampliar seu Império e tornar os fiéis súditos em fiéis consumidores.

O medo dos empresários do capital, homens de negócio, é que o real propósito do menino-Deus venha novamente estabelecer-se como paradigma de uma nova sociedade que apresenta às sociedades humanas o verdadeiro sentido da vida, o amor, a partilha, a comunhão. Por isso, a exemplo de Herodes, os empresários do capital são convocados a ação, destruir o menino-Deus, destruir o sentido do Natal e pôr fim ao anúncio do Evangelho de João: “E a palavra se fez homem e habitou entre nós” (Jo 1, 14). O receio da ordem estabelecida é o ato de habitar entre nós. E nem sabem eles, sacerdotes do deus-mercado, que este menino-Deus continua a habitar entre nós e o principal, continua a tornar esta palavra em semente da libertação.

Não temos dúvida de que a palavra se faz índio na Raposa Terra do Sol e que ali o real sentido do Natal será vivido, assim como em todas as “malocas” de várias comunidades indígenas.

Não temos dúvida de que a palavra se faz quilombola nas várias comunidades remanescentes de quilombos que irão celebrar a vida e não o consumo.

Não há como duvidar de que a palavra se faz mulher nas conquistas e nos sonhos de milhares de mulheres que alcançam a dignidade humana.

Não temos como impedir a dúvida de que a palavra se faz movimentos sociais que continuam a lutar pelo projeto de libertação, o mesmo sonho de Jesus, para que tenhamos uma sociedade humana, justa e sem porões da morte.

Por fim, não há como duvidar de que a palavra se faz Reino de Deus na esperança do vir-a-ser de encontros que teremos em 2009 como o Fórum Social Mundial e o Fórum Mundial de Teologia e Libertação a se realizar numa cidade com o mesmo nome da cidade da “manjedoura”, Belém do Pará que irá assumir o projeto de Belém da Judéia em suas causas e bandeiras e ali poderá almejar o canto de Maria como símbolo da presença subversiva de Deus entre nós: “(...) derruba os poderosos de seus tronos e eleva os humildes; aos famintos enche de bens e despede o rico de mãos vazias” (Lc Negrito1, 52-53). Os poderosos já não são mais reis e governantes somente, mas, em especial, os homens-deuses do mercado global que conseguem em minutos destruir nações e a vida de milhares; especuladores do mal que usurpam a miséria de muitos em benefício de seus interesses acumulativos de capital.

Penso que podemos ainda enquanto humanidade acreditar que a “manjedoura” será mais forte do que os “shoppings centers”. Podemos acreditar que Noel será minimizado para que o Menino-Deus resplandeça. Aqui, não se trata de discurso religioso, muito pelo contrário, as próprias religiões e, principalmente, o cristianismo se rende às benevolências do deus-mercado. Trata-se de uma reflexão que acredita no sonho de Jesus, em seu projeto comunista de sociedade, que está e estará sendo vivido pelos pobres que nada têm ou possuem. Por isso, acreditamos que a páscoa de Noel à Jesus é possível... E um dia acontecerá.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Oração do Pai-Nosso


Frei Betto

Pai-nosso que estais no céu, e sois nossa Mãe na Terra, amorosa orgia trinitária, criador da aurora boreal e dos olhos enamorados que enternecem o coração, Senhor avesso ao moralismo desvirtuado e guia da trilha peregrina das formigas do meu jardim,

Santificado seja o vosso nome gravado nos girassóis de imensos olhos de ouro, no enlaço do abraço e no sorriso cúmplice, nas partículas elementares e na candura da avó ao servir sopa,

Venha a nós o vosso Reino para saciar-nos a fome de beleza e semear partilha onde há acúmulo, alegria onde irrompeu a dor, gosto de festa onde campeia desolação,

Seja feita a vossa vontade nas sendas desgovernadas de nossos passos, nos rios profundos de nossas intuições, no vôo suave das garças e no beijo voraz dos amantes, na respiração ofegante dos aflitos e na fúria dos ventos subvertidos em furacões,

Assim na Terra como no céu, e também no âmago da matéria escura e na garganta abissal dos buracos negros, no grito inaudível da mulher aguilhoada e no próximo encarado como dessemelhante, nos arsenais da hipocrisia e nos cárceres que congelam vidas.

O pão nosso de cada dia nos dai hoje, e também o vinho inebriante da mística alucinada, a coragem de dizer não ao próprio ego e o domínio vagabundo do tempo, o cuidado dos deserdados e o destemor dos profetas,

Perdoai as nossas ofensas e dívidas, a altivez da razão e a acidez da língua, a cobiça desmesurada e a máscara a encobrir-nos a identidade, a indiferença ofensiva e a reverencial bajulação, a cegueira perante o horizonte despido de futuro e a inércia que nos impede fazê-lo melhor,

Assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido e aos nossos devedores, aos que nos esgarçam o orgulho e imprimem inveja em nossa tristeza de não possuir o bem alheio, e a quem, alheio à nossa suposta importância, fecha-se à inconveniente intromissão,

E não nos deixeis cair em tentação frente ao porte suntuoso dos tigres de nossas cavernas interiores, às serpentes atentas às nossas indecisões, aos abutres predadores da ética,

Mas livrai-nos do mal, do desalento, da desesperança, do ego inflado e da vanglória insensata, da dessolidariedade e da flacidez do caráter, da noite desenluada de sonhos e da obesidade de convicções inconsúteis,

Amemos.

Fonte: http://amaivos.uol.com.br/templates/amaivos/amaivos07/noticia/noticia.asp?cod_noticia=11284&cod_canal=53

sábado, 20 de dezembro de 2008

Natal: Milagre da Partilha


Frei Gilvander Moreira

A fome, fruto de injustiças, era problema sério na vida dos primeiros cristãos. Os quatro evangelhos relatam Jesus “multiplicando” pães para saciar a fome do povo (cf. Mt 14,13-21; Mc 6,32-44; 8,1-10; Lc 9,10-17 e Jo 6,1-13). Mateus relata que o povo faminto “vem das cidades”. As cidades, ao invés de serem espaço para o exercício de partilha e de cidadania, produzem exclusão e violência.

“Jesus atravessa para a outra margem do mar da Galiléia” (Jo 6,1), entra no mundo dos gentios, dos pagãos, dos impuros; isto é, dos excluídos. Ele não se limita à convivência com os incluídos, mas estabelece comunicação efetiva e afetiva entre os dois mundos, o dos incluídos e o dos excluídos. Tabus e preconceitos sejam superados.

Profundamente comovido, porque “os pobres estão como ovelhas sem pastor” (Mc 6,34), os que exercem os poderes político-religioso e econômico-cultural não o fazem como libertadores, mas colocam fardos pesados nas costas do povo. Com olhar penetrante, Jesus constata a grande multidão de pessoas com os corpos esmagados pela bomba ruidosa da fome e de outras formas de injustiça.

O Galileu não sente medo dos pobres, convive e caminha com eles, procurando superar a fome que os humilha. Aparecem dois projetos para resgatar a cidadania desse povo faminto. O primeiro é apresentado por Filipe: “Onde vamos comprar pão para alimentar tanta gente?” (Jo 6,5). Ou seja, devolve o problema. No mesmo tom, outros discípulos tentam lavar as mãos: “Despede a multidão para que vá aos povoados comprar alimento para si.” (Mt 14,15). Filipe representa quem está dentro do mercado e pensa a partir do mercado. Avalia o mercado como um deus capaz de salvar as pessoas. Basta comprar para consumir. Jesus, porém, chama os discípulos à responsabilidade social: “Ajudai, vós mesmos, para que tenham algo de comer” (Mc 6,37). Amor autêntico é fazer o povo capaz de perceber que somos os agentes da solução dos problemas.

O segundo projeto é proposto por André que, mesmo sentindo as próprias limitações, revela: “Há um menino com cinco pães e dois peixinhos” (Jo 6,9). É como se Jesus despertasse em seus discípulos e discípulas uma responsabilidade social: “Vocês mesmos dispõem de meios para que o povo se alimente” (Mt 14,16). Jesus quer “mãos à obra”. Nada de desculpas e racionalizações a tranqüilizarem a consciência. Com ânimo, abraça o projeto de André (= homem vigoroso, em grego), mobiliza o povo a “sentar na grama” (Jo 6,10).

Aqui, há duas características fundamentais do processo protagonizado por Jesus a fim de levar o povo da exclusão à cidadania. Jesus convida o povo para sentar-se, com a ajuda das lideranças. Por quê? Na sociedade escravocrata do império romano, somente pessoas livres, cidadãs, podiam comer sentadas. Os escravos deviam comer de pé, pois não podiam perder tempo de trabalho. Era só engolir e retomar o serviço árduo. Um terço da população era escrava e outro terço, semi-escrava. Logo, quando Jesus inspira o povo para sentar-se, ele está, em outros termos, defendendo que os escravos têm direitos e merecem ser tratados como cidadãos.

Por que sentar na grama? A referência à “grama” indica que o povo está no campo, na zona rural. Também a partir de gestos solidários e de uma reorganização da vida no campo, poderá advir um estímulo em vista da solução política para a fome e a violência que afligem o povo. Não é justo aceitar, passivamente, as três medidas que o poder midiático impinge também ao povo brasileiro: violência, diversão e paternalismo. Cidadania e segurança alimentar exigem que o povo se organize e, em clima de partilha horizontal, cuide do território. Território sem participação popular é negação de soberania.

Jesus sugere aos discípulos que organizem o povo. “Sentem-se, em grupos de convivência, de dez, de cem, de cinqüenta ...” (Mc 6,40). Assim, Jesus e os primeiros cristãos nos inspiram que a resolução dos problemas da fome, de tantas injustiças e da violência social passam necessariamente pelo empenho do povo organizado. Sem organização nada feito. Jesus provoca a solidariedade, conclamando para a organização dos marginalizados como meio para se chegar à cidadania de todos e para todos.

Os últimos acontecimentos na economia globalizada, nas tragédias climáticas que são resultado da irresponsabilidade capitalista, o retrocesso acelerado dos direitos sociais, a ameaça de fome em todo o mundo, fazem-nos crer que só haverá Natal se assumirmos essa responsabilidade cristã de participar do milagre da multiplicação dos pães. Que mais um Natal se faça aprendizagem!

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

A demagogia do pecado


Lamentável a reportagem de Camila Antunes, repórter da Revista Veja, acerca do Padre Júlio Lancelotti, com o título O Pecado da Demagogia no dia 11 de janeiro de 2006, pág. 92. Sinceramente sem nenhum fundamento. Parece mais uma reportagem de desqualificação na época dos velhos regimes ditatoriais que se esforçavam para denegrir a imagem das pessoas que se colocam na defesa da dignidade humana e do amor ao próximo. Mas, vamos aos fatos. O Pe. Júlio Lancelotti é presbítero da Arquidiocese de São Paulo, logo, padre da Igreja Católica. Segundo, ele não é líder de nenhuma organização política como diz a malfadonha reportagem imoral. Chamar a Pastoral do Povo da Rua de organização política ligada ao PT é no mínimo uma falta de responsabilidade para com a verdade. A Pastoral do Povo da Rua pertence a um conjunto de pastorais sociais da Igreja Católica e que existem em todas as dioceses. É evidente que em toda a ação humana existe uma ação política. Assim como ao escrever esta reportagem, Camila Antunes utilizou-se de uma ação política. Camila Antunes e a Revista Veja poderão se defender por meio da neutralidade científica, já superada, o que não será verdade, pois o que mais existe na reportagem é uma ação política direcionada para desqualificar uma ação humana e eclesial, logo, ação política. Mas, sei que existem políticas de uns e políticas de outros. São políticas e concepções, logo, ações humanas que se diferenciam na sociedade o que não deixa de ser Política.

Acusar o Padre Júlio que se doa todos os dias por uma sociedade mais justa, fraterna e solidária é acusar-nos também enquanto cristãos católicos que defendemos a vida em plenitude. Existe sim política em sua ação humana enquanto homem público e eclesial. Mas não política partidária, pois a Pastoral do Povo da Rua é uma pastoral da Igreja Católica, com um Vicariato próprio ligado a Arquidiocese de São Paulo. Mas, pelo visto, a Srª. Camila Antunes não disse isso, ou não sabe disso, ou ainda não se preocupou em buscar a verdade dos fatos. O engraçado é ainda numa ousadia política, evidentemente de direita e ultraconservadora, pede para que o Papa Bento XVI fique de olho nas ações do Padre Júlio Lancelotti, mas se esquece que existem Bispos responsáveis na cidade de São Paulo que formam a Arquidiocese e que dão o apoio necessário à Pastoral do Povo da Rua.

O mais curioso é que a mesma repórter se torna também juíza de valores e acusa, como se fizesse parte de uma Santa Inquisição, que Padre Júlio comete o pecado mortal da demagogia. Ser demagogo hoje está em moda para a Revista Veja. Todos os brasileiros são demagogos, menos a elite e as oligarquias rurais. O MST, a Igreja, os partidos, os pobres, os moradores da rua, eu, todos nós, somos demagogos. Mas a Veja não! Nunca fez demagogia. No entanto, acusa um homem que doa sua vida pela causa de Jesus, pela causa do Reino de Deus, um homem que se coloca a serviço da solidariedade e da vida em plenitude para todos de ser um pecador em estado mortal porque faz demagogia. Srª. Camila Antunes venhamos e convenhamos, olhe sua reportagem nefasta e ponha a mão na consciência, se que é ela existe, e tente ver quem de fato está fazendo demagogia.

Muitas mentiras na reportagem desta repórter que provavelmente comprou o diploma em uma dessas faculdades sem nenhuma seriedade. Vamos ser sinceros, pois o que tem de inverdades nesta reportagem chega ao cúmulo do absurdo. Primeiro, é mentira que Pe. Júlio Lancelotti seja líder de alguma organização política ligada ao PT ou a qualquer partido político. *Segundo*, ele não criou nenhuma categoria sociológica denominada "Povo da Rua" (é uma categoria utilizada há muito tempo pelos movimentos sociais que vocês da Veja tanto detestam). Terceiro, é uma mentira que o Padre queira transformar a situação dos moradores de rua em estado permanente. Por que vocês ocultam a verdade? Por que não falam quem realmente quer ver o Povo da Rua bem longe, mais excluídos ainda do que já são? Aposto que sabem quem realmente quer este estado permanente (pois não duvido nada que esta reportagem não tenha sido encomendada pelos verdadeiros interessados). Quarto, é mentira que a Prefeitura de São Paulo se preocupe com os moradores de rua. A atual gestão quer sim fazer uma limpeza dos excluídos da cidade. Portanto, medidas paliativas de nada adiantarão. O Povo da Rua precisa de inclusão social, de dignidade e de vida e não medidas assistencialistas e paliativas oferecidas pelo Estado. A luta do Padre Júlio é por políticas públicas efetivas e afirmativas para o Povo da Rua. Eles não são bichos e nem animais de zoológicos para serem tirados sem nenhuma política pública séria e eficaz. Quinto, acusar o Padre de estar fazendo manobra política e se utilizando de um rebanho para tais manobras é uma acusação gravíssima. A repórter joga a notícia e não prova a notícia. Oxalá, os moradores de rua se revoltassem contra a sociedade. Uma revolta evangélica. E exigissem respeito e direitos sociais que lhe são negados, porque pessoas que a Srª. Camila defende não redistribuem renda e sonegam o Estado. Sexto, não se contentando, a repórter encontra a saída. Abrir as portas da Paróquia São Miguel (onde Pe. Júlio Lancelotti é pároco) para colocar os mendigos, os drogados, os meninos e meninas de rua. Boa proposta! Tirou da onde? De uma manual de sociologia neoliberal? Essa é a solução da repórter e, provavelmente, da Revista que aceitou a publicação de sua reportagem. A política pública se transfere para a Igreja, ou seja, Padre Júlio precisa provar para todos tendo que abrir a Igreja para acolher estes excluídos. Pergunto: Por que então, a Srª. Camila não abre as portas de sua casa para eles? É fácil transferir o problema sem resolve-lo na essência. Com sua proposta ela transfere o problema da exclusão dos moradores de rua para o Padre e para a Igreja. Mas e a política pública? Nisso, a mesma repórter parece não estar preocupada, pois sua intenção é promover um discurso de que aqueles que defendem tais "excrementos" (palavra utilizada pela repórter) é que cuidem deles. Sétimo, ela mente em relação a iniciativa da Prefeitura. A Prefeitura não tem nenhuma política pública em relação aos moradores de ruas. As propostas não passam de superficialidades assistencialistas e sem nenhuma comprovada duração. Querem atacar o problema sem atacar a causa do problema daqueles que estão à margem da sociedade, mesmo assim, a repórter insiste em defender a Prefeitura que deve "desalojar os marginais". Percebam o tom, desalojar aqueles que são marginais, perigosos e excrementos. Mas vejam bem, ela se preocupa com o desalojar, mas não em partilhar, em compreender, em amar os que estão nesta situação. O seu conceito de marginalidade é reacionário e conserva os mais altos preconceitos de um ser humano contra outro ser humano. Oitavo, parece ser a última mentira de uma forma de proposta e desafio ao Padre Júlio. Aqui podemos perceber a qual política a repórter defende. Ela reclama da Pastoral da Rua ser uma organização política, mas se contradiz no final, falando em nome da Prefeitura e de sua gestão, o que nos dá a entender um certo defensionismo político de uns. Ela propõe ao Padre Júlio para ir morar debaixo do viaduto. Portanto, um alerta para todos os que defendem a dignidade, a vida, a solidariedade, o amor aos pobres, o trabalho voluntário. Não podemos mais fazer nada. Pois seremos taxados de políticos do PT e não mais como discípulos do Evangelho e teremos que assumir as responsabilidades do Estado. O interessante é que a repórter não fala para o Prefeito ir morar debaixo dos viadutos, somente para o réu perigoso (Padre Júlio) que está sendo inquirido por sua reportagem.

Antes de fazermos qualquer análise precisamos de comprovação. Esta reportagem foi mais um sinal das falsas verdades que são colocadas em veículos de comunicação sem nenhuma responsabilidade e sem nenhum senso de verdade. Infelizmente, esta repórter ou foi coagida a fazer tal reportagem sem nenhum fundamento, ou então, ela crê realmente no que escreveu e se sente satisfeita com os resultados. Na verdade, a reportagem o pecado da demagogia é a demagogia do pecado dessa própria reportagem. O que dizer: precisamos lamentar, pois são os que colocaram os excluídos nesta situação os verdadeiros donos do poder, entre eles, a Mídia. Mas, tenham a certeza de que a Igreja continuará defendendo os excluídos e propondo políticas públicas ao Estado, mesmo que o Estado, continue comprando matérias para desqualificar a atuação de pessoas e agentes de pastoral que realmente entendem a situação caótica da sociedade brasileira.

Claudemiro Godoy do Nascimento
Escrito em 2006.

"O PECADO DA DEMAGOGIA"

O padre Julio Lancelotti líder de uma organização política ligada ao PT chamada Pastoral da Rua (atenção, papa Bento XVI), comete todos os dias um pecado mortal - o da demagogia. Ele é o criador de uma categoria que leva o nome de "Povo da Rua". É a denominação de Lancelotti para mendigos, menores abandonados e loucos que vagam pelas ruas de São Paulo. A pretexto de defender o "Povo da Rua", o padre quer transformar uma situação precária - a dos sem-teto e que tais - em permanente. Toda e qualquer iniciativa para colocar esse pessoal em abrigos, custeados pela prefeitura, limpar os logradouros públicos de barracas e excrementos e livrar os transeuntes do risco de assaltos protagonizados por pivetes é torpedeada por Lancelotti com a classificação de "prática higienista".

Os motivos do padre estão longe de ser religiosos. O que ele quer mesmo é ter a sua disposição um rebanho de manobra para fazer política.Se Lancelotti fosse mesmo sensível às necessidades de seu "Povo da Rua", começaria por oferecer abrigo na igreja da qual é pároco: a de São Miguel Arcanjo, no bairro paulistano da Mooca. A igreja, porém, tem grades nas portas e cerca elétrica nos muros - um aparato suficiente para definir aquela casa de Deus como um "bunker antimendigo". "Antimendigo é a expressão usada por ele - e por jornalistas amigos seus - para classificar pejorativamente a iniciativa da prefeitura de São Paulo de colocar rampas de superfície áspera sob o viaduto que leva à Avenida Paulista. A administração municipal recorreu a esse expediente para desalojar os marginais que instalados no local, assaltavam as pessoas que transitam por ali. Lancelotti continua a esbravejar que "as rampas antimendigo" fazem parte de uma "visão higienista". Pois bem, propõe-se aqui um acordo: a prefeitura retira as rampas e o padre abandona o seu bunker e passa a morar debaixo do viaduto. Lá, poderá controlar os assaltantes e encontrar a santa felicidade junto ao "Povo da Rua".

Fonte: Veja, 11 de janeiro de 2006, página 92
Repórter: Camila Antunes
Referente matéria: O pecado da demagogia

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

A arte de não adoecer


Se não quiser adoecer "Fale de seus sentimentos"

Emoções e sentimentos que são escondidos, reprimidos, acabam em doenças como: gastrite, úlcera, dores lombares, dor na coluna. Com o tempo a repressão dos sentimentos degenera até o câncer. Então vamos desabafar, confidenciar, partilhar nossa intimidade, nossos segredos, nossos pecados. O dialogo, a fala, a palavra, é um poderoso remédio e excelente terapia.

Se não quiser adoecer, "Tome decisão".

A pessoa indecisa permanece na duvida, na ansiedade, na angustia. A indecisão acumula problemas, preocupações, agressões. A história humana é feita de decisões. Para decidir é preciso saber renunciar, saber perder vantagem e valores para ganhar outros. As pessoas indecisas são vitimas de doenças nervosas, gástricas e problemas de pele.

Se não quiser adoecer, "Busque soluções".

Pessoas negativas não enxergam soluções e aumentam os problemas.
refere a lamentação, a murmuração, o pessimismo. Melhor é acender o fósforo que lamentar a escuridão. Pequena é a abelha, mas produz o que de mais doce existe.

Se não quiser adoecer, "Aceite-se".

A rejeição de si próprio, a ausência de auto-estima, faz com que sejamos algozes de nós mesmos. Ser eu mesmo é o núcleo de uma vida saudável. Os que não se aceitam são invejosos, ciumentos, imitadores, competitivos, destruidores. Aceitar-se, aceitar ser aceito, aceitar as críticas, é sabedoria, bom senso e terapia.

Se não quiser adoecer, "Confie".

Quem não confia, não se comunica, não se abre, não se relaciona, não cria liames profundos, não sabe fazer amizades verdadeiras. Sem confiança, não há relacionamento. A desconfiança é falta de fé em si, nos outros e em Deus.

Se não quiser adoecer, "Não viva sempre triste".

O bom humor, a risada, o lazer, a alegria, recuperam a saúde e trazem vida longa. A pessoa alegre tem o dom de alegrar o ambiente em que vive.

Autor: ANÔNIMO.

domingo, 14 de dezembro de 2008

A grande crise dos anos 30



É um tema difícil de explicar, embora pareça muito simples. O sistema da Receita Federal dos Estados Unidos, como fruto do capitalismo em pleno desenvolvimento, foi criado em 1913. Salvador Allende, que todos recordamos como homem da nossa época, já tinha feito uns 15 anos de idade.
A Primeira Guerra Mundial estourou em 1914, quando o príncipe herdeiro do império austro-húngaro, no coração do centro-sul da Europa, foi assassinado em Sarajevo. O Canadá ainda era colônia da Grã-Bretanha. A libra esterlina inglesa tinha o privilégio de ser a moeda de pagamento internacional. Sua base metálica era o ouro, como era, fazia mais de mil anos na capital do império romano do Oriente, Constantinopla.
Os que encetaram as lutas sangrentas contra os crentes muçulmanos no Oriente Próximo sob pretextos religiosos, eram cavaleiros feudais dos reinos cristãos da Europa, cujo propósito verdadeiro era controlar as rotas comerciais e outros fins mundanos mais grosseiros, que em outra ocasião poderia abordar.
No fim da Primeira Guerra Mundial, os Estados Unidos participaram dela, desde 1917, dois anos depois do afundamento do navio "Lusitânia" — carregado de passageiros norte-americanos que partiram de Nova Iorque — por torpedos disparados de um submarino alemão, com absurdas instruções de atacar um navio que portava as bandeiras de um país distante, rico e potencialmente poderoso, cujo governo, de posições de suposta neutralidade, procurava pretextos para participar da guerra com a Grã-Bretanha, a França e seus aliados. O ataque aconteceu no dia 7 de maio de 1915, ao atravessar o estreito de mar que medeia entre a Irlanda e a Inglaterra. Nos 20 minutos que tardou em soçobrar, muito poucos passageiros conseguiram abandonar o navio; 1.198 pessoas que ainda estavam a bordo perderam a vida.
O crescimento da economia norte-americana depois daquela guerra se manteve de maneira sustentada, exceto as crises cíclicas que eram resolvidas pelo sistema da Reserva Federal (FED) sem maiores conseqüências.
Em 24 de outubro de 1929, dia lembrado pela história dos Estados Unidos como a "quinta-feira negra", foi desatada a crise econômica. O Banco da Reserva de Nova Iorque, com sede em Wall Street, como outros grandes bancos e corporações, segundo o critério do teórico de direita e reputado economista norte-americano Milton Friedman, Prêmio Nobel de Economia (1976), reage "por instinto", adotando as medidas que considerou mais corretas: "injetando dinheiro na circulação." O Banco da Reserva de Washington, acostumado à preeminência de seus critérios, conseguiu impor finalmente o critério oposto. O secretário do Tesouro do presidente Hoover apóia o Banco da Reserva Federal de Washington. O de Nova Iorque termina cedendo. "Mas o pior ainda estava por acontecer", declarou Friedman, que explica com mais clareza que ninguém, entre eminentes economistas, vários deles de tendência oposta, a seqüência dos fatos, quando escreveu: "Até o outono de 1930, a recessão da atividade econômica, apesar de ser grave, não se viu afetada por dificuldades financeiras ou pelos pedidos dos depositantes, tentando retirar os depósitos. O caráter da recessão mudou drasticamente quando uma série de falências no meio Oeste e no Sul dos Estados Unidos minaram a confiança nos bancos e trouxeram consigo numerosas tentativas de converter os depósitos bancários em efetivo."
"Em 11 de dezembro de 1930, foi fechado o Banco dos Estados Unidos. Corresponde à data crítica. Era o maior banco comercial que até essa data tinha falido na história norte-americana."
Apenas em dezembro de 1930, fecharam suas portas 352 bancos. "A FED poderia ter chegado a uma solução melhor comprando títulos da dívida pública em grande escala no mercado aberto."
"Em setembro de 1931, data em que Grã-Bretanha abandonou o padrão-ouro, aquele seguiu uma política, inclusive, mais negativa."
"O sistema reagiu após dois anos de dura repressão, aumentando o tipo de juro a um nível nunca atingido em sua história."
É preciso levar em conta que Friedman reflete um critério que ainda prevalece nos setores oficiais dos Estados Unidos quase 80 anos depois.
"Em 1932, a FED, pressionada pelo Congresso, concluiu seu período de sessões e cancelou logo depois seu programa de compras."
"O episódio final foi o pânico bancário de 1933."
"O medo se intensificou no interregno entre Herbert Hoover e Franklin D. Roosevelt, eleito em 8 de novembro de 1932, mas cuja posse não foi até 4 de março de 1933. O primeiro não desejava tomar medidas drásticas sem a cooperação do novo presidente, enquanto Roosevelt, por seu lado, não queria assumir nenhuma responsabilidade até não empossar."
O episódio me lembra o que acontece hoje com o presidente Barack Obama, eleito em 4 de novembro nas eleições de há menos de um mês, que sucederá Bush em 20 de janeiro de 2009. Só mudou o interregno, que na época de 1930 durava não mais de 117 dias e hoje, não mais de 77.
No momento de maior auge econômico, assinala Friedman, existiam nos Estados Unidos até 25 mil bancos. No começo do ano 1933, a cifra diminuiu para 18 mil.
"Quando o presidente Roosevelt decidiu terminar com o fechamento bancário, 10 dias depois de ter começado ― disse Friedman ―, pouco menos de 12 mil bancos foram autorizados a abrirem suas portas, aos quais se juntaram apenas 3 mil mais tarde. Portanto, no total, uns 10 mil dos 25 mil bancos existentes em 1929 desapareceram durante esses quatro anos, mediante processos de falência, fusão ou liquidação."
"O fechamento das empresas, a redução da produção, o desemprego crescente, tudo alimentava o nervosismo e o medo."
"Apos iniciada a depressão, estendeu-se a outros países e ocorreu, com certeza, uma influência refletida; outro exemplo da retroalimentação tão onipresente numa economia complexa", concluiu Friedman.
O mundo de 1933, do qual ele falou em seu livro, não se parece em nada ao que hoje existe, absolutamente globalizado, constituído por mais de 190 Estados representados na ONU, cujos habitantes estão todos ameaçados por riscos que os cientistas, mesmo os mais otimistas, não podem ignorar, e que um número crescente de pessoas conhece e compartilha, inclusive proeminentes políticos norte-americanos.
A repercussão da crise atual se constata nos esforços desesperados de importantes líderes mundiais.
A agência Xinhua informa que o presidente Hu Jintao, da República Popular da China, um país de crescimento sustentável nos últimos anos acima de dois dígitos, advertiu ontem que a "China se estava sob uma crescente pressão por sua enorme população, recursos limitados e problemas do meio ambiente". Trata-se do único país que sabemos que possui reservas em divisas que beiram quase US$2 trilhões. O dirigente chinês enumera "uma série de passos imprescindíveis para proteger os interesses fundamentais da população e preservar o meio ambiente na estratégia de industrialização e modernização da China". Assinalou, por último, que, "com a propagação da crise financeira, a demanda mundial de produtos reduziu-se consideravelmente".
Com estas palavras do líder do país com maior população do planeta, não é preciso proferir mais argumentos sobre a profundidade da atual crise.
Fidel Castro Ruz
30 de novembro de 2008

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

As chuvas em Santa Catarina



A chuva é coisa bendita. Ela vem para trazer vida, nunca morte. Se hoje, junto com ela vem a ceifadora, há que se buscar outros culpados. Afinal de contas, porque os rios transbordam? Que fizeram com eles os homens que habitam suas margens? E os morros que desabam, não teriam sido revirados para a plantação de tubos da gigantesca obra do gasoduto, tão denunciada por ambientalistas e estudiosos no início dos anos 90. Pois naqueles dias eram chamados de loucos, os eco-chatos, os anti-progresso, os que impediam o desenvolvimento.
As enchentes e os deslizamentos que cobriram de dor Santa Catarina não são obra do acaso ou da ira de um deus vingativo. Elas são o resultado da incapacidade dos homens em perceber que são parte da natureza, membros vivos da Pachamama, da mãe Gaia. Mas qual! Isso é conversa de naturebas, falsos hipppies, inconseqüentes, os que vivem falando de socialismo, cooperação, vida simples e integrada com a natureza. A tragédia que se abate sobre o vale do Itajaí e outras tantas regiões do estado já estava anunciada. Desde sempre. Vinha sendo prevista por aqueles a quem as pessoas denominam "os arautos da desgraça". Os que vêem defeito em tudo, que questionam cada obra faraônica, cada plano diretor mal planejado, cada ação irracional do sistema capitalista.
Basta que se dê uma espiada nos relatórios elaborados por estudiosos e ambientalistas, estes que nunca são ouvidos pelos governantes. As obras de prevenção sempre são caras demais e nunca saem do papel. Ás vezes se faz uma concessão aqui ou ali, mas no geral, as grandes saídas são esquecidas nas gavetas, até que venha uma nova tragédia.
Por isso me entristece um pouco ver toda essa comoção que imediatamente toma conta das pessoas em todos os lugares. Os comitês de ajuda, as doações de comida e roupas, as lágrimas de piedade. Não que eu ache que isso não é necessário. Sim, é. As pessoas precisam comer agora, aqui. Mas o povo de Santa Catarina não precisa só deste breve momento de musculação de consciência que vai durar enquanto a mídia centrar seus holofotes na região. A gente deste estado vai precisar de todo esse povo na hora de empreender a luta por obras de prevenção, na hora em que tiver de abrir mão de algumas benesses do progresso e do desenvolvimento para garantir que coisas assim nunca mais aconteçam.
Cá com meus botões eu temo que tudo isso siga seu ciclo perverso. O mundo todo de olho no estado por um mês ou dois e, depois, o esquecimento. As famílias que perderam gente, acomodam sua dor. Os que perderam coisas, recuperam. E a vida segue, enquanto nos palácios os governantes contratam empreiteiros para a reconstrução. Os mesmos de sempre levarão os lucros. Os que nada têm agradecerão por estarem vivos e os remediados se levantarão outra vez. Até quem venha um ciclone, outra chuva, um tsunami e tudo recomece na roda insana.
Talvez, a grande tragédia não seja a chuva, mas essa absurda incapacidade que grande parte das gentes têm de compreender que as catástrofes são faturas da nossa construção histórica, na nossa forma de organizar a vida, do desejo de dominar a natureza, da nossa ânsia de acumular riqueza. Não é à toa que enquanto o mundo todo ora por nós, o governo do estado trame a aprovação - em caráter de emergência - de um novo código florestal que tem como princípio básico a destruição da natureza. Se efetivamente precisamos de lágrimas e comoção, que seja por isso. E que todos possam se unir na luta contra esse projeto tanto quanto estão mobilizados para a ajuda às vítimas. Como já dizia o velho Marx, é sempre bom que a gente possa ver para além da aparência. Eu, otimista incurável, acredito que Santa Catarina vai lutar.

Elaine Tavares *
* Jornalista

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

MST, Mídia e Vandalismo


Texto publicado na Agência de Notícias Adital e no Fórum Social Mineiro em março de 2006.

A questão de fundo que pretendo destacar nesta reflexão associa-se ao conceito atualmente em foco no cenário sócio-político brasileiro denominado de vandalismo. Tal terminologia vem sendo utilizada pela Mídia com a finalidade associar as ações do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) como ações vandalistas.

Numa visão pautada no senso comum da discussão em questão, pode-se dizer que o MST é um movimento social que vem perdendo os limites do bom senso e que suas práticas estão tornando-se vandalistas. Evidentemente, essa é a visão de uma Mídia que sempre utilizou argumentos em defesa dos que sentem a ameaça da construção história de uma classe dominada e que sente o forte desejo de se libertar da situação de explorados pelo sistema que lhes é imposto como natural. Mas, antes de entrar na discussão propriamente dita acerca do que realmente é vandalismo e a quem serve o discurso ideológico do vandalismo, faz-se necessário refletir algumas questões acerca desse movimento social chamado MST que, em 22 anos de história, tornou-se semente de esperança de muitas famílias que conseguiram ou estão na luta pela terra e por um projeto político de desenvolvimento sustentável para os trabalhadores (as) rurais do Brasil. Não se quer aqui entrar no jogo demagógico das elites já representadas muito bem pela Mídia. Neste sentido, comungo com a reflexão da cientista política Maria da Glória Gohn que afirma ser a Mídia o 4º Poder nesta sociedade de pensamento único, neoliberal e globalizado.

O MST é o maior movimento social da América Latina há mais de dez anos. Desde seu surgimento em 1984, o MST levantou a bandeira da Reforma Agrária e da construção de um novo projeto político para o Brasil, realmente democrático e sustentável. Com erros e acertos, o MST ganhou a confiança de setores estratégicos da sociedade como a Igreja Católica e, também, os intelectuais das universidades, nunca deixando de produzir seus próprios quadros, seus próprios intelectuais orgânicos que assumiram a causa da terra enquanto bem comum da humanidade. Afirmo a condição de erros, pois todo e qualquer grupo humano erra e é passível a errar. O erro é uma forma de aprendizagem, pois é no erro que conseguimos acertar, por isso, o MST também erra e com os erros, aprende, para que aprendendo, acerte. Então, nesta visão, o erro é um ato pedagógico que constrói novos referenciais e novos caminhos.

Desde seu surgimento, o MST encarnou a luta de muitos e muitas que, no passado, também lutaram pela dignidade e por um mundo mais justo e solidário. Por isso, é comum ouvirmos dos militantes do MST que o movimento é uma continuidade da luta de Sepé Tiaraju, Zumbi dos Palmares, Antônio Conselheiro e todo o movimento dos pobres de Canudos, das Ligas Camponesas, da Revolta de Trombas e Formoso etc. O MST é o movimento social do campo que assimilou todos os gritos e clamores de um povo que há 500 anos vem sendo explorado e oprimido.

A grande ação do MST não são as ocupações e suas indignações legítimas, mas, a de ensinar para a sociedade brasileira de que o campo e o mundo camponês estão vivo, estão em movimento. Não se pode simplesmente ignorar sua existência. Ele existe e traz um novo modo de ver as relações, sempre ensinando a todos nós, por meio das frases, dos fatos, das músicas, dos gestos, das linguagens, das marchas, dos símbolos e da esperança. O MST é o movimento esperança da sociedade brasileira. Questiona as estruturas sociais e a cultura política que as legitima. Está sempre questionando a sociedade afirmando sua vocação filosófica de formar novos sujeitos coletivos e históricos que venham realmente construir um Brasil para Todos e Todas.

No entanto, o MST como movimento social do campo, do povo da roça, de trabalhadores (as) rurais e de agricultores (as) camponeses (as) familiares pobres e expulsos pelo latifúndio sempre foi visto pela sociedade a partir do olhar de uma Mídia que se encontra a serviço dos aparelhos ideológicos do Estado e das Elites que dominam realmente o modo de pensar e agir na sociedade. Caso alguém ou um grupo social fuja dos padrões de comportamento estipulados pelos dominantes nasce o paradoxo e o conflito de classes. O MST foge dos padrões impostos pela sociedade dominante e desde seu surgimento a população brasileira vê o movimento com certa desconfiança. A Mídia, principalmente, as Organizações Globo de Televisão e Imprensa defendem a idéia de que o MST é um movimento de vândalos, baderneiros e de vagabundos que "invadem" a propriedade privada de pessoas boas, sérias e que nunca fizeram mal a ninguém. A Mídia é tão déspota e insensata que não consegue fazer a diferenciação sociológica entre o ato de invasão e o ato de ocupação.

Os programas televisivos utilizam-se de uma outra estratégia que faz o choque, causa impressão no receptor que assiste ao programa jornalístico, trata-se da simbologia da imagem. A imagem fala sem reflexão. O jornalista fica por detrás das câmaras e atrás do jornalista, por meio da computação gráfica, surge a primeira imagem que choca.

Exemplo: Fala do jornalista: MST invade Aracruz Celulose e causa vandalismo. Imagem de fundo: Uma cerca que se encontra cortada indicando a invasão de uma propriedade e do lado uma enxada e uma foice indicando que os símbolos comunistas se fazem presente nesta ação. Depois disso, mostra-se as imagens do acontecimento real com objetos quebrados, depredações e a fala de pessoas ligadas ao grupo econômico ou a de cientistas que discordam das ações do MST. Raras as vezes que um integrante do movimento fala ou tem o direito de falar. Isso tudo forma a consciência política do povo brasileiro em relação às ações estratégicas do MST. Assim, em sua grande maioria, o povo brasileiro conhece o MST somente pelo que diz o Jornal Nacional e alguns outros veículos da Mídia. Este mesmo povo brasileiro é receptor de notícias distorcidas que cria a imagem e a consciência de que o MST é tudo aquilo que apresentou o determinado programa jornalístico.

Indago: A quem interessa realmente que o MST se torne um movimento sem credibilidade para a sociedade brasileira? Qual é o conceito de vandalismo utilizado pela Mídia para caracterizar as ações do MST nestes últimos tempos? É evidente que os grupos dominantes, as elites, os fazendeiros, os mesmos que conseguiram derrubar o relatório popular da CPMI da Terra e apresentar um substitutivo aprovado que diz ser todo ato de ocupação e ações do MST e outros movimentos sociais do campo caracterizados como crimes hediondos. São os mesmos que se utilizam da Mídia para inculcar na consciência do povo brasileiro um conceito ou pré-conceito em relação às ações do MST. Esqueceram-se somente de dizer que a grilagem e a morte de trabalhadores (as) rurais também é crime hediondo e que mais hediondo ainda é o próprio latifúndio.

Mas o que é vandalismo? Segundo Aurélio Buarque de Holanda, vandalismo é a ação própria de um vândalo. E o que é vândalo? Vândalo é, em primeiro lugar, o membro de um povo germânico de bárbaros que devastou o Sul da Europa e o Norte da África; em segunda lugar, assimila-se a vândalo todo aquele que é destruidor de monumentos. Reflitamos os fatos. O MST nestes últimos dias vem realizando ocupações de terras improdutivas (estratégia para pressionar o Incra a desapropriar determinadas áreas para a Reforma Agrária), de espaços públicos como o INCRA nos Estados da Federação e fazendas ligadas a grupos econômicos que privilegiam o Agro-Negócio e o Hidro-Negócio com o objetivo de realizar pesquisas com transgênicos. A ocupação desses espaços, ou seja, terras improdutivas, Incra e de fazendas ligadas a grupos econômicos como a Monsanto geraram toda a ofensiva realizada pela Mídia que caracterizou novamente as ocupações como invasões e como ato de vandalismo.

Em primeiro lugar, o MST tentou realizar o diálogo com o Governo e com todas as esferas da sociedade e depois da aprovação da CPMI da Terra, ou a chamada CPMI que legitima as ações dos latifundiários e especuladores da terra, o MST não vem conseguindo espaços democráticos para o debate e a reflexão em torno da problemática da terra. Em segunda lugar, resta-nos refletir acerca do vandalismo. As ações do MST não são vândalas porque os trabalhadores (as) rurais não são bárbaros, não devastaram nada e, por fim, não destruíram nenhum monumento. Mas, a Mídia continua a insistir em associar a terminologia vandalismo a partir de um senso comum que chega a ponto de uma profunda alienação social.

Com isso, pode-se questionar que vandalismo é esse que tem um peso e uma medida somente para o MST e que a Mídia e suas inverdades que defendem e legitimam o pensamento e a ideologia dominante em nada são atingidos. Parece que vandalismo é o peso e a medida de ocupar terras improdutivas e latifúndios ociosos, o Incra enquanto espaço público de todos e todas e as fazendas que trabalham em pesquisas com transgênicos voltados para atender os interesses de grupos econômicos que querem a todo custo realizar a especulação com a terra e com a água.

De quem é o vandalismo? Do MST? Ao que parece, é a Mídia que veicula imagens e apresenta meias verdades, devastando como os bárbaros a consciência da população brasileira e o MST enquanto monumento da luta pela terra, da luta por um projeto político sustentável, justo e solidário que vem sendo destruído pelas inverdades, pelo descaso e pela falta de respeito dos grupos dominantes para com os que estão querendo ser realmente cidadãos e cidadãs. É evidente que o projeto de uma sociedade baseada no Pão e no Circo é o modelo de uma cultura política incentivada por estes que vêem o MST como perigo, pois está claro que a cultura política do movimento é o de formar pessoas capazes de lutar pela cidadania negada historicamente pelos mesmos que hoje se encontram na difamação dos camponeses (as).

De fato, condena-se toda e qualquer forma de violência. Mas, vandalismo não é isso que vem sendo apresentado pela Mídia, aliás, ela mesma se esqueceu de dizer que ao apresentar suas interpretações acerca do MST e da luta pela terra estimula o vandalismo na consciência do povo brasileiro. O mais engraçado disso tudo é que a Mídia não vê vandalismo no assassinato de líderes sindicais, de trabalhadores (as) rurais e de agentes de pastorais, no próprio latifúndio, no trabalho escravo, no trabalho infantil, na prostituição infantil ou não, na fome e na miséria de um povo que quer viver e ser gente. Essas mazelas sociais não são vandalismo, são normais e naturais numa sociedade capitalista. Passa a ser vandalismo quando estes se indignam e promovem ações conjuntas em prol da liberdade e da dignidade humana.

Dessa forma, podemos dizer que o ato de explorar continua sendo tratado como algo natural e até necessário e quando os explorados (as) se revoltam e buscam conduzir a realização de sua própria história passam a ser vândalos sociais, perigosos e subversivos. Resta saber se a crucificação dos pobres camponeses (as) pela Mídia será efetivada, pois o tempo é propício e nos lembra histórias do passado. Apenas não se pode esquecer de que a Cruz da Morte (difamação - ser vandalismo) sofre a derrota da ressurreição da vida e da Páscoa.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

MPF/MG pede fim da mineração de zinco em Vazante


VOTORANTIM ESTÁ DESGRAÇANDO A REGIÃO DE VAZANTE
21/11/2008 14h17

Pedido, feito em ação, se deve aos graves danos causados à saúde da população e ao meio ambiente.


O Ministério Público Federal em Uberlândia (MG) ajuizou ação civil pública pedindo a imediata paralisação das atividades de mineração realizadas pela empresa Cia. Mineira de Metais (VOTORANTIM), no município de Vazante, região do Triângulo Mineiro.

Segundo o MPF, a cidade de Vazante vive hoje "um inferno na terra. O rio que abastece o município está completamente poluído. A água não serve para beber e sequer pode ser usada para higiene pessoal. A população, destoando da média nacional, apresenta grande incidência de câncer de esôfago, intestino e do reto". A situação é tão grave que a fauna e a flora da região estão irremediavelmente contaminadas por partículas de zinco e chumbo, fator que tem causado a morte de centenas de animais.

A ação, ajuizada contra a Cia. Mineira de Metais, que foi incorporada em 2005 pela Votorantim Metais, e contra seus proprietários, bem como contra a União, o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), o estado de Minas Gerais e o município de Vazante, pede a invalidação das licenças ambientais que autorizam a extração dos minérios de zinco e dolomita. A invalidação deverá atingir ainda a portaria do Ministério das Minas e Energia e dos atos normativos do DNPM que permitiram a instalação e garantiram o funcionamento da lavra.


Bombeamento de água subterrânea

O MPF quer a paralisação de todas as atividades de mineração, sejam elas de lavra ou pesquisa, bem como a interdição do local.

A Cia Mineira de Metais (VOTORANTIM) explora e beneficia os minérios de zinco e dolomita extraídos da Mina Morro da Usina, que fica a cinco quilômetros da cidade de Vazante. O beneficiamento do zinco utiliza grande quantidade de água, que, depois, é lançada no Rio Santa Catarina, que, por sua vez, deságua no Rio Paracatu, um dos afluentes do São Francisco. Essa água, com alto índice de turbidez devido à presença de chumbo, ferro, alumínio, manganês, cádmio, arsênio e zinco em quantidade bem acima do permitido, já atingiu o aqüífero subterrâneo e contaminou a água que abastece a cidade.

Os problemas tiveram início quando, para realizar a lavra subterrânea do minério (são extraídas cerca de 200 toneladas por dia), foram abertas novas galerias subterrâneas a 350 metros da superfície, atingindo-se o lençol freático. Milhares de metros cúbicos de água foram derramados, inundando a mina. A mineradora deu início, então, ao bombeamento dessa água, que é depositada em tanques para decantação e posteriormente é lançada no rio.

O problema é que esse bombeamento, superior a oito mil metros cúbicos de água por hora, está causando zonas de depressão e afundamento no solo. Ou seja, além do rebaixamento do lençol freático, que causou o desaparecimento de lagoas e a extinção de nascentes, comprometendo o abastecimento de água potável da cidade, o bombeamento da água tem causado fenômenos conhecidos por dolinas.

Dolinas são depressões circulares do terreno semelhantes a crateras. Técnicos da Universidade Federal de Uberlândia, em inspeção realizada a pedido do MPF, constataram que o fenômeno vem ocorrendo na parte interna da área de mineração e no seu entorno, num raio de um quilômetro, já tendo sido constatado o surgimento de mais de duas mil dolinas (crateras). Se o rebaixamento do nível aqüífero tiver influência na cidade de Vazante, as depressões podem vir a ocorrer na área urbana, com conseqüências temíveis, como a destruição de casas e edifícios, podendo, inclusive, vitimar as pessoas que neles residem.

Mas a mineração ainda polui o ar, com o lançamento, pela chaminé da área de processamento do minério, de sólidos particulados.

Conivência e omissão dos órgãos públicos

Para o MPF – Ministério Público Federal -, o estado de Minas Gerais, a União e o DNPM, ao renovar periodicamente as licenças ambientais para a Cia. Mineira de Metais (VOTORANTIM) e ao expedir autorizações para operação, agem com flagrante omissão, porque, mesmo sabendo da violação a dispositivos constitucionais que condicionam a exploração de zinco, aprovam sua localização, forma de exploração e concepção.
"É totalmente incabível o Poder Público aprovar a localização e manter a concepção desse empreendimento, atestando, inclusive, sua viabilidade ambiental, quando se sabe que a atividade tem causado graves danos ao meio ambiente, afetando sobremaneira a saúde e a integridade física dos moradores de uma cidade inteira e inibindo todas as demais atividades econômicas, que também são de grande importância para a região", indigna-se o procurador da República Cléber Eustáquio Neves.

Segundo ele, "a Cia Mineira de Metais (VOTORANTIM) tem violado uma série de leis e regulamentos sem que tenha havido qualquer ação eficaz dos órgãos ambientais competentes no plano administrativo".

Tratamentos de saúde

Na ação, o MPF pede, além da recuperação da área degradada e da adoção de medidas urgentes para a completa descontaminação da água fornecida à população de Vazante, a construção e doação de imóveis àquelas pessoas cujas moradias não oferecem segurança por se encontrarem na área de influência de dolinas (CRATERAS) e subsidências (outro tipo de deslocamento do terreno).
Pede ainda que as empresas e seus responsáveis contratem, urgentemente, serviços de saúde para a realização de exames clínicos e laboratoriais, de média e alta complexidade, em todos os habitantes que se habilitarem perante a Secretaria Municipal de Saúde de Vazante, para identificar e quantificar os casos de contaminação por alumínio, manganês, zinco, cádmio, chumbo e arsênio.

Se o pedido do MPF for aceito, os réus deverão arcar com todas as despesas e custos de internação em UTIs, de tratamento fora do domicílio, daqueles pacientes em que se constatar a necessidade de tratamento médico em razão de males decorrentes da poluição causada pelas atividades da mineradora.

Por outro lado, no caso de paralisação das atividades, a Justiça também poderá determinar que sejam adotadas medidas para garantir a estabilidade no emprego de todos os trabalhadores da Mina Morro da Usina por, no mínimo, dois anos.

O MPF espera ainda que os réus sejam condenados - inclusive os entes e órgãos públicos que se omitiram diante dos fatos - ao pagamento de indenizações por danos morais e materiais, por eventuais casos de invalidez ou morte, bem como por dano moral coletivo.

Ação civil pública nº 2008.38.03.009551-5
Assessoria de Comunicação Social
Procuradoria da República em Minas Gerais
(31) 2123.9008

sábado, 6 de dezembro de 2008

A teologia como carta de amor - Gustavo Gutierrez


Entrevista exclusiva - "o pai da Teologia da libertação", Gustavo Gutiérrez, em seu 80º aniversario.

Poucos são os criadores de uma ruptura epistemológica. No campo da filosofia ocidental moderna foram criadores Descartes, Kant, Hegel, Marx, Heidegger. Na teologia destacaram-se Tomás de Aquino, Lutero, Bultmann, Rahner. Gustavo Gutiérrez abriu um caminho novo e promissor para o pensamento teológico; descobriu ‘ uma nova maneira de fazer teologia’. São palavras certeiras do teólogo Leonardo Boff.
A teologia na América Latina e no Caribe caracterizava-se por repetir ou sintetizar pensamentos forâneos. Gutiérrez cria, no fim dos anos sessenta, um método teológico desde e para a América Latina pobre e oprimida. Deu a essa reflexão da fé a partir do reverso da história o nome de Teologia da Libertação. Seu raio de projeção tem sido verdadeiramente impressionante desde a teologia negra, índia, asiática, feminista, ecológica e das religiões até a teologia judaica e palestina da libertação.
Gustavo é o primeiro latino-americano a situar-se entre os grandes criadores dentro da história da teologia. No dia 28 de maio, a Universidad Central de Bayamón, dirigida pelos Padres Dominicanos uniu-se a uma plêiade de reconhecimentos internacionais, entre eles, o prestigiado Prêmio Príncipe de Asturias, outorgando-lhe o Doutorado Honoris Causa.

Leia a entrevista:

-Quando o senhor começa a assumir, como ponto de partida da teologia, a realidade da violência e da pobreza na América Latina e no Caribe?
-Comecei a trabalhar em março de 1964. Houve uma reunião convocada por Iván Illich. O conheci quando estava, todavia, em Porto Rico, em 1960. Foi Iván que convocou uma reunião muito informal em Petrópolis para que disséssemos como víamos o trabalho da teologia na América Latina.

-E qual foi sua colaboração?
-Falei de teologia como uma reflexão sobre a pastoral e sobre a vida cristã. O mesmo que formulei mais tarde como reflexão crítica sobre a práxis à luz da fé.

-O primeiro que surge é o estabelecimento de um método que parte da vida real para iluminá-la à luz da Palavra de Deus e abrir caminhos concretos de libertação?
-Sim. Eu passei praticamente todos os meus estudos de teologia preocupado com a questão do método. Daí a frase: ‘nossa metodologia é nossa espiritualidade’.

-O tema da proximidade aos pobres não é novo; porém, sim, a indagação sobre as causas da pobreza e a luta contra a pobreza como parte da identidade cristã. Quando começa essa transição?
-Me convidaram para falar sobre a pobreza em Montreal, em 1967. Queria tomar distância de Voillaume, o autor de ‘En el corazón de las masas’, porque ele evitava qualquer perspectiva demasiado social em torno à pobreza; porém, a verdade é que não se pode evitar o fato social. Falei sobre três noções bíblicas em relação à pobreza: primeiro, a pobreza real ou material, vista sempre como um mal. A segunda é a pobreza espiritual, como sinônimo de infância espiritual. A pobreza espiritual é colocar minha vida nas mãos de Deus. O desprendimento dos bens é conseqüência da pobreza espiritual. E a terceira dimensão é a solidariedade para com os pobres e contra a pobreza. Voillaume fala que temos que ser pobres. Sim, muito bem; porém, para quê? Que sentido tem? Não é unicamente para santificar-me. Teríamos que ver o que isso significa para o outro.

-Algum outro elemento importante dessa arquitetônica inicial?
-Uma preocupação: como anunciar o Evangelho hoje? A teologia é feita para anunciar o Evangelho, a serviço da Igreja e da comunidade. Tantas faculdades pensam a teologia como metafísica religiosa, não como anúncio histórico de libertação.

-Quando esse novo modo de pensar a fé a partir da perspectiva do pobre e do excluído começa a chamar-se ‘teologia da libertação’?
-Isso será em 22 de julho de 1968, em Chimbote, Peru. Pediram-me para falar sobre ‘teologia do desenvolvimento’ e me neguei. Disse-lhes que falaria sobre a teologia da libertação, que era mais pertinente em nosso contexto. Outra coisa que estava na moda era a ‘teologia da revolução’, da qual também tomei distância. O perigo da mesma era que pretendia cristianizar um fato político.

-Diferente de outros, o senhor nunca esteve de acordo com partidos ou grupos como a Democracia Cristã, nem com ‘Cristãos pelo Socialismo’, apesar de acentuar a dimensão política da fé. Por quê?
-Nunca gostei de que ‘cristão’ fosse usado como adjetivo. ‘Cristão’ é um substantivo. Sempre disse: ‘sou cristão por Cristo, não pelo socialismo’. Se, como cristão, alguém faz uma opção pelo socialismo, isso é outra coisa. Porém, não posso deduzir o socialismo pelo caminho da Bíblia. Da Bíblia deduzo a opção pela justiça, a opção pelo pobre. As pessoas, quando não entendem isso, dizem: ‘tu negas a política, estás do lado contrário’. Eu respondo que também creio na autonomia do social e do político.

-Quando começa a idéia de formar o livro que se converterá em texto fundante da teologia latino-americana contemporânea: ‘Teologia da libertação. Perspectivas’?
-Na realidade, não pensei em escrever um livro propriamente. Trabalhava nos temas que me interessavam e, pouco a pouco, foi saindo. No começo de 1969, após Medellín, uma comissão ecumênica sobre temas de desenvolvimento me convidou a Genebra. Então, retrabalhei a palestra que havia dado em Chimbote e, assim, continuei ampliando.

-Teve oferta concreta de alguma Editora?
-Não. Porém, passou Miguel d’Escoto, de Maryknoll, que acabava de fundar Orbis Books. Viu o livro e me disse: ‘vou publicá-lo’. Foi o primeiro livro publicado por essa editora. O traduziram e o publicaram em 1973, e tem sido o livro mais vendido dessa editora. Depois, passou o editor de Sígueme, da Espanha, e fez o mesmo. Outro que se interessou foi Gibellini. A edição italiana é, inclusive, anterior à espanhola. Já está traduzido para dez ou doze línguas, também para o vietnamita e para o japonês.

-Qual é a oposição principal que o livro recebe?
-Eu diria que, mais do que oposição ao livro, era oposição à teologia da libertação. Muita gente já estava escrevendo sobre o tema. Criticava-se o enfoque marxista da análise da realidade; porém, eu não me sentia aludido. A oposição mais forte que tivemos não veio de dentro da Igreja, mas de alguns componentes da sociedade civil -representantes dos poderes econômicos, militares, políticos.

-A discussão aberta é signo de uma teologia que diz algo ao homem e à mulher de hoje, que gera diálogo crítico não somente no interior da Igreja, mas com a sociedade.
-Boa parte das reações vem da acolhida que teve. Se eu tivesse permanecido em um ambiente de intelectuais, não teria tido esse impacto. Houve uma acolhida na base, inclusive com expressões que nunca me convenceram, mas que nascem da boa vontade, que dizem: ‘eu sou da teologia da libertação’. Porém, a teologia da libertação não era e nem é um clube no qual alguém se inscreve; nem um partido. Declaravam-se membros e diziam o que queriam e nem sempre correspondia ao que eu pensava. São coisas inevitáveis.

-Porém, há também uma necessidade de encontrar falhas em uma teologia que provém do Sul.
-Um jornalista estadunidense me perguntou: ‘o que a teologia da libertação pensa sobre esse problema mundial?’ Eu disse-lhe: ‘você crê que isso é um partido político e que eu sou o Secretário Geral? Pois, não é assim’. Disse-lhe também: ‘por que você não pergunta a Metz (Juan Bautista): o que pensa a teologia política européia desse problema mundial? A ele não; mas a essa teologia, sim. Claro, porque aquilo, sim, é teologia. Metz é alemão’. Algumas pessoas reagiam desse modo porque pensam que algo que vem da América Latina tem que ter grandes falhas. Tem que encontrá-las de qualquer maneira. Se tu és latino-americano, tem que haver alguma posição esquisita. O que querem é coisificar uma teologia.

-Se nos deixamos levar somente pelo que está escrito na imprensa, parece que o senhor foi condenado pela Igreja. E não é verdade.
-É curioso. No meu caso nunca houve condenação, nem sequer houve um processo. Houve, sim, um chamado ao diálogo; perguntas que sempre estive disposto a responder.

-Parece-lhe válido esse tipo de diálogo?
-Sempre acreditei que a teologia se faz no interior da Igreja. Na Igreja há carismas distintos. Podemos perguntar a quem escreve teologia que dê razão de sua fé, assim como damos razão de nossa esperança. Com esse nível de perguntas, não há porque se ofender.
-Quanto tempo durou o diálogo?
-Começou em 1983 e concluiu de várias maneiras; porém, oficialmente, faz cinco anos. Durante muito tempo houve silêncio. Não houve nada comigo.

-O que diz o texto oficial?
-A expressão é que tudo foi concluído satisfatoriamente.

-Teve vários encontros cara a cara com o Cardeal Joseph Ratzinger?
-Sim, para grande parte deles não fui convocado, mas eu mesmo tomei a iniciativa. Ratzinger é um homem inteligente, educado e, dentro de sua própria mentalidade, evoluiu, entendeu muitas coisas. Em uma ocasião, em Roma, me disse que havia lido meu livro sobre Jó. Eu mesmo lhe enviava meus livros. Sempre acreditei que a distância cria fantasmas. Disse-me que tinha gostado e que os teólogos do Sul tínhamos poesia; que a teologia européia era mais fria.

-Seu modo de proceder tem sido sempre pouco conflitivo, enormemente dialógico e carente de dramatismo. Alguns crêem que corresponde à sua personalidade; porém, creio que aqui há algo profundamente eclesial.
-Exato. Tudo vem de que o mundo que mais fala à minha vida não é o mundo intelectual. Não é a defesa de minhas idéias porque são minhas. Interessa-me a vida da Igreja, o anúncio do Evangelho e a vida das Conferências Episcopais.

-A teologia carrega a marca de seu tempo. Estamos claramente entrando em outro tempo no qual não se sente a mesma urgência e se abrem outras rotas à fé.
-Até os 40 anos nunca falei da teologia da libertação e creio que era um cristão de verdade. Assim, serei cristão depois da teologia da libertação. Quando me falam que a teologia da libertação já morreu, eu digo: ‘veja, não me convidaram para o enterro e creio que tinha algum direito’. Depois, digo-lhes: ‘creio que um dia, sim, morrerá’. Entendo por morrer o fato de que não tenha a mesma urgência que tinha antes. Isso me parece normal; foi uma colaboração à Igreja em um determinado momento.

-Creio que faz bem em não converter a teologia da libertação em um ídolo, em uma ideologia à defensiva.
-Não temos que transformar uma teologia em uma nova religião. Essa é a tendência da sociedade civil. Alguns pensam que a teologia da libertação é uma espécie de cristianismo distinto; o meu cristianismo. E falam isso como se fosse um elogio, não para criticar. Não crêem no cristianismo, mas na teologia da libertação. Pois, sinto muito: o importante é o cristianismo, não a teologia da libertação. A teologia da libertação somente pode ser entendida no interior do cristianismo.

-O senhor não acredita que antes se falava de pluralismo teológico, porém, na realidade, era sobre um pluralismo limitado, isto é, dentro de uma mentalidade quase exclusivamente européia?
-Sim, e, todavia, na academia teológica fala-se de nós como teologia contextual, um pesar que mantém uma estreita relação com a realidade. Quando me dizem isso, eu lhes digo para incomodar: ‘ai, você tem uma idéia muito má da teologia européia. Me está dizendo que não são contextuais; que é uma teologia que não tem relação com a realidade. Uma teologia no ar. Eu não creio nisso’.

-O senhor já teve que lutar contra certa pretensão de superioridade?
-Muitíssimo. Chamar ‘contextual’ a uma e a ‘não contextual’ a outra é um exemplo. Todo pensar corresponde a um contexto. Mais do que um rechaço à teologia da libertação, é uma comunicação com um ponto menor, como se fôssemos algo subalterno. Tem havido muitas coisas nesse estilo. Aceitavam-se as idéias; porém, criticava-se a teologia da libertação. O que é isso?

-Estávamos acostumados a que a teologia dialogasse somente com a filosofia e não com as ciências sociais. É uma novidade que demorou a ser aceita, no princípio.
-Curioso, porque hoje as ciências sociais estão de cheio dentro da teologia. Essa crítica à teologia da libertação já prescreveu. E tudo isso ocorre apesar de que nunca dissemos que as ciências sociais substituíam a filosofia na teologia, mas que ampliávamos o leque de luzes e de disciplinas humanas para trabalhar o mistério cristão.

-Além disso, toda teologia verdadeiramente criadora gera resistências. É a prova de fogo de sua valia.
-Evidente. Veja a reação ante o diálogo de Teilhard de Chardin com as ciências naturais. E o exemplo clássico de Santo Tomás de Aquino. Falo de um gigante frente a essa teologia tão anã, como a teologia da libertação. Tomás de Aquino teve resistências enormes; foi condenado pela Universidade de Paris e levou séculos para poder ser reconhecido. Ele incorporou uma filosofia que provinha de um pagão; a repensou; a retomou; a misturou.

-Acredita que já estamos em um novo e melhor momento?
-O momento mais duro e polêmico ficou para trás. Deve ficar para os historiadores. E é muito bom dizer que já passou. Se algo realmente morreu foi esta polêmica. Eu creio que já é tempo de baixar o tom.

-Há um texto no qual o senhor reflete sobre o contexto atual da globalização e da pós-modernidade e para os desafios que a teologia apresenta. Refiro-me ao ensaio ‘Onde dormirão os pobres?’. Aí começa a fazer uma crítica à tentação de fazer da própria teologia um ídolo.
-Quando transformo alguma coisa que não seja Deus em um absoluto, caio na idolatria. Escuto dizer: ‘teologia da libertação ou nada’. Eu nunca disse: ‘se você quer compreender a Cristo, leia a teologia da libertação’. Agora, se alguém me pergunta se creio que lendo sobre a teologia da libertação vai compreender algo importante sobre o Cristianismo, creio que sim.
É provocador dizer isso porque também a justiça pode converter-se em um ídolo. Vejo pobres serem maltratados por pessoas que se crêem mais politizados do que eles. Fiquei marcado por algo escrito por Pascal, que li quinze anos atrás: ‘o abuso da verdade é pior do que a mentira’. Uma pessoa pode ter a verdade e abusar dela. A pessoa é sempre mais importante.

-Sua reflexão mais recente adverte também sobre a intenção de transformar o pobre em um ídolo.
-Isso vem do romanticismo de alguns. Há pessoas que me dizem: ‘aprendi tudo com o pobre, o pobre é tão bom!’. Às vezes, brincando, digo-lhes: ‘você acredita que todos os pobres são mesmo bons e generosos, pois eu não aconselho que você vá ao meu bairro às duas da madrugada, pois ficará nu, como nasceu, só que mais velho’. É uma maneira de dar a entender que a opção não se faz porque o pobre é bom, mas porque Deus é bom. Se o pobre não é bom, a opção é a mesma. Muita gente se decepcionou porque acreditava que o pobre era bom. Se tivessem assumido compromissos porque Deus é bom, todavia estariam comprometidos.

-De fato, em um artigo seu intitulado ‘San Juan de la Cruz en América Latina’ deixa anotado que abrir-nos à dimensão mais mística da fé nos ajuda a evitar esse caminho idolátrico (que, apesar de falar de libertação, não liberta).
-A mística tem a capacidade de ajudar-nos a depurar a noção de Deus. Observando o desenho de São João da Cruz, vemos que a partir da ladeira do monte não há caminho. Isso é a mística. Um caminhar em direção ao Senhor. Continuar, fazendo d’Ele, conforme avança, nossa vida, nosso único absoluto.
Sem essa dimensão mística, não existe verdadeiro compromisso com os pobres. Pois bem, temos que mudar a noção de mística. Não é como se diz por aí: sair desse mundo. Não se trata de transmitir uma mensagem, mas de ‘transmitir o contemplado’. A isso temos que agregar a intuição de Nadal: ser ‘contemplativos na ação’.

-O que, às vezes, se anuncia como mística, inclusive teólogos importantes ou estudiosos, todavia tem excessivas reminiscências neoplatônicas negadoras do corpo e da história.
-A mística não é um desinteressar-se deste mundo. Todavia há pessoas que pensam que alguém que não pisa na terra é muito místico. Se o pobre não importa, não estou seguro de que se trata realmente de uma experiência mística. É interessante que uma mística, Teresinha de Lisieux, seja padroeira das missões.

-Progressivamente, parece que o senhor tem insistido na poesia como melhor linguagem para falar de Deus. É isso?
-A poesia é a melhor linguagem do amor. Deus é amor. A melhor linguagem para falar de Deus é a poesia. Uma linguagem profunda que vê o mundo e vê a relação a partir da dimensão e da profundidade que o conceito não oferece. Mesmo que não escrevamos poesia, a teologia deve ser sempre uma carta de amor a Deus, à Igreja e ao povo a quem servimos.

[Autor de ‘Llama del agua’ (Trotta, Madrid 2001) y ‘Perseguido por la luz’ (Trotta, Madrid 2008).

Esta entrevista foi publicada originalmente em ‘A Revista’, do jornal El Nuevo Dia, de Porto Rico, em 22 de junho de 2008].

Fonte:
http://www.cebi.org.br/noticia.php?secaoId=13&noticiaId=770

[Tradução: ADITAL]

* Poeta, periodista y teólogo puertorriqueño. Custodio de los Franciscanos del Caribe.