na Eucaristia celebrada por ocasião do quarto aniversário de morte/nova vida
de Irmã Dorothy Stang, da Congregação de Notre Dame de Namur
Anapu, Prelazia do Xingu,
Igreja Matriz de Santa Luzia,
12 de fevereiro de 2009
Irmãs e irmãos caríssimos em Nosso Senhor Jesus Cristo,
meu bom Povo de Deus de Anapu, da Transamazônica e do Xingu,
Quatro anos passaram desde o assassinato de Irmã Dorothy. Morreu porque não estava de acordo que a Amazônia fosse loteada entre alguns grileiros. Sonhou sempre com uma Amazônia, terra de todos os povos que aqui vivem, terra herdada das gerações passadas indígenas e ribeirinhas, terra confiada a essa e às futuras gerações para que possam viver e sobreviver sem destruí-la. Nunca foi contra o “desenvolvimento“ como alguns queriam incriminá-la, mas queria um desenvolvimento sustentável. Ela entendeu esse termo como indicador de um desenvolvimento socialmente justo e ambientalmente responsável. Hoje já estamos mais cautelosos com o termo “desenvolvimento sustentável“, pois os seguidores do neoliberalismo já se apoderaram do conceito e usam-no como “fachada“ para encobrir a verdadeira intenção. Continuam acumulando e querem sustentar essa ambição através de sempre novas formas científicas e tecnológicas de exploração. Desenvolvimento tem para eles o sentido de sustentar a ânsia, a sede insaciável de riquezas. “Sustentável“ assumiu paulatinamente a conotação de salvaguardar a exploração sem sequer se lembrar dos primeiros habitantes da Amazônia, indígenas, quilombolas, ribeirinhos e seus direitos à educação, saúde, segurança, habitação, transporte. Dorothy entendeu desenvolvimento sustentável no sentido de “convivência“ com a natureza que Deus criou, de viver dela e com ela, cuidando dela e zelando por ela como se cuida do próprio lar em que vive e convive a família. Ela sonhou com a comunidade que se sustenta nessa Amazônia usufruindo do que ela oferece sem destruí-la, sem arrasá-la. Amazônia é uma região única no mundo e por isso merece todo o carinho. Por milênios e milênios o equilíbrio entre selvas e águas ficou intacto, a floresta deu seus frutos e sua caça, as águas os peixes e mariscos. Até que um dia a ambição de dominar e subjugar a natureza e a ganância subverteram os homens e os fizeram perder a vergonha. Daqui em diante não foi mais o zelo e o cuidado, o amor pela terra e o carinho pelas futuras gerações que moveram os corações e estabeleceram as normas de convivência, mas é o lucro imediato, sem dó e piedade, sem cuidado e cautela, sem remorso ou arrependimento, que dita as regras. Violentaram a mãe-terra e estupraram a mata-virgem.
Não faltam vozes que denunciam os crimes e acusam os criminosos. Não faltam vozes que defendem a terra e a selva, os rios e os lagos como lar dos povos da floresta. Mas os criminosos não aceitam o “oráculo do Senhor“ de quem fala em nome do Deus Criador. Matam e ameaçam matar a quem se opõe à sua ganância, a quem sonha com uma Amazônia, lar de todos os povos, de comunidades que sabem viver em harmonia com o mundo que Deus criou e nos confiou.
Dorothy, a Irmã, morreu, dando a sua vida pela causa das famílias de pequenos agricultores, seus irmãos, suas irmãs. Dema, pai de família, morreu defendendo a região do Xingu como lar de sua mulher, suas filhas e seus filhos. Ambos tornaram-se mártires da Amazônia pela Amazônia, do Xingu pelo Xingu.
Mas o sangue derramado engendrou uma luta que nunca mais parou. Em vez de deixar-se amedrontar pelos que causam a morte, e lugar de deixar-se intimidar e bater em retirada, o povo se organiza e conquista seus direitos. Sepultamos os mártires, mas o grito por uma sociedade justa e pela defesa do meio-ambiente tornou-se um brado ensurdecedor. A morte gerou vida, trouxe novo alento para a luta. “Se o grão de trigo que cai na terra não morre, fica só. Mas, se morre, produz muito fruto“ (Jo 12,24). Surgiram e surgem cada vez mais mulheres e homens nesta Amazônia que de cara erguida enfrentam os inimigos da Amazônia. Os emissários dos grandes projetos não conseguem convencê-los nem cooptá-los, pois seus argumentos são inbatíveis. Indígenas, ribeirinhos, povo do campo e da cidade, mulheres e homens, jovens e idososos vão a luta pela vida contra a morte, pela Amazônia contra a sua devastação.
O que São Paulo escreveu aos Coríntios, repetimos hoje na Amazônia: “Somos amaldiçoados e bendizemos“ (1 Cor 4,12), O que os inimigos podem fazer? Sua maldição não surte efeito, pois nossa resposta é “bênção“, “bênção“ para a Amazônia agredida, “bênção“ contra a praga da destruição, do sacrifício inescrupuloso do Xingu, “graça“ contra a desgraça dos grandes projetos, “vida“ contra a morte que querem decretar para o rio e seus povos.
Também repetimos com São Paulo: “Somos perseguidos e suportamos“ (1 Cor 4,12). A perseguição foi e é a logomarca do profetismo, das mulheres e dos homens que acreditam e defendem um mundo diferente. Quem hoje grita “Um outro mundo é possível“ e dá testemunha desta sua convicção, agride o sistema estabelecido e prega a morte de estruturas que põem em risco todo o planeta. E sabemos que esse sistema se vinga e persegue e tantas vezes mata. Se nossa Igreja deixar de ser perseguida é sinal de que ela se acomodou e renunciou à sua vocação profética. Proclamar que tudo já é “paz e amor“ e dar-se conta de que o sistema já não reage mais deixando de perseguir, é sinal de que a Igreja perdeu sua audácia, sua intrepidez, sua ousadia, sua coragem, sua paixão pela causa do Reino, sua “parrhesia“ (cfr. At 4,13; 4,29; 4,31; 9,27; 13,46; 14,3; 19,8; 26,26; 28,31). “Suportamos“ porque acreditamos que o “outro mundo possível“. E esse “outro mundo“ que “é possível“ coincide para nós com o Reino de Deus, é a realização do sonho de Jesus, é o anúncio e o testemunho da Boa Nova do amor de Deus, da fraternidade, da solidariedade para toda a família humana. “Enviada por Cristo“, a Igreja tem por missão de “manifestar e a comunicar a todos os seres humanos e povos o amor de Deus“ (AG 10).
E ainda mais repetimos com São Paulo: “Somos caluniados e consolamos.“ (1 Cor 4,13). A calúnia, a difamação foi e continua sendo o método empregado pelos inimigos do Reino de Deus, do “outro mundo possível“. Inúmeras foram as calúnias que antecederam a morte de Irmã Dorothy. As mensageiras, os mensageiros da Boa Nova são criminalizados, até demonizados. Nada de novo! O próprio Jesus foi acusado de ser “louco“ (Mc 3,21) e de agir “pelo poder de Beelzebu, o chefe dos demônios“ (Lc 11,15). Mas é exatamente nesta fase, em que gritam contra as discípulas e discípulos de Jesus, quando escarram em nosso rosto e usam de todos os meios para conspurcar nosso bom nome cobrindo-nos de injúrias, é que sentimos, como nunca, a presença de Deus e ouvimos sua voz: “Eles lutarão contra ti, mas nada poderão contra ti, porque eu estou contigo – oráculo do Senhor – para te libertar“ (Jr 1,19). É nesta noite escura que o próprio Jesus dirige sua palavra a Paulo apóstolo: “Não temas. Continua a falar e não te cales. Eu estou contigo...“ (At 18,9). A nossa fé inquebrantável na presença de Deus é nosso consolo e ao mesmo o motivo de consolarmo-nos uns aos outros. Esta é a nossa mística. Só Deus mesmo consola e na medida em que nos deixarmos inspirar por seu Espírito consolamos também os oprimidos, estendendo-lhes as mãos e abrindo-lhes o coração. E quando falamos em oprimidos, “já não se trata simplesmente do fenômeno da exploração e opressão, mas de algo novo: da exclusão social. (...) já não se está abaixo, na periferia ou sem poder, mas se está de fora. Os excluídos não são somente “explorados”, mas “supérfluos” e “descartáveis” (DA 65).
Somos cidadãs e cidadãos do Reino, do “outro mundo possível“ em que acreditamos. Esse direito à nossa fé ilimitada e irredutivel, conquistado pelo Sangue do Senhor, ninguém jamais será capaz de arrancar-nos das mãos e do coração.
Amém.
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