Frei Betto
Na virada do século XX ao XXI, a América do Sul assistiu ao agravamento da questão social em decorrência das políticas neoliberais adotadas nas décadas precedentes. Isso fortaleceu os movimentos sociais e os partidos políticos que representavam alternativas de mudanças. É o que explica a eleição a presidente da República de Chávez na Venezuela, Lula no Brasil, Morales na Bolívia, Correa no Equador e Lugo no Paraguai.
Se, de um lado, a esquerda sul-americana logra ser uma alternativa de governo, por que não o consegue ao se tratar de uma alternativa de poder?
Desde a queda do Muro de Berlim (1989) a esquerda, em todo o mundo, entrou em crise de identidade. A implosão da União Soviética e a adesão da China à economia capitalista de mercado deixaram-na órfã, sem respaldo necessário para empreender mudanças pela via revolucionária.
Na América do Sul, optou-se, pois, pelo fortalecimento dos movimentos sociais representados por partidos políticos cujas raízes se inseriam nas comunidades cristãs de base, fomentadas pela Teologia da Libertação; no sindicalismo combativo; nas organizações populares de indígenas, camponeses, negros, migrantes, mulheres, e excluídos em geral. No caso venezuelano, a contestação se transformou em força política até mesmo nas Forças Armadas.
Não restava alternativa a esse movimento social engajado na busca de um “outro mundo possível” senão disputar, com os partidos do establishment, o espaço do poder. Embora desprovidas de recursos financeiros e apoio internacional, as forças políticas de oposição – a esquerda – detinham suficiente poder de mobilização popular adquirido, nas décadas anteriores, pelo “trabalho de formiga” para organizar setores populares situados entre a pobreza e a miséria, como, no Brasil, o fizeram as CEBs (Comunidades Eclesiais de Base) e o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), que tinham, no PT, no PCdoB e, de certo modo, no PDT, as suas expressões políticas.
Esse processo tem sido responsável por mudar o caráter político de governos da América do Sul.
O que se vê, agora, é um impasse, do qual o caso brasileiro é exemplo. Não há como gerar uma ruptura revolucionária, como ocorreu em Cuba em 1959. Como, então, promover reformas de estruturas e reduzir a brutal desigualdade entre a população? Avanços nesse sentido acontecem, hoje, em países que se apóiam numa nova ordem constitucional, como é o caso da Venezuela, da Bolívia e do Equador.
No Brasil, o governo Lula optou por uma governabilidade baseada na política de conciliação com os setores dominantes e compensação aos dominados, dentro do receituário econômico neoliberal. Ao assumir a presidência, Lula poderia ter assegurado sua sustentabilidade política em duas pernas: o Congresso Nacional e os movimentos sociais. Escolheu o primeiro parceiro e descartou o segundo, que lhe era co-natural. Assim, tornou-se refém de forças políticas tradicionais, oligárquicas, que ora integram o grande arco de alianças (14 partidos) de apoio ao governo.
Por sua vez, o governo adotou uma política de relação direta com a parcela mais pobre da população, sem a mediação dos movimentos sociais, como é o caso do programa Bolsa Família, que ocupou o espaço do Fome Zero. Este se apoiava em Comitês Gestores integrados por lideranças da sociedade civil, que controlavam e fiscalizavam a iniciativa. Agora, o mesmo papel é exercido pelas prefeituras. E o propósito emancipatório, de manter as famílias castigadas pela miséria no programa por, no máximo, dois anos, foi abandonado em favor de uma dependência que traz ao governo bônus eleitoral.
Tal medida enfraquece os movimentos e, ao mesmo tempo, joga o governo no risco de ceder ao neocaudilhismo: o núcleo governante, voltado unicamente ao seu projeto de perpetuação no poder, mantém, via políticas sociais, relação direta com a população beneficiária, sem contar sequer com a mediação de partidos políticos originados na esquerda. No Brasil, o fenômeno do lulismo (76% de aprovação) se descolou do petismo. O PT, por sua vez, aceitou restringir-se ao jogo do poder. São cada vez mais raros, pelo país, os núcleos de base do PT. Agora, o processo de filiação de novos militantes já não obedece a critérios ideológicos, e nem há cursos de capacitação política.
Esperava-se que o efeito Lula viesse a demonstrar que, através do fortalecimento progressivo dos movimentos populares, seria possível conquistar parcelas de poder. E novos paradigmas seriam introduzidos na esfera de governo. Se isso significasse a superação paulatina das políticas neoliberais, e a melhoria da qualidade de vida da população, representaria um avanço. Caso contrário, não haveria como não dar razão ao profetismo político de Robert Michels que, em 1911, em seu clássico Os partidos políticos, defende a tese, até agora confirmada pela história, de que todo partido de esquerda que insiste em disputar espaço na institucionalidade burguesa termina por ser cooptado por ela, em vez de transformá-la.
Lula teve, nos primeiros meses de seu governo, poder suficiente para promover a reforma agrária e a auditoria da dívida pública. Não soube aproveitá-lo. Há momentos em que o poder está com o povo (caso da mobilização que derrubou o governo Collor, em 1992); outros, com o governo; e outros com o capital financeiro ou com algum setor nacional ou internacional. A correlação de forças determina quem, num dado momento, detém o poder.
Lula comprovou ser possível inserir-se numa estrutura viciada – a sindical - sem se deixar cooptar por ela. Haveria de lograr o mesmo no governo? Não o conseguiu. A máquina do Estado, azeitada pelos interesses das elites, refreou-lhe idéias e aspirações. Atucanada, a política econômica impôs-se como prioridade das prioridades, sem reflexos significativos na área social, em que pese a redução da miséria através do Bolsa Família.
Como sindicalista, Lula não esperou que os trabalhadores freqüentassem a sede do sindicato. Fez o sindicato deixar a sede para ir ao encontro dos trabalhadores na porta e no interior das fábricas. Como estadista, não conseguiu repetir o gesto. Portanto, não implementou, como sonhava o PT, uma política de empoderamento popular, através da mobilização permanente dos setores organizados da sociedade civil.
Para Robert Michels, um partido de esquerda sobrevive legalmente na democracia burguesa abdicando de seu programa socialista e compactuando com a ordem vigente. Contudo, a probabilidade disso ocorrer só se conhece quando o partido chega ao governo. Enquanto permanece minoritário, destituído de poder institucional, todo o seu discurso de esquerda não passa de palavra vazia para os partidos que governam. O perigo surge quando ele surpreende e, devido a circunstâncias que escapam às previsões e manobras da elite, sai vitorioso nas eleições. Sim, o povo em sua sabedoria tem o direito de se dar uma chance, ao menos pela lógica da exclusão. Vota na oposição, não necessariamente convencido de que é melhor, mas cansado da mesmice.
Para chegar a ser vitorioso no atual regime democrático-burguês há forças políticas de esquerda que, tendo abandonado o trabalho de organização popular, estão convencidas de que é preciso aceitar as regras do jogo. A primeira é depender do dinheiro de quem o possui, o que não é o caso dos desempregados, dos operários, dos trabalhadores em geral. Dinheiro em eleição significa investimento; ninguém investe para perder. Todo investimento supõe a possibilidade de ganhos, lucros. Há que contar com meios de comunicação, que não se reduzem a panfletos impressos em gráficas de fundo de quintal, nem a comícios em que a sucessão de discursos repetitivos aborrece o público, exceto a militância que ali se junta para fazer eco e marola frente ao que é proferido.
O bom uso dos meios de comunicação depende, por sua vez, de marqueteiros, que detêm os segredos de sedução do eleitor. Como não são políticos, e em geral nem gostam de política, aplicam aos candidatos a mesma receita do sucesso de venda de produtos que anunciam. Assim, a dependência do dinheiro da elite, da mídia das grandes corporações e do marketing das agências de publicidade, resulta na progressiva descaracterização das campanhas eleitorais que, no caso dos partidos de esquerda, significa o abandono da proposta socialista e a progressiva desideologização de seu discurso e de suas propostas.
Há uma diferença radical entre esquerda e direita: esta age motivada por interesses, sobretudo de aumento da riqueza concentrada em suas mãos; aquela age (ou deveria agir) por princípios, centrada no direito à vida da maioria da população. É muito raro um político de direita apoiar reformas direcionadas a diminuir a desigualdade social, reduzindo a renda dos mais ricos para permitir mais acesso dos pobres à riqueza nacional. Se acontece, é por força de pressões da conjuntura.
Qual seria a solução? Primeiro, resgatar o “trabalho de base”, de educação política dos militantes de movimentos sociais, de fortalecimento de suas organizações e entidades. A isso seria preciso somar a reforma política, introduzindo o financiamento público das campanhas eleitorais. Evitar-se-ia que os mais endinheirados tivessem sempre maiores chances de ser eleitos. Mas enquanto essa proposta não ganha força de lei, os partidos deveriam ser obrigados a divulgar os gastos de campanha de cada um de seus candidatos, bem como explicitar as fontes financiadoras. E caberia à Justiça Eleitoral exigir prestação de contas e a quebra do sigilo bancário dos eleitos. Afinal, estamos falando de res publica, esfera na qual toda clandestinidade é suspeita, excetuando os serviços de informação do Estado.
A reforma política, se mantido o financiamento de campanhas eleitorais pela iniciativa privada, deveria criminalizar o uso de caixa dois. Toda contribuição viria da contabilidade formal, sujeita à auditoria da Justiça Eleitoral e da Receita Federal.
A pasteurização eleitoral da esquerda corre o risco de prolongar-se no exercício do poder. Se a mulher de César deve ser honesta e também parecer honesta, o político que se deixa maquiar para efeitos eleitorais periga preocupar-se mais em parecer eficiente do que em sê-lo. Governa de olho nas pesquisas de opinião, abdica de seus compromissos de campanha para submeter-se à síndrome do eleitoralismo. Conservar-se no poder passa a ser a sua obsessão, e não a preocupação de administrar para imprimir melhoria nas condições de vida da maioria da população. Essa desideologização tende a reduzir a política à arte de acomodar interesses. Perdem-se a perspectiva estratégica e o horizonte histórico; já não se busca um “outro mundo possível”, agora tudo se reduz a cultivar uma boa imagem junto à opinião pública. Aos poucos a militância fenece, dando lugar aos que atuam por contrato de trabalho, gente desprovida daquele entusiasmo que imprimia idealismo às campanhas. A mobilização é suplantada pela profissionalização.
A política sempre foi um fator de educação cidadã. Esvaziada de conteúdo ideológico, como consistência de idéias, transforma-se em mero negócio de acesso ao poder. Elege-se quem tem mais visibilidade pública, ainda que desprovido de ética, princípios e projetos. É a vitória do mercado sobre os valores humanitários. No lugar de Liberdade, Igualdade e Fraternidade entram a visibilidade, o poder de sedução e os amplos recursos de campanha. É a predominância do marketing sobre os princípios. E, como todos sabem, o segredo do marketing não é vender produtos, e sim ilusões com as quais os embala, pois nutrem a mente de fantasias, embora não encham barriga; ao contrário, alimentam a revolta dos excluídos que, atraídos pela fantasia, cobram a realidade à sua maneira, o que é pior para todos nós... A menos que o que resta da esquerda - movimentos sociais como o MST, o incipiente PSOL e alguns setores do PT e do PCdoB - se empenhe em mergulhar no mundo dos excluídos para ajudá-los a dar consistência política às suas demandas e aspirações, e que conquiste uma reforma política capaz de depurar e aprimorar o nosso processo democrático.
Fonte: http://amaivos.uol.com.br/amaivos09/noticia/noticia.asp?cod_noticia=11507&cod_canal=53
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