Texto publicado pela Agência de Notícias Adital e pela Revista Eclesiática Brasileira em 2006.
História de Deus na História da gente. Nas tribos primeiras, raiz Ameríndia do povo da terra, da Terra sem Males, dos males da terra. Nos dias antigos do rio, da lua, da dança. Na História violenta de tantas conquistas e tantos martírios. Na História teimosa de tanta bravura vencendo os impérios do lucro e da morte. Na História de Deus feito gente na história. Na história da gente tornando-se Deus, na única História da terra e do céu. (Dom Pedro Casaldaliga - Bispo Emérito da Prelazia de São Félix do Araguaia - MT).
Todo grupo humano é culturalmente festeiro. Festejamos tudo na vida. Desde o nascimento de uma criança até mesmo festejamos a irmã morte em algumas culturas. Festar ou festejar é uma atitude humana-animal. Quantas e quantas vezes somos acordados pelo som festeiro dos pardais em suas danças nas manhãs que surge anunciando um novo dia porvir. Quantas vezes vemos o grupo de andorinhas deslizando numa atitude de festa nos ares e no vento de um cair da tarde anunciando a noite que está para chegar. A própria natureza é uma festa constante, pois tudo é vida. Nem mesmo a morte nos separa da vida, pois até mesmo a morte não é capaz de nos separar da vida que é uma Festa.
Na sociedade ocidental, judaico-cristã, festeja-se a fé, a vida, o aniversário, a memória, amor, a colheita, a produção etc. Tudo se festeja. A vida é uma festa e a festa é símbolo da vida. A aldeia está em festa. A maloca Krahô canta sua alegria, pois estão em marcha, retornando ao lar que lhes é de direito.
Hoje a maloca está em festa. É uma festa humano-divina, pois Deus também dança a alegria de um povo. Não seria demais pensarmos na promessa de Deus ao Povo de Israel no passado e promessa de Deus hoje ao Povo Krahô-Canela, a saber: "Eu vi muito bem a miséria do meu povo que está no Egito. Ouvi seu clamor contra seus opressores, e conheço os seus sofrimentos. Por isso, desci para liberta-lo do poder dos egípcios e para faze-lo subir dessa terra a uma terra fértil e espaçosa, terra onde corre leite e mel..." (Ex 3, 7-8). Deus viu o sofrimento de seu povo Krahô que está em Tocantins. O mesmo Deus de Israel ouviu o clamor do Povo Krahô contra seus opressores, ouviu o clamor por libertação. O poder dos latifundiários e do poder local não foi suficiente para se esconderem de Deus que os conhece e sabe de suas ações contra os Krahô. O Deus da Vida e da Festa se fez Krahô e habita entre nós, pois fez com que os índios subissem ou retornassem ao seu verdadeiro lar, uma terra que historicamente lhes pertence e que lhes foi tomada por seus opressores. Por isso, esse Deus da Vida e da Festa é um Deus Justo.
Para os cristãos, Deus se fez gente entre nós e ao se fazer gente, assumiu nossa história de alegrias e tristezas. Vale lembrar o que diz a Constituição Pastoral Gaudium et Spes acerca do papel da Igreja no mundo de hoje: "As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo" (n. 01). Deus dança e a Igreja também dança de alegria junto com aqueles que sofreram para conquistar o direito de cidadania legítimo, direito a terra.
Depois de tantas cruzes no caminho do Povo Indígena Krahô-Canela, enfim a Páscoa-Ressurreição. Deus hoje se faz índio na esperança e nos sonhos desse povo irmão. Para nós cristãos tornou-se motivo de alegria pascal a participação nessa luta pela conquista da homologação das terras a estes irmãos e irmãs. Sabemos que muitas expressões de solidariedade se destacaram para conseguir pressionar o Ministério Público e o Juiz Federal com o objetivo de promover uma verdadeira rede de solidariedade humana para com os Krahô-Canela.
Os Krahô-Canela conseguiram suas terras. Sua luta foi nossa luta. Suas tristezas foram nossas tristezas que geraram gestos concretos de solidariedade por todo o Brasil. Localizados no estado do Tocantins, contaram com o apoio de muitos e muitas que colaboraram na campanha organizada pelos Direitos Humanos e por agentes de pastorais, entre eles, destaco dois personagens centrais: Dom Heriberto Hermes, bispo católico da Prelazia de Cristalândia e Padre Brás Rodrigues da Costa, sacerdote da Igreja Anglicana. Com seus testemunhos muitos outros entraram nesta rede de solidariedade criada para apoiar a conquista dos direitos de cidadania dos Krahô-Canela.
Foram quase 30 anos de angústia, dor, sofrimento, cruzes e a implantação de um projeto de genocídio a uma cultura, a um povo. Uma cultura da morte foi implantada para exterminar, massacrar e humilhar uma cultura que não conhecia as violentas formas de atuação do império do lucro, do medo e do capital. Para a lógica do capital, matar índios e tomar suas terras parece ser eticamente correto, pois nessa mesma lógica os índios não precisam de tanta terra.
Terra conquistada, sonhos recriados. Um novo sol urge na esperança. É Páscoa-Ressurreição na história de um povo que vence os males da terra. É hora de celebrar a festa da vida de um povo da terra, povo Krahô que também sonha com uma Terra Sem Males. É hora de repensar a cultura, os gestos, os símbolos, as tradições, os cantos e encantos milenares. É chegada a hora de rever a caminhada na alegria da conquista da Mãe-Terra, Pacha de todos os povos da terra, Gaia de sempre. Neste momento de alegria e de esperança torna-se propício o discernimento da caminhada feita na história. O caminho continuará apresentando novos desafios que serão assumidos para serem conquistados e outros superados. Mas, a dimensão da Festa jamais poderá ser perdida no tempo e no espaço, pois é nela que o Povo continuará resistindo e mantendo os rumos da história assumido pela luta social realizada para se (re) conquistar a tão esperada Terra Prometida.
A vida venceu a morte. O projeto de vida venceu, ao menos neste caso, o projeto da morte. Por isso, hoje tem festa na aldeia Krahô-Canela. Tem vinho novo no espírito da terra conquistada que é de todos e todas, ou seja, da comunidade Krahô.
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