Artigo publicado na Agência de Notícias Adital em 2006.
Chegamos a mais um Fórum Social Mundial. O VI Fórum Social Mundial tem uma nova metodologia por ser policêntrico, ou seja, descentralizado de um único local de encontro e acontecerá em níveis continentais. O FSM terá três cidades sedes, a saber: Bamako em Mali na África onde o encontro acontecerá de 19 a 23 de janeiro; Caracas na Venezuela representando as Américas onde se reunirão de 24 a 29 de janeiro; e em Karachi no Paquistão que representa o encontro do continente asiático que deve acontecer no mês de março de 2006 devido ao terremoto ocorrido em outubro de 2005.
Mais uma vez, os povos do sul se reunirão com o objetivo de refletir a caminhada e rever as alianças dos pobres em relação aos blocos hegemônicos do mundo que se reúnem todos os anos em Davos no Fórum Econômico Mundial. Neste ano, sentimos falta das expectativas de Porto Alegre. Mas, Porto Alegre está viva na descentralização realizada para outras cidades sedes. O espírito é o mesmo, a esperança é a mesma. Além disso, será um momento importante de se avaliar as novas estratégias de ação movidas pela nova conjuntura política que se cria no mundo.
No continente mais excluído do mundo, a África, os povos do sul estarão reunidos em Bamako, no Mali sub-divididos em 10 eixos temáticos assim constituídos: 1. Guerra, segurança e paz; 2. Liberalismo mundializado: apartheid em escala mundial e empobrecimento; 3. Marginalização do continente e dos povos, migrações, direitos econômicos, sociais e culturais; 4. Agressão contra as sociedade campesinas; 5. Aliança entre o patriarcado e o neoliberalismo e marginalização das lutas das mulheres; 6. Cultura, mídia e comunicação: crítica e reconstrução, violências simbólicas e exclusões; 7. Destruição dos ecossistemas, diversidade biológica e controle dos recursos; 8. Ordem Internacional: Nações Unidas, instituições internacionais, direito internacional e reconstrução da frente do sul; 9. Comércio internacional, dívida e políticas econômicas e sociais; 10. Alternativas que permitirão avanços democráticos, o progresso social e o respeito da soberania dos povos e do direito internacional.
O encontro de Bamako permitirá a discussão desses eixos de forma transversal o que nos indica um grande avanço na metodologia dos Fóruns, além de uma maior participação de delegações de países com poucas condições financeiras para subsidiar recursos se tal encontro acontecesse num único local. No entanto, em Bamako, quatro eixos nos chamam muito a atenção: o eixo 2 nos traz a discussão acerca do "apartheid" não mais em escala continental ou sul-africana, mas em escala mundial tendo como efeito o empobrecimento generalizado por todo o mundo devido à exclusão dos povos do sul na aplicação eficaz de políticas econômicas e sociais para o desenvolvimento sustentável. O eixo 4 representa a economia do continente africano baseada na agricultura de subsistência e que também enfrenta as tentações do Agro-Negócio e do Hidro-Negócio. Seus efeitos são devastadores porque impõe uma agressão silenciosa e silenciada às sociedades campesinas que encontram dificuldades em se manter na terra devido as pressões do capital especulativo das indústrias agro-pecuárias. O eixo 5 revela a aliança entre a concepção de patriarcalismo com a ideologia neoliberal, pois ambas possuem um objetivo em comum, ou seja, marginalizar a luta das minorias, em especial, a luta das mulheres. E, por fim, o eixo 10 que tratará das alternativas democráticas frente ao avanço do neoliberalismo como vírus que contamina a todas as nações. Todos esses eixos poderão estar provocando novas reações, novos debates e novas esperanças nas militâncias africanas que permitirá novas conquistas e novas alternativas, principalmente, em se tratando de nações que se encontram no desafio de superação da miséria e da fome.
Devido aos terremotos, o encontro de Karachi no Paquistão acontecerá em março de 2006, mas já estão definidos os eixos temáticos. A Ásia entra neste cenário do FSM com três grandes antagonismos: a crise entre Israel e Palestina, a crise geral do Oriente Médio e das invasões imperialistas dos Estados Unidos no Afeganistão e no Iraque e com uma economia desigual e sem limites entre países vizinhos como é o caso da Arábia Saudita com Bangladesch ou entre Coréia do Sul e Índia. Além disso, o caso do Irã com a retomada das experiências com bombas nucleares preocupa o mundo e, principalmente, os Estados Unidos que são os únicos que querem continuar a fazer tais experiências exatamente por se sentirem o Grande Império.
Também com 10 eixos temáticos que estão assim sub-divididos de forma transversal, a saber: 1. Imperialismo, militarização e conflitos armados na região e movimentos pela paz; 2. Direitos aos recursos naturais, controle da população e privatização e disputas fronteiriças; 3. Desenvolvimento do comércio e globalização; 4. Justiça social, Direitos Humanos e Governo; 5. Estado e Religião, pluralismo e fundamentalismo; 6. Nação, nacionalidades e identidades étnicas e culturais; 7. Estratégias de desenvolvimento, pobreza, desemprego e deslocamento; 8. Movimentos populares e estratégias alternativas; 9. Mulheres, patriarcalismo e mudança social; 10. Meio ambiente, ecologia e sustento.
Numa região de conflitos, o eixo 1 talvez possa gerar expectativa no cenário mundial já que teremos uma maior representatividade de delegações assim como na África e na América. O encontro de Karachi tem um significado especial por duas razões: Primeiro, por estar sendo realizado no Paquistão que sofreu recentemente com a perda de milhões de vida devido ao terremoto que abalou metade do país. Segundo, por estar situado numa região de conflito armado e não podemos esquecer que o Paquistão foi um dos braços dos Estados Unidos na ocupação do Afeganistão e do Iraque.
Três eixos me chamam a atenção até porque são eixos importantes para se entender o contexto do continente asiático mergulhado pelos conflitos armados, pela forte presença religiosa e pelo agravamento do meio ambiente que causou desastres com o Tsunami em 2004 e o Terremoto do Paquistão em 2005. O eixo 1 que refletirá a questão do imperialismo estadunidense, econômico e também o chamado imperialismo ocidental. Além disso, a questão da militarização e dos grupos armados que possuem duas características fundamentais: querem uma mudança política e uma autonomia na soberania das nações (principalmente, as nações muçulmanas) e agem enquanto grupo armado em nome de Alá por serem todos islâmicos. Este cenário nos dá uma visualização complexa do contexto existente no Oriente Médio. Mas, também no mesmo eixo se tratarão dos avanços dos movimentos pela paz, pois mesmo entre os islâmicos, judeus e cristãos existem os que procuram a defesa da paz enquanto saída urgente e necessária para combater o próprio Império que utiliza o mesmo terrorismo dos grupos armados como Taleban e outros.
O eixo 5 é uma complementação do eixo 1. Ele nos dá o entendimento do cenário político da região que consegue misturar Estado e Religião numa mesma esfera como é o caso do Irã que está desafiando os Estados Unidos e o Ocidente com as pesquisas e experiências com o Urânio. A questão se trata de entender o cenário baseado em Estados Islâmicos (fundamentalistas) e em Estados Religiosos Islâmicos (pluralistas). A Arábia Saudita é um Estado religioso, centro da religião islâmica (a se ver a cidade de Meca), mas respeita a diversidade religiosa. Ao contrário do Irã. Na verdade, são grupos islâmicos diferentes como se vê todos os dias nos noticiários entre Xiitas e Sunitas no Iraque. São islâmicos, discípulos de Maomé (Profeta), mas com visões diferenciadas acerca da política, da economia e da própria religião. Existem estas divisões no cristianismo e também no judaísmo. No próprio catolicismo, temos a Opus Dei (A Obra de Deus - em especial para os detentores do capital e a elite) e a Teologia da Libertação (a opção preferencial pelos pobres) que são cristãos católicos com uma visão praticamente oposta em relação ao Evangelho, a Igreja e a Doutrina. A questão é que os muçulmanos se matam entre si e, até que se saiba, ainda não se viu nada parecido no cristianismo. E, por fim, o último eixo que se trata do Meio Ambiente, o eixo 10, uma nova preocupação que ronda o universo dos asiáticos devido aos últimos desastres naturais. Mas, também este eixo tem uma profunda ligação com o eixo 1, pois as nações estão preocupadas com o ecossistema e querem fazer com que todos os países cumpram o Protocolo de Kyoto, principalmente, os Estados Unidos, o Grande Império que se negou a assina-lo.
O encontro do FSM das Américas se dará na capital venezuelana, Caracas. É um local propício, pois nestes últimos dois anos, a Venezuela se tornou por meio de seu Presidente Hugo Chávez uma pedra nos caminhos dos Estados Unidos. Mas, outros fatores nos fazem refletir acerca desse encontro, tais como: as políticas econômicas conservadoras de Lula no Brasil e Kirchner na Argentina; as denúncias contra o Partido dos Trabalhadores no Brasil e o desafio de Lula para superar a crise política; os avanços da esquerda na América do Sul, em especial, na Bolívia com o líder cocaleiro indígena Evo Morales eleito Presidente, o Peru com um descendente indígena, Toledo, na Presidência e, principalmente, o grande opositor do Império, Hugo Chávez na Venezuela. No Uruguai com Tabaré Vasquez, as esquerdas conseguiram eleger pela primeira vez um governo com ideais socialistas, resta saber se não cairá na tentação de comer a maçã do neoliberalismo. E, por fim, no Chile é eleita a primeira mulher à Presidência, Michelle Bachelet representante da Democracia Cristã e do Socialismo. O Chile se tornou um país de centro-esquerda assumido com Ricardo Lagos e agora sua candidata Michelle continuará, ao que tudo indica, na mesma direção.
Como podemos notar, esperanças e expectativas não faltam na América Latina. A Alca continua ameaçando, mas se começa a esboçar um fortalecimento do Mercosul com a entrada da Venezuela na Cúpula. Resta saber se o Mercosul atingirá toda a América Latina, até mesmo o México, com sua política de defensionismo de G. W. Busch. O FSM no encontro de Caracas irá proporcionar amplos debates sub-divididos em 06 eixos transversais, a saber: 1. Poder, política e lutas pela emancipação social; 2. Estratégias imperiais e resistências dos povos; 3. Recursos e direitos pela vida: alternativas ao modelo civilizatório depredador; 4. Diversidades, identidades e cosmovisões; 5. Trabalho, exploração e reprodução da vida; 6. Comunicação, educação e cultura.
Em Caracas o debate tem como pano de fundo o novo cenário político que está se formando. O eixo 1 e 2 estão amplamente correlacionados. É evidente que as estratégias imperiais é fazer com que a Alca seja aceita por todos atendendo aos interesses da economia norte-americana de Busch. No entanto, este sonho de Busch está cada vez mais longe devido ao novo cenário político que desponta. Talvez, a Colômbia seja um dos únicos países da América do Sul a ser fiel e dependente da política armamentista de Busch. Na América Latina, ainda temos o México como vilão dos pobres países da América Central. Mas um bloco aparece neste cenário que poderá fortalecer as experiências alternativas dos movimentos sociais e das redes sociais. Destacam-se: Venezuela, Peru, Bolívia e Uruguai, Argentina e Brasil correm por fora, pois não sabem os futuros políticos que adotarão e o Chile, mesmo com uma política econômica conservadora e socialmente assistencialista, desponta com um grande aliado dessa nova força e fortalece o eixo progressista da América Latina.
É preciso destacar o que une as três cidades sedes. Parece-me que a temática do imperialismo e tônica das reflexões. O imperialismo não se trata somente dos Estados Unidos como Grande Império e grande líder do G8, mas de todos os países desenvolvidos que não respeitam as soberanias nacionais e tentam implantar políticas internacionais à força para os países em processo de desenvolvimento. O modelo neoliberal se encontra desgastado e já se inicia seu processo de superação. Aos poucos, estamos convictos de que alternativas aparecerão como já estão ocorrendo.
Assim, o FSM tem mais uma vez a missão de resistência ao modelo hegemônico no cenário mundial. O deus mercado está incerto. É preciso aproveitar o momento de instabilidade e aplicar o golpe fatal e fazer emergir novas formas de participação e de políticas que possam restabelecer o respeito com as minorias.
No Brasil, a política se encontra desgastada pelo processo de mortificação constante ao Partido dos Trabalhadores e ao Governo de Lula. As forças reacionárias já se organizam por meio do PSDB e do PFL. O FSM de Caracas terá um grande papel ao se refletir sobre a problemática política brasileira. O futuro de Lula, na qual o povo brasileiro tinha tanta esperança, está totalmente incerto. Seu governo está desacreditado pelas alianças realizadas. Há quem diga que não se governa sem alianças. Outros dizem que é possível manter um bloco coeso e alternativo. De fato, Lula que era símbolo do maior partido político da América Latina, assumiu determinadas alianças com setores antagônicos da sociedade brasileira que ainda encontram na política a velha prática do coronelismo, do clientelismo e do caciquismo. Resta saber se os erros continuarão no futuro, pois caso cesse poderá nascer uma nova forma de fazer política, que respeite as decisões de segmentos da sociedade organizados, por exemplo, por meio do FSM, uma esperança para os povos do sul.
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